Escrevi este texto lá por 2005/2006, quando o ministro Marco Aurélio Mello era presidente do STF. Os comentários de ontem de Lúcia Hipólito (29 de outubro de 2011) mal escondendo a sua satisfação pela notícia do câncer de laringe de Lula me fez resgatá-lo, acrescentando no final vários parágrafos novos. O episódio contado na “parte I”, mesmo sendo específico da época, me parece bastante atual no seu “espírito”.
I
“O presidente Lula ignora completamente o princípio da independência dos três poderes”, declarou peremptoriamente Lucia Hipólito logo depois que Lula criticou a atitude do ministro Marco Aurélio de Mello, Presidente do STF, de ameaçar proibir, ou de dizer que ia proibir, a ampliação do programa bolsa família.
A “cientista política”, a “especialista”, como é apresentada pela corporação de comunicação que paga seu salário, não precisaria colecionar diplomas nem exibir títulos para fazer o que fez, a saber, repetir em estilo próprio o lugar comum mais clichê dos discursos de poder anti-Lula, na era Lula: chamar o presidente de ignorante jogando assim para a platéia (dela e da corporação que a emprega) e justificando seu farto contrato com seu poderoso patrão.
A fala de LH traz uma lógica reincidente que não só pressupõe que Lula teria criticado Marco Aurélio porque seria ignorante, como também teria sido eleito presidente da república pela suposta mesma ignorância do povo. E finalmente, assim subentendido também ficaria que a suposta ignorância do presidente e de seus eleitores- apoiadores seria uma ameaça à democracia representativa posto que, segundo LH, Lula e os seus ignorariam um princípio assim tão sagrado: “a independência entre os poderes da República”. Princípio este que, na minha modesta opinião, é uma espécie de coelhinho da páscoa do iluminismo.
Lucia Hipólito, no entanto, comentava sobre uma meia notícia; meia notícia que omitia alguns fatos e, além de fatos, omitia o tal “conhecimento especializado”, “ técnico”, enfim, aquilo mesmo que ela como uma anunciada “especialista” deveria ou estaria oferecendo ao seu, assim chamado, “público”.
O primeiro fato omitido é todo um trecho do discurso do presidente no qual ele criticara o Ministro Marco Aurélio de Mello, parte que só teve acesso quem o tinha escutado ao vivo ou quem foi mais tarde até a internet para recuperá-lo. Ali Lula citava o que de fato aconteceu: o ministro do STF adiantara para a oposição, declarando aberta e publicamente, que se esta entrasse com um processo contra as ampliações do programa bolsa família, e as bolsas propostas nas favelas no programa de combate a violência, muito provavelmente decidiria a favor da própria oposição. Ou seja, não só indicou a uma das partes o que fazer antes mesmo que esta tenha decidido por fazê-lo, como adiantou uma decisão judicial, o que é absolutamente irregular. Assim, o que Lula fez foi chamar a atenção para o fato do Ministro Marco Aurélio ter dado a senha para a oposição, ter indicado como ela deveria agir judicialmente, adiantando o que ele mesmo decidiria diante da ação que ele sugeriu que a oposição fizesse.
Lucia Hipólito não ignorava estes fatos, mas agiu para que os outros ignorassem. Fluente, comunicativa, enfim, razoavelmente competente e perspicaz para a “comunicação” pelo qual é bem paga, a “cientista política” sabia muito bem que foi o ministro Marco Aurélio quem desrespeitou (não pela primeira vez) um princípio jurídico e, no final das contas, um princípio da democracia representativa e, até mesmo, o tal princípio da independência dos três poderes sobre o qual LH tenta nos convencer que defende e acredita.
Em outras palavras, o que de fato aconteceu foi que a nossa “especialista” acusou Lula de ignorante no movimento mesmo que usou, e ajudou a produzir, a ignorância como arma política. Isso porque Lúcia Hipólito ao comentar a fala de Lula “editada”, ao omitir qualquer comentário sobre o que fizera o ministro, omitindo não só o que ele fez, mas também as opiniões mesmo que supostamente “técnicas” e “formais” sobre o que ele fez, mentiu de maneira calculada e estratégica. A “cientista política” usou assim a performance do dono do saber e do conhecimento como um distintivo de poder, como uma carteirada de classe, no movimento mesmo que produzia o anti conhecimento, sendo assim porta voz e produtora da ignorância que ela atribuíra a Lula.
Este fato nos interessa, no entanto, porque não é particular e isolado, sendo na verdade um caso paradigmático onde uma pessoa, um grupo e/ou uma instituição que se apresenta como a detentora do saber e do conhecimento age exatamente como uma contraforça destes. Chega-se então a uma situação, muito mais comum do que se imagina, onde o lugar que se apresenta como o “do saber”, torna-se exatamente o lugar da propagação da ignorância. Mas uma ignorância muito bem legitimada, não só por instituições e diplomas, mas também por toda uma série de procedimentos e performances. Não se trata da ignorância com uma “ilusão”, mas como uma produção de enunciados: como uma operação e um teatro do Poder.
