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Debate: Balibar e Mezzadra sobre a refundação da Europa

Reforçando o dossiê sobre os caminhos da crise no velho mundo, a UniNômade Brasil publica artigos do recente debate entre dois pensadores europeus da crise por que passa o continente. No primeiro, publicado no jornal francês Libération em 2 de maio, Étienne Balibar propõe recompor uma Europa fraturada pela insegurança social, desigualdade e competitividade destrutiva, onde reacende perigosamente a chama de velhos-novos nacionalismos. No segundo, uma réplica pelo cientista político Sandro Mezzadra, publicada no OpenDemocracy em 13 de maio, a refundação da Europa está associada invariavelmente a uma ruptura com o atual estado de coisas. Ao contrário de Balibar, não acredita numa restauração da União Europeia que não venha da multiplicidade de recusas, movimentos e lutas já em andamento. Uma recomposição muito além da pauta do welfare baseado seja no nível nacional, seja europeu. Isto é, uma alternativa constituinte que seja construção radical do outro mundo possível, aqui e agora.

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Uma refundação da Europa de baixo para cima

Por Étienne Balibar | Trad.: UniNômade Brasil

Uma vez mais, alerta geral! O velho “golpe” franco-alemão, motor ou freio da construção europeia, em função de quem você consulta, está à beira da implosão. Devemos dizer algumas verdades a nossos vizinhos, que podem se tornar nossos mestres; ou devemos começar a fazer a faxina diante de nossas portas, e aceitar compromissos que podem evitar a ruína? Melhor do que isso, acredito, é compreender o que se passa com o conjunto europeu, em que todos os elementos ou afundarão ou se salvarão ao mesmo tempo. Ora, a construção europeia naufragou ao bater no obstáculo orçamentário. Na opinião pública, a União Europeia está desacreditada. Isto não impede que ainda exista um sistema político único, nem nacional, nem verdadeiramente federal, mas acumulando os efeitos negativos de cada nível, que, aliás, comandam tudo. Nós vimos bem os recentes desdobramentos da Itália e França.

A Itália paga, em meio a uma ingovernabilidade que parece irreversível, pelo vício dos anos de berlusconismo e da “revolução pelo alto”, que, devido às injunções de Bruxelas e Frankfurt, levou ao governo uma equipe de tecnocratas estreitamente ligados ao sistema financeiro internacional. Ela tenta escapar passando do parlamentarismo ao presidencialismo, mas essa tentativa acontece sobre uma união nacional fictícia, privada de qualquer base popular: o sucesso não é nem um pouco garantido.

A França, que dizem preservada da instabilidade pelas instituições da 5ª República, também prova um revés. Eleito sobre a promessa de inverter o crescimento da insegurança social, sem no entanto poder, ou querer, entrar em conflito com um capitalismo financeiro que controla todas as iniciativas; o presidente Hollande está reduzido à impotência. Suas tentativas de contrabalançar a situação federando a “Europa Latina”, bem como seus apelos aos vizinhos para ir combater o terrorismo na África, fracassaram, e ele não pode senão oscilar entre a impopularidade e a “punição” dos mercados, com o risco de ganhar os dois. Ingovernabilidade de um lado, imobilidade do outro, isso é o que nós chamamos uma crise sistêmica.

Bem entendida, essa crise tem origens nacionais. Mas resulta também de condições europeias como um todo, traz consequências para toda a União que, inevitavelmente, se agravarão se nenhuma solução de conjunto for produzida. O que é golpeado hoje não são somente as “periferias” da Europa, são esses dois países fundadores da comunidade, a Itália e a França, os mais poderosos depois da Alemanha. Uma vez que o estabelecimento de instituições federais fracassou, pois nenhum estado realmente as queria, as políticas ainda são decididas de acordo com relações de força entre os estados-membros. A paralisia é inevitável, quando não a desagregação total. Mas os povos que voltam as costas à União serão as suas primeiras vítimas.

