por Bruno Cava, 12 de março de 2020
Quem tem acompanhado os últimos textos de Giorgio Agamben, deve ter reparado como ele inscreve as respostas dos governos à pandemia como intensificação do paradigma biopolítico totalitário. Seguindo a linha de sua pesquisa desde a trilogia “Homo sacer”, o filósofo italiano diagnostica um avanço do estado de exceção, isto é, uma virada dos modos de governar: o que antes era entendido como exceção se torna o novo normal. O controle sobre os corpos individuais e coletivos vira pervasivo e passa a abarcar a inteira população dentro de uma malha de saberes médicos, psicológicos, policiais-penais e laborais. Daí seus últimos artigos que, diante de uma epidemia “inventada”, indicam um conjunto de ações “irracionais” e “imotivadas” a reforçar o investimento do soberano sobre o poder de vida e morte da população.
Desde meus estudos em filosofia do direito, reparo como a obra agambeniana se presta a uma verdadeira quarentena mental na mão de epígonos e intérpretes autorizados. Digo isso tendo escrito um livro com Alexandre Mendes, em 2008, em que incorri eu mesmo nessa toada catastrofista. Isso se deve, sobretudo, aos artigos do Agamben no varejo. Por exemplo, o conceito schmittiano de “estado de exceção” foi reintroduzido por ele, com grande sucesso de público e crítica, para explicar o redirecionamento estratégico da geopolícia após os atentados de 11 de setembro de 2001, na chamada ‘Guerra ao Terror’. A partir daí, teria acontecido uma virada biopolítica em que a exceção do superterrorismo passava a estar capturada (forcluída, ex-capere) pelo terrorismo de estado, doravante convertido em norma.
O conceito de biopolítica, contudo, foi criado por Michel Foucault para descrever uma cartografia dinâmica de estratégias e contra-estratégias, condutas e contracondutas, em que mais do que o avanço de um totalitário poder soberano, se dá uma mutação no modo como o poder é exercido, circula e suscita novas relações. Na analítica foucaultiana do biopoder, na grande transformação das sociedades de soberania para as sociedades biopolíticas, não há um decréscimo de liberdade ou margem de ação, nem tampouco um aumento. Na verdade, o problema da liberdade como um todo muda de coordenadas e regime de funcionamento: o que antes se apresentava como uma relação externa entre soberania e não-soberania, entre dentro e fora, agora se reverte numa relação interna, em que as tecnologias de poder se embrenham na constituição dos sujeitos. Em vez de práticas de libertação em relação a um poder repressivo, para Foucault, temos agora práticas de liberdade que, no campo estratégico dos limiares, remete a liberdade *para o interior* do paradigma biopolítico.
Essa ambivalência constitutiva do conceito de biopolítica é fulminada quando a exceção/captura do fora (forclusão, ex-capere) é entendida agambenianamente como um novo totalitarismo, aliás, uma categoria bem pouco utilizada por Foucault. A rigor, o movimento do conceito sofre uma estagnação e se perde, dando lugar a uma categoria escatológica que meramente passa a indicar sinais do avanço inexorável de uma totalidade. E como categoria, vai se prestar a divisar um lado bom de um mal, com a agravante do lado mal estar vencendo o bom, estar capturando-o, neutralizando-o. Assim entendido, o estado de exceção não passa de metafísica dogmática, no sentido negativo que lhe confere Kant. É por isso que o catastrofismo do estado de exceção costuma se engrenar tão bem com as leituras de que o neoliberalismo é um jogo de gato e rato em que os mercados capitalistas estão sempre capturando e totalizando uma mistificada liberdade preexistente, anterior à chegada do biopoder.
Falo isso porque, em meio à pandemia, emerge do paradigma biopolítico, de dentro dele, uma série de estratégias e contradutas que reelaboram a vida em meio à situação de medo, privação e sofrimento. São várias ações ligadas à difusão de informações, articulações locais e globais de prevenção e uma difícil reorganização do cotidiano metropolitano e laboral, com o que as populações, estrategicamente, se acoplam a tecnologias existentes de governo. É dentro desses umbrais e zonas cinzentas que está sendo jogado o jogo da liberdade: o que amanhã será considerado aceitável ou não, vivível ou não, os termos do que será normal.
