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Capital sem salvação; o filme de Costa-Gavras

Crítica do filme O Capital, Costa-Gavras, 2012.

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Publicado originalmente no Quadrado dos loucos, 4/11/13.

Existe um gênero do cinema americano que transpõe a narrativa do thriller ao mundo financeiro. Esse tipo de filme retrata personagens à frente de grandes operações empresariais e financeiras, em meio a uma realidade que desmorona junto das cotações da bolsa. Ambientada na crise da economia global, a trama expõe a selvageria do funcionamento das altas finanças no coração do capital, uma máquina de moer gente sem gentileza para idealismos. O thriller financeiro costuma conduzir os personagens a encruzilhadas morais e impasses dramáticos, onde se veem na contingência de escolher entre manter-se fiéis a princípios mínimos de conduta moral, ou inescrupulosamente seguir a escalada de trairagens e golpes baixos para vencer. O desfecho se dá na moral à americana, punindo os gananciosos, geralmente ensinando a lição que há coisas mais importantes do que o dinheiro. A mensagem se realiza na ideia que deve haver limites à ganância do capital: mais moralização, mais regulamentação, mais humanismo.

O Capital, de Costa-Gavras, se insurge contra essa moral. Quem espera personagens comprimidos entre a ganância e os princípios vai se decepcionar. O filme esboça vários lugares comuns do cinemão americano apenas para frustrá-los um depois do outro, deixando as expectativas no vácuo. As escaladas dramáticas são abortadas sem mais.

Marc Tourneuil não é herói nem anti-herói: apenas uma pessoa determinada a identificar-se inteiramente com a própria situação. O narrador vê os outros personagens e seus problemas de maneira achatada, opaca, como peças sacrificáveis do Grande Jogo cuja óbvia razão de ser, jamais nos enganemos, sempre foi tirar dos pobres para dar aos ricos (e morrer de rir no processo). Niilista, ele não se ilude, não se culpa e escarnece dos sermões. O problema não é que traia, humilhe, engane, conspire e estupre, não é de ordem moral. Este é o sistema, the winner takes it all, então é preciso vencer. Como o processo do capital, o que move o presidente do banco é a autoafirmação de seu próprio valor, numa lógica autorreferencial e circular. Mesmo quando o personagem parece à beira da “irracionalidade”, quando cenas em futuro do pretérito sugerem o que no íntimo gostaria de fazer, isso não passa de um encenado acting out, que no final apenas confirma o próprio não-fazer.

O capitalismo é cowboy no sentido que, como no velho oeste, nele não há espaço para grandes reflexões políticas, dilemas existenciais ou julgamentos severos de caráter: existem somente fortes e fracos, os que ganham respeito e os que perecem, os que vão lá e tomam, e aqueles que são tomados, humilhados, violentados sem dó. Não existe nenhuma crise dos valores por trás do colapso do capitalismo. Ele é a própria crise. O colapso não passa da exposição da própria essência, o momento da máxima contradição, “onde fermentam as maiores fortunas” e as revoluções — aliás, um campo cego do narrador. Em Cosmópolis, os manifestantes vandalizam a limusine do vampiro, mas em O Capital ele viaja de jatinho, muito distante da rua.

As três mulheres ocupam lugar crucial no filme. Não somente para realçar o machismo impregnado na narrativa, o que o filme faz questão de gritar desde a primeira cena: o  banqueiro agoniza de um câncer de testículo de que não cuidara, por vaidade de homem. Os banqueiros e executivos em ternos impecáveis transpiram à testosterona, numa competição onde mais dinheiro igual mais respeito. Nesse mundo masculinizado, cada uma das mulheres que se relaciona com Marc exprime uma qualidade que vai se mostrar incompatível com o capital: o amor (a esposa Diane), o compromisso ético (a intelectual Maud) e uma vida de prazeres (a supermodelo Nassim). O capitalista se apropria das ideias das duas primeiras e as vira do avesso: o maoísmo de Diane viabiliza as demissões em massa, e a análise inteligente de Maud o permite escapar do cerco acusatório de seus colegas, apenas para isentar a si e a todos por tabela. Incapaz de relacionar-se com a terceira, o faz da única maneira acessível, violentando-a. O que não pode parasitar, o capital estupra sem cerimônia.

O indestrutível cinismo de Tourneuil reflete a ausência de qualquer moralidade que possa ser compatível com a representação do capital. As tentativas de o cinemão americano livrar a cara do capitalismo, para acusar a cobiça e a corrupção do ser humano, são pífias e ultimamente cínicas. Essa indústria de “thrills” opera na mesma matriz e lhe é funcional. O bom gosto é uma questão moral. A mensagem agora é mais simples: não existe ponto de vista ético possível por dentro do capital. Nenhuma possibilidade de moralizá-lo ou humanizá-lo. O filme não aceita a ética postiça, típica do “capitalismo de cinema”, que instala um maniqueísmo por dentro do sistema capitalista apenas para redimi-lo como um todo.

O capitalismo, e esta é a única saída, precisa ser abolido. Não deixa de ser um filme direto.

Com a colaboração de Talita Tibola.

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