E assim terminei, na época, o artigo. Não o divulguei porque achava que ele deveria ir junto com a “parte II”, que ficou apenas como anotações no próprio arquivo do texto. Foram essas anotações que desenvolvi abaixo como uma espécie de projeto, de carta de intenções, para uma análise que julgo imprescindível sobre este fenômeno dos (pseudo) intelectuais de mídia no Brasil.
II
Que processo é esse que transformou as corporações de comunicação brasileiras em espécies de agências de michetagem intelectual (com perdão dos michês)? Recentemente até um “instituto” foi criado para proteger com verbas e “prestígio” uma tropa de choque que se mantém num de plantão conservador: sempre prontos para atacar e desqualificar na mídia, sem direito à defesa, quem pensa diferente deles, e de seus contratantes.
Há, de uma forma geral, duas variações possíveis para este fenômeno. A primeira variação é composta de jornalistas alçados a posição de “especialistas” nisso e naquilo. Em geral são celebridades fabricadas cuja posição na mídia vira uma verdadeira posição política que serve, inclusive, como um lugar de negociação chave no leva e traz da política. Nesse aspecto, nada mais cínico no que a crítica supostamente contundente à falta de ética da nossa “classe política”, como se estes jornalistas não fossem também uma espécie de “classe política”, com um poder, às vezes, que pode até ser maior do que o de alguns deputados. É fato também que os jornalistas “especialistas”, além de terem altos salários, tornam-se palestrantes oficiais com gordíssimos cachês de um determinado círculo de poder dos quais são porta-vozes. Mas, no final das contas, eles são, sobretudo, porta vozes da própria corporação que os contrata, partes fundamentais do enunciado que deve se manter a qualquer preço: “nós representamos a opinião pública”; ou ainda, “a opinião pública somos nós”.
A segunda variação, com alguns pontos semelhantes ao primeiro caso no que se refere aos benefícios do lugar-social político a que estão alçados, eu mesmo descrevi num texto recente como um “(…)time dos intelectuais morto-vivos que passaram a manter uma esquisita relação com as grandes corporações de comunicação no Brasil. Estes são, em geral, ex-artistas e/ou intelectuais, que há pelo menos 20 anos não criam nada de relevante, mantidos como uma espécie de “autoridades intelectuais-celebridades” legitimados por estas corporações cujas posições políticas eles mesmos vivem para legitimar.”
A propósito, este processo teve recentemente dois atos exemplares. Primeiro a patética eleição do medíocre Merval Pereira para a academia brasileira de letras, segundo as ofensas racistas de um destes zumbis artístico-intelectuais –um grande artista no passado– a um ex-ministro de estado negro: duas demonstrações gratuitas de poder e de escárnio das corporações de comunicação e de sua tropa de choque, na mais velha lógica do “sabe com quem está falando” ou “não mexe com a gente, a gente faz o que quer”.
Mas nossas análises devem ir adiante. É preciso entender mais a fundo que fenômeno é este onde as instituições e símbolos de saber-poder viram grandes máquinas de desarticulação e esvaziamento de toda forma de saber que não as legitime como poder. Adianto que a história do conhecimento, de seus grandes movimentos produtivos e inventivos, muitas vezes aconteceu de fora para dentro destas instituições, ora precisando enfrentá-las, ora precisando escapar delas ou implodi-las por dentro. Eu arriscaria dizer que são nas instituições de conhecimento, mais do que em qualquer outro lugar, que se dá a tensão conhecimento x anti-conhecimento.
Pode parecer estranho, mas estas instituições se caracterizam tanto por serem notáveis máquinas de produção de conhecimento, quanto de ignorância. Mas, insistimos, o que chamamos ignorância não é necessariamente uma ilusão, uma tentativa de enganar os outros, é simplesmente o poder se estruturando e produzindo seus enunciados. Trata-se muito mais de um processo de intimidação do que qualquer outra coisa. Nessa lógica, faz todo o sentido o hábito corrente no Brasil de chamar alguém de “ignorante” quando age com estupidez e violência.
É por isso que acredito que devemos estudar o governo Lula e tudo o que aconteceu neste período sobre esta perspectiva particular: Lula como um dos maiores intelectuais políticos contemporâneos. Não se trata de nenhum culto a personalidade, como pode parecer, mas de entender o ato criador, também em política, na maneira como definiu o filósofo: “um ato solitário, mais de uma solidão povoada”. A criatividade de Lula dando um nó no dualismo “neo-liberalismo x nacional-desenvolvimentismo keynesiano” –mesmo que negociando e incorporando ambos– frustrando toda a expectativa catastrofista e preconceituosoa dos conservadores de um lado, e escapando ao programa pronto de uma certa esquerda “instituída” que queria “conduzir o povo” de outro. Os “anos Lula” devem ser estudados como um processo de empoderamento dos pobres, de mudança da estética social brasileira, até mesmo nas reversões e neoconservadorismos que aconteceram e tem acontecido no coração deste processo.