É importante entender as causas profundas da situação, se queremos descobrir uma rota de saída. Vou sublinhar duas causas cruciais. A primeira pode ser compreendida a partir de uma única palavra: desigualdade. Primeiro e acima de tudo: desigualdades sociais, afetando cada país (mesmo a Alemanha), mas disseminada de maneira igualmente desigual entre os países e as regiões — desigualdade dentro de desigualdade, se poderia dizer, ainda piorada, e dramaticamente piorada por uma crise que conduz certos países mediterrâneos a uma brutalidade não muito distinta da guerra. A atual fragmentação da sociedade é o oposto das metas proclamadas da União. É improvável que os sistemas representativos venham a suportar a situação por muito tempo, e absurdo pensar que se possa reestruturar a política da comunidade sem adentrar nesse tema, através de algum modo e recomposição do welfare público.

O que nos leva à segunda causa: a ressurgência dos nacionalismos, que afligem tanto os poderes europeus “dominantes”, quanto “dominados”. Pode ser bem que o projeto Europeu tenha subestimado a resiliência do nacionalismo, não só devido a fatores culturais ou traços deixados pelas grandes tragédias do século 20, mas também por causa do fato que as seguranças sociais e solidariedades tinham sido primeiro e acima de tudo construídas ao redor da noção de coesão nacional. Ainda, é certo que uma deriva em direção à união monetária, a serviço de uma ordem puramente competitiva, tenha despertado na Europa uma guerra do tipo “peixão come peixinho”, quando o mais forte vai esmagar o mais fraco, bem antes de se deixar expor ao choque da globalização, num jogo em que todos são reduzidos ao status de mero peão.

Confrontado com tais desdobramentos, não existe solução simples. Faz-se necessário reunir as opiniões atualmente hostis entre si, junto da derrocada de tendências que se tornaram sacrossantas. Ainda com mais razão, precisamos imediatamente contemplar uma reestruturação da União, com o propósito de construir outra Europa.

A última tarefa — como Ulrich Beck corretamente ressalta no seu último livro — só pode vir “de baixo para cima”, de uma evolução desimpedida das iniciativas dos cidadãos, variando desde debates a protestos ou mesmo a revolta continuada, em face dos efeitos desdobrados da crise. Mas sob uma condição: que o protesto não derive ele mesmo num estado de vitimização majoritária e nacionalista, e que prove ser capaz de propor alternativas que façam sentido à maioria dos cidadãos pelo continente.

Para ser exato, a emergência de uma liderança histórica seria necessária — junto com uma proposta política audível para cada e qualquer um, em seus respectivos idiomas. Alguns mencionaram um New Deal europeu. Obviamente, ele não virá da Sra. Merkel. Eu sustentaria, no entanto, que deve vir da Alemanha, ou será difundido a partir da Alemanha, não porque a Alemanha seja “o centro de todas as coisas”, mas porque a primeira tarefa consiste em persuadir a população alemã a trocar os benefícios (relativos) que usufruem graças a sua imaginária superioridade econômica, em prol do interesse comum de longo prazo. Isto levanta uma série inteira de “ses”, cada um dos quais é difícil, e o sucesso geral bastante improvável. E é por isso que eu insisto em sua necessidade.

Publicado originalmente em La Libération, em 2/5/13.

Tradutor: Bruno Cava

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A ruptura da cidadania europeia

Por Sandro Mezzadra | | Trad.: UniNômade Brasil

Sim, Étienne Balibar está certo: precisamos imediatamente contemplar uma reestruturação da União, com o propósito de construir outra Europa”. Deveríamos ser gratos a ele, tanto pela ênfase no “imediato” quanto no “reestruturar”. Existe uma necessidade de agir agora na Europa, e essa ação não pode assumir como certa a existência de forças políticas a ser mobilizadas, coalizões sociais capazes de suportar tal mobilização, energias intelectuais a ativar-se, e canais e quadros institucionais a lidar-se.

O que é necessário em cada um dos níveis é uma campanha fundacional, capaz de transformar as forças existentes e as instituições, criando novas, canalizando lutas sociais e “indignação” em direção ao “propósito de construir outra Europa” — uma capaz de produzir novas linguagens políticas e imaginários culturais. Uma campanha fundacional ou constituinte, como eu digo: que não é a mesma coisa que uma campanha por uma “assembleia constituinte” na Europa, para o que todas as condições estariam muito ausentes. O que tenho em mente é projeto para uma década, capaz de radicalmente reinventar ao mesmo tempo o espaço europeu, seu lugar num mundo em desordenada mutação, suas instituições, sua cidadania baseada numa nova conjunção entre liberdade e igualdade. Deveria acrescentar que tal reinvenção precisa ao mesmo tempo incluir a reinvenção da esquerda na Europa? Se a esquerda tem um futuro nesta parte do mundo, estou convencido que esse futuro precisa ser construído em escala continental.

