UniNômade

Depois do livro, imprimamos a carne

Por Paul B. Preciado, em Parole de queer | Tradução e adaptação: Inaê Diana Lieksa

3d

Que sexo gostaria se pudesse desenhá-lo com uma impressora biológica 3D?

Não vou falar de Donald Trump. Vou falar da possibilidade de imprimir um órgão sexual com uma impressora biológica 3D. Talvez seja outra maneira de responder a Trump. Até hoje a transformação anatômica de um corpo transexual implicava um duplo processo: a destruição do aparato genital e esterilização. Isto se passava, e ainda passa, na maioria das operações de vaginoplastia e faloplastia. Essas cirurgias são a secularização técnico-científica de um ritual de sacrifício no curso do qual o corpo trans é submetido a um suplício, mutilado e incapacitado para todo processo de reprodução sexual. O objetivo não é a intensificação vital do corpo (ao que chamam de saúde, prazer, ou bem-estar), senão a reafirmação da norma falocrática e da estética heterossexual penetrante-penetrado.

Teremos logo, sem sombra de dúvidas, a possibilidade de imprimir nossos órgãos sexuais com uma bio-impressora 3D. A bio-tinta se fabricará a partir de um composto de agregados de células mãe provenientes do corpo ao qual o órgão está destinado: esse órgão será primeiro desenhado por um computador antes de ser implantado no corpo que o reconhecerá como seu. Esse processo já foi experimentado para imprimir órgãos como o coração, o rim, ou o fígado.

Curiosamente, os laboratórios de investigação não falam da impressão de órgãos sexuais. Evocam limites “éticos”. Mas, de que ética se trata? Por que é possível imprimir um coração, mas não um pênis, uma vagina, ou um clitóris? Não seria, em algum caso, possível imaginar uma quantidade n+1 de órgãos sexuais implantados? Devemos considerar a diferença sexual como limite ético da transformação do corpo humano? Lembremos de quando Johannes Gutenberg declarou em 1451, que era capaz de imprimir 180 cópias da Bíblia (suposta palavra de Deus) com 42 linhas de texto por página em somente algumas semanas (pois até então eram necessários 2 anos para fazer uma cópia a mão), ele não só foi considerado imoral, senão também herege. Hoje, sabemos conceber uma impressora biológica 3D, mas não somos capazes de utilizá-la livremente. Nossas máquinas são mais
livres que nós.

Em pouco tempo deixaremos de imprimir livros para imprimir carne. Entraremos numa nova era de escritura biológica numérica. A era de Gutenberg se caracterizou pela dessacralização da Bíblia, a secularização do saber, a proliferação das línguas vernáculas frente ao latim, e a multiplicação de línguas politicamente dissidentes. Entrando na era Gutenberg biológica 3D, conheceremos a dessacralização da anatomia moderna como linguagem viva dominante.

Os regimes da hegemonia masculina e da diferença sexual (que ainda prevalecem hoje em dia, apesar de estarem em crise desde 1968) são equivalentes no domínio da sexualidade ao que o monoteísmo religioso foi à teologia. Da mesma maneira que parecia impossível (ou sacrílego) para o Ocidente medieval pôr em dúvida a palavra divina, parece hoje aberrante pôr em dúvida o binarismo sexual. Porém, só se trata de categorias históricas, mapas mentais, limitações políticas à proliferação indefinida da subjetividade. As lógicas do binarismo sexual e da diferença entre homossexualidade e heterossexualidade são os efeitos da submissão da potência de um corpo a um processo de industrialização da reprodução sexual. Nossos corpos não são reconhecidos como potenciais produtores de óvulos ou espermatozoides que se submetem à cadeia familiar fordista na qual estão destinados a se reproduzir.

Masculinidade e feminilidade, heterossexualidade e homossexualidade não são leis naturais, senão práticas culturais contingentes. Linguagens do corpo. Estéticas do desejo. A possibilidade de desenhar e imprimir nossos órgãos sexuais nos enfrentará a novas questões. Não só com que sexo anatômico nascemos, senão que sexo queremos ter. Da mesma forma que os corpos trans decidimos intencionalmente introduzir variações hormonais ou morfológicas que podem ser reconhecidas exclusivamente como masculinas ou femininas segundo os códigos binários de gênero, será possível implantar multitude de órgãos sexuais num corpo. Será possível ter um pênis com clitóris, ou nenhum dos dois, ou um terceiro braço no lugar do pênis, ou um clitóris no plexo solar, ou uma orelha erotizada consagrada ao prazer do sexo auditivo. Virá o tempo da estética contrassexual definida não pelas leis da reprodução sexual ou da regulação política, senão pelos princípios de complexidade, de singularidade, de intensidade e de afeto.

X