Vale anotar como duas medidas recentes também se inserem no painel dessas estratégias. Me refiro, primeiro, à antecipação imediata do salário dos aposentados e, segundo, ao reajuste do valor dos benefícios sociais para o ano que vem. Medidas assim, que poderiam incluir antecipação do saque do fundo de garantia e outros adiantamentos, não são inéditas e costumam acompanhar calamidades, dirigidas a grupos mais afetados. Na atual pandemia, o grupo de maior risco engloba pessoas idosas, enfermas e com quadros de vulnerabilidade crônica. Mas poderíamos acrescentar: pessoas mais pobres, que tendem a habitar territórios mais vulneráveis ao contágio, com menos condições para obter os ativos biopolíticos (medicina, informação, assistência etc). Essas medidas de compensação salarial também são biopolíticas, pois permitem o acoplamento de contracondutas e estratégias de viver melhor na pandemia ou suas consequências.
Durante todo o século 19, houve um esforço dos economistas em eliminar a moeda como variável real das equações econômicas. O dinheiro não passaria de uma variável nominal, desligada dos fundamentos substantivos da economia de fato, como a produção, o emprego, o consumo. A moeda neutra não passaria de óleo lubrificante para as trocas, ficando no vestíbulo do que verdadeiramente geraria riqueza: o setor produtivo. Essa tendência clássica do pensamento monetário caiu por terra na primeira metade do século 20, quando as duas principais escolas – keynesiana e monetarista – reinseriram a moeda como elemento essencial da vida econômica.
No keynesianismo, por exemplo, as variações da moeda absorvem pressões sociais de várias ordens: conflitos distributivos, relações de classe, dinâmicas políticas e acontecimentos extraordinários, como guerras, revoluções e catástrofes. O salário, especialmente, se torna uma variável rígida, quer dizer, diretamente dependente de situações extraeconômicas. Há mais do que isso, contudo, na virada keynesiana. Não é que essas pressões desequilibrariam uma dinâmica de mercado de outra forma naturalmente equilibrada, perturbando as leis econômicas que determinam a formação dos preços. Na realidade, no século 20, o desequilíbrio é constitutivo, a formação dos preços é irredutível ao modelo racional-mecanicista tributário da Ilustração, e ao economista se torna incontornável internalizar no “cálculo” uma miríade de questões dos mais diversos campos, a começar pela história.
No século 20, a moeda deixa de ser mediação para o que seriam os fatores reais ou produtivos da economia (ou da guerra), tornando-se ela própria o terreno principal das condutas e contracondutas. Há toda uma literatura supercrítica das finanças como o avanço do totalitarismo neoliberal e, em particular, como o estado de exceção se desenvolve no interior da financeirização da vida. No livro que Giuseppe Cocco e eu escrevemos, ainda no prelo, e continuando o nosso “Enigma do disforme” (2018), expomos como essas teorias catastrofistas na verdade nos colocam, epígonos e intérpretes, em quarentena mental. Seguindo Foucault, pegamos a biopolítica em sua polivalência estratégica, para mostrar como a moeda se torna o terreno também das práticas de liberdade e da reinvenção dos modos de governar. Não existe uma questão da moeda na economia: a moeda é a questão econômica por excelência no paradigma biopolítico. Por isso, nesse livro, falamos em moeda viva, em biomoedas, que já estão entre nós, enxertadas no “cálculo”.
Nesse sentido, as biomoedas acompanham as transformações das tecnologias de governo, sobretudo na governamentalidade neoliberal. Se os teóricos de inspiração agambeniana não cansaram de apontar nas políticas de expansão salarial dos anos 1990-2000 (bolsa família, salário mínimo, BPC, crédito etc) um avanço do estado de exceção, ou seja, uma intensificação do totalitarismo biopolítico daí por diante socializado através da inclusão, nós anotamos como essas políticas salariais propiciaram imediatos acoplamentos para as práticas de liberdade, um novo paradigma da liberdade que acompanha as biomoedas. Enxergamos, portanto, como a estabilização da inflação, a transferência de renda ou, mais taticamente, antecipações governamentais de renda são ajustes biopolíticos que se inscrevem imediatamente na luta pela democracia.
O alastramento do coronavírus nos pandemiza a todos, desnudando os pressupostos que definem nosso dia a dia. Força-nos a pensar, para fora das quarentenas mentais e do isolamento que o pânico provoca. Se podemos enxergar com clareza como dependemos das condições biopolíticas para sermos livres e viver bem, quem sabe podemos vislumbrar a reapropriação dessas condições para uma democracia renovada.
—
PS. O livro no prelo deve ser publicado em agosto, pela editora Mauad.