Nós deveríamos estar conscientes da dimensão global dos desafios que atualmente confrontam-nos aqui na Europa. Podemos estar certos que a desintegração de velhas hierarquias espaciais e a emergência de novas geografias da acumulação e desenvolvimento capitalista figuram proeminentemente entre as tendências incorporadas na crise econômica global. Novos regionalismos e novos padrões de multilateralismo estão se formando em várias partes do mundo, um tipo de “deriva continental” (para usar a imagem geológica empregada por Russell Banks em seu romance famoso de 1985,  com o mesmo título) está redesenhando o mundo. Dentro desses processos, a Europa está se tornando cada vez mais provincializada, embora não necessariamente no sentido sugerido por Dipesh Chakrabarty, em seu importante livro de 2000.

Isso não é algo ruim em si mesmo. Muito pelo contrário: mas para colher as oportunidades políticas inerentes à provincialização da Europa, precisamos de ação política e governo em escala continental. Precisamos de uma Europa política. Sem isso, só podemos esperar algumas ilhas de riqueza e ricos, elevadas sobre o mar de pobreza e privação — algo que nós já estamos começando a experimentar no sul de nosso continente. Além disso, somente em escala continental é possível imaginar a construção de uma relação de força favorável com o capital financeiro, cuja predominância no capitalismo contemporâneo está na raiz da crise, numa mediação política (na democracia se você preferir colocar desse jeito) tão aparente na Europa hoje em dia.

Este não é o lugar para explorar plenamente as implicações desse tipo de vislumbre sobre a questão europeia (que precisa, por exemplo, conduzir à discussão de uma nova base de relações entre a Europa e os EUA). Mas é importante ter em mente a relevância do tópico, aqui brevemente evocado, para qualquer pesquisa crítica sobre a situação atual da Europa. No que sobra desta curta resposta, no entanto, quero concentrar noutra coisa. Falar de campanha fundacional significa levar em conta a necessidade de ruptura, de maneira a pavimentar o caminho para “outra Europa”.

Penso que seja importante estar consciente da extensão do que, no despertar da crise global, uma ruptura já havia se manifestado, bem no coração do quadro institucional europeu. Pertenço àquelas pessoas que, desde meados dos 1990, tentaram trabalhar “dentro e contra” o conceito emergente da cidadania europeia, especificamente onde os movimentos e lutas da migração incidiam. Embora não queira descartar aquela experiência, que também teve seus momentos teóricos na tentativa de desafiar as fronteiras da noção tradicional de cidadania; é impossível não cair na real para enxergar as transformações dramáticas que impactaram a cidadania europeia nos anos recentes. Tanto do ponto de vista do “pertencimento”, quanto da arquitetura institucional, estamos diante de uma crise profunda na cidadania europeia ela mesma.

Para dizer de modo brusco: o conceito de cidadania europeia foi arrancado de qualquer significado “progressista” ou “positivo” aos olhos da vasta maioria da população europeia, particularmente no sul do continente, onde ela é amplamente identificada com a aplicação ininterrupta de medidas de austeridade. Ao mesmo tempo, como muitos juristas perceberam, todo o projeto de “integração pela lei”, a marca registrada da integração europeia, se deparou com seus próprios limites e contradições em anos recentes. Desestabilizou-se o equilíbrio entre o supranacionalismo legal e os processos de barganha política que lhe são subjacentes: os processos legais desenvolveram constantemente uma dinâmica autônoma, integrando novas alianças com as maquinarias burocráticas europeias e grupos de interesses.

O que emergiu disso foi a cristalização de um novo agenciamento de poder, capaz de ditar padrões e normas cada vez mais restritivos do campo de ação para qualquer política. Com o Compacto Fiscal e o Mecanismo de Estabilidade Europeia — a camisa-de-força da estabilidade monetária, a disciplina fiscal e os programas de austeridade se tornaram ainda mais entrincheirados, consolidando a posição (e a independência) do Banco Central Europeu, dentro do agenciamento de poder.