De fato, o intelectual e o ignorante estão muito mais perto do que parecem e, às vezes, isso pode ser até um grande alento. Lúcia Hipólito é neste caso exemplar: uma a uma das previsões feitas pela “especialista” na “crise política” de 2005/2006 deram errado. Mas LH continuou falando à vontade, nos veículos onde fala sozinha, monologando, ou com parceiros escolhidos: até o formato dos programas que ela faz parte é autoritário e burro. E que fique claro, não se trata da defesa de alguma forma de censura, trata-se de questionar porque estes pseudo-intelectuais de mídia jamais têm que enfrentar diante das câmeras quem os contestem, quem os coloquem diante de suas leviandades e mistificações baratas, ou quem lembre quem lhes paga seus altíssimos salários.
Mas o alento da ignorância é que a tão arrogante senhora foi vítima de seu próprio preconceito. Primeiro previu que Lula ia cair quando Zé Dirceu caísse, depois quando Palloci caísse, insistindo a exaustão que o governo Lula era apenas a continuidade da política econômica de FHC. E Lula não caiu. Não só porque ele não era um estúpido na mão de intelectuais da mesma classe que a da “cientista política” –única explicação que ela poderia encontrar para ele ter chegado ao poder–, mas também porque a política social foi a diferença da política econômica de Lula. E aí, caro leitor, não houve muita distinção entre a turma da nossa “especialista” midiática e a aristocracia intelectual pseudo-esquerdista de nossas universidades estatais; universidades que, para o horror dessa gente, passaram até por um início de processo de democratização no governo Lula.
O fenômeno Lula, com todas as limitações e contradições (que tem a ver inclusive com os resquícios da dualidade neo-liberalismo x desenvolvimentismo que restaram de seu governo), se caracterizou por um movimento de produção social e política que foi também o da produção de conhecimento. Lula transformou-se numa espécie convergência de forças, uma espécie de multitudo, que o segurava firmemente como presidente à medida mesmo que uma inventividade política ia desenhando transformações na sociedade brasileira e, de certa forma, aparecendo como perspectiva de novidade política para o continente e para o planeta.
Os anos Lula, por exemplo, colocaram os Estados Unidos e a Europa diante do óbvio, o que todo mundo sabe na mesma proporção que silencia: não há outro caminho, para os países que não param loucamente de despejar dinheiro nos bancos do que o empoderamento dos pobres. O problema não é nem o crédito, e nem fazer alguma espécie de crítica moral ascética ao dinheiro, mas quem vai gerir e para onde vai a política de crédito e o dinheiro. O óbvio ululante –com trocadilho– é que a saída para os EUA e para a Europa está no empoderamento de seus pobres, mas este empoderamento é tabu porque os pobres dos países do norte são na maioria não brancos: imigrantes e filhos de imigrantes. A estética social mudaria lá, como aqui. Enquanto o stabeleshment do Brasil clama pela “porta de saída” do bolsa-família, uma política de renda mínima e de desprivatização do crédito parece ser a porta de entrada para os nossos primos do hemisfério norte. Se de um lado chamar a política social que torna os pobres produtivos de “assistencialismo”, e insinuar que estes não iriam mais trabalhar graças a ela, faz no Brasil qualquer bocó ganhar um título de “imortal” dos nossos “acadêmicos”, a parasitagem escandalosa dos bancos europeus e estadunidenses no dinheiro público é vista por essa gente como uma espécie de mal necessário.
Na verdade Lucia Hipólito até parece bem mais forte e capaz, do ponto de vista intelectual e político, que seu colega recentemente nomeado para a ABL. Tenho a impressão que no fundo ela sabe disso, e por isso mal consegue esconder o quanto teme Lula como expressão de uma multidão falante, desejante e criativa. Neste sentido o câncer de laringe de Lula foi quase que celebrado pela funcionária das organizações globo: “quem sabe ele agora não se cala”, parece ter pensado.
Lula, por sua vez, já há algum tempo não esconde o seu lado clown: um escracho e um deboche que desmonta a arrogância dessa gente com maestria. O que me lembra Zé Celso em 2006, no Teatro Oficina, saindo em defesa de Lula e exaltando as suas virtudes de ator: a potência do político ator, oposta à falácia da impotência. O problema para gente como Lúcia Hipólito é que esta é uma atitude que vai se construindo e se estabelecendo socialmente, não porque todos se influenciem pelo “grande líder”, mas porque Lula potencializa o que sempre se produziu como resistência, micropolítica que fosse, nas relações entre os pobres e o poder. E assim, pouco a pouco, vai se desmascarando esta empáfia vazia, esta arrogância bem escovada, a fragilidade e o ridículo de alguns dos nossos “cultos”, tornando a nossa “cientista política” cada vez mais parecida com o tal que foi “eleito imortal”.
Aliás, em relação a este “caso”, como diz uma amiga minha, só rindo muito mesmo.