É difícil imaginar outra Europa política sem enfatizar ao mesmo tempo a necessidade de romper com essa camisa-de-força e o agenciamento de poder. Frases tais como “falência [default] democrática” (G.D. Majone), “preempção de democracia” (F. Scharpf), a agudização da natureza “elitista” e “pós-democrática” da União Europeia (W. Steeck) — estão circulando largamente no debate sobre a crise europeia, na medida em que os europeus tentam apreender suas implicações políticas.

Se uma dialética entre as dimensões “insurrecional” e “constitucional” da política, para se apoiar nos termos de famoso ensaio por Étienne Balibar, está inscrita no próprio conceito de democracia moderna, o que pode ser dito é que, na Europa hoje (tanto no nível nacional quanto da União), essa dialética parece estar interrompida. O que resulta dessa interrupção é uma divisão atravessando os conceitos de política e democracia. Os momentos contestatório e “insurrecional” persistem dentro das lutas e movimentos sociais, mas não encontram nenhum tipo de feedback nas instâncias governamentais e “constitucionais”. O que sobrou no nível nacional da “democracia contenciosa” (citando de novo Balibar), na base do desenvolvimento do estado democrático de bem estar, está sendo atualmente desmontado ou colocado sob pressão, enquanto nenhum substituto disso está à vista no nível europeu. Apesar de muitos acadêmicos e comentadores estarem convencidos de que o Tratado de Maastricht iria lançar os fundamentos da UE precisamente devido à reconstrução dos sistemas de welfare, hoje é uma questão de realismo político declarar que nada parecido com isso de fato ocorreu.

Desnecessário dizer, esse tópico deveria figurar proeminentemente na “campanha fundacional” que eu estava evocando no começo deste artigo. Não é possível imaginar uma reconstrução dos sistemas de welfare no nível europeu segundo o esquema do welfare histórico. Muita coisa mudou, e mudou radicalmente, na estrutura do capitalismo e na composição do que nós podemos chamar, com Marx, de “trabalho vivo” contemporâneo. Pense apenas nos debates ao redor do tema da precariedade, dos novos padrões da migração, e da transformação da estrutura familiar para esse propósito. Lutas e movimentos sociais ao redor desses assuntos se espalham ao longo do continente. Qualquer campanha por “outra Europa” não é concebível sem uma coordenação crescente e mais intensa entre eles.

“É a falha escandalosa da esquerda europeia que foi ignorada, ao identificar e definir a solidariedade europeia”, escreve Bo Strath, comentando o artigo de Balibar. Eu não poderia concordar mais. O que gostaria de acrescentar é que essa “falha” está profundamente conectada com a miopia da esquerda em face de transformações profundas do trabalho, acompanhadas por reivindicações emergentes de uma nova composição social. A Europa pode fazer sentido somente desde que se torne um espaço onde essas reivindicações possam ser articuladas num projeto capaz de ser, ao mesmo tempo, radical e efetivo. Caso se torne um espaço onde seja mais viável lutar contra a pobreza, a exploração e a discriminação — que seja mais fácil se livrar do medo que a crise esteja se difundindo pelo tecido social. Lutar contra a “ressurgência do nacionalismo” e a ascensão de novas formas de fascismo na Europa é primeiro e principalmente lutar para erradicar esse medo.

Quando falo em “campanha fundacional”, não estou pensando numa campanha centralmente organizada, única. É necessário antes a construção de um “espírito fundacional” através de uma multiplicidade de iniciativas, articuladas em distintos níveis, e realizadas em diferentes lugares e fóruns (das ruas ao Parlamento Europeu, se você preferir). É por isso que, talvez com otimismo, esteja escrevendo sobre um projeto para uma década. Estou perfeitamente consciente do fato que os prospectos de tal projeto não pareçam particularmente encorajadores neste momento. Eles residem, novamente citando Balibar, numa “série inteira de ‘ses’, cada um dos quais é difícil, e o sucesso geral bastante improvável.” Isto não é apenas um lembrete da dificuldade da tarefa que nos interpela: mas nada do que possa ser dito nos repele de sua realista necessidade. No final do dia podemos de alguma forma ironicamente lembrar que foi Max Weber, o realista político, quem disse que, sem “esticar a mão para o impossível”, o possível jamais poderia ter sido pego.

Publicado originalmente em OpenDemocracy, em 13/5/13.

Tradutor: Bruno Cava

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