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Devir-índio das lutas

Por Bruno Cava

Raoni

Em abril deste ano, mais de 200 índios ocuparam o plenário da Câmara dos Deputados, em Brasília. Protestavam contra um projeto que transfere a decisão final para a demarcação das terras indígenas do Poder Executivo ao Legislativo. Os índios chegaram sem aviso, tomando de assalto o plenário. Vários deputados fugiram amedrontados, enquanto outros ficaram para assistir, atônitos, à algazarra raivosa e alegre. Os índios sabiam que não podiam contar com um parlamento sem representatividade, nada confiável, cuja pauta conservadora vai da vedação ao casamento homoafetivo ao horror em legalizar o aborto, que ainda é crime no Brasil.

Um mês antes, outros ativistas indígenas – tucanos, guaranis, pataxós, guajajaras e outros – foram removidos da Aldeia Maracanã, adjacente ao estádio. Erguida em 2006 num terreno baldio ao lado do desativado Museu do Índio, com o propósito de transformar-se num centro de referência indigenista, a aldeia congregava dezenas de índios de várias tribos. Ela vinha ameaçada há alguns meses em razão das obras de preparação do complexo do Maracanã para a Copa do Mundo de 2014.

A resistência ao “urbanismo de choque” reuniu militantes, punks, estudantes, anarquistas e coletivos revoltados com o processo mais amplo de higienização por que passa a cidade do Rio de Janeiro. Não foi suficiente, diante do rolo compressor a serviço dos megaeventos e seus interesses de classe: os ocupantes foram removidos em truculenta ação policial, enquanto os telejornais se limitavam a noticiar que a operação atrapalhava o trânsito.

No ano passado, durante a conferência da Rio+20, os indígenas protagonizaram os momentos mais críticos dos protestos contra a cúpula global das sociedades de estado. Eles ocuparam a sede do Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social, o banco federal que administra diversos fundos públicos para reinvesti-los segundo as diretrizes do governo. É um dos principais financiadores das grandes obras e projetos do neodesenvolvimentismo brasileiro. Toma-se emprestado da poupança popular e fundos dos trabalhadores para aplicar conforme as altas e inacessíveis razões da ciência estatal.

Como, por exemplo, na construção da gigantesca usina hidrelétrica de Belo Monte, no Rio Xingu. Seu canteiro de obras foi ocupado no começo de maio por cerca de 150 índios indignados, principalmente do grupo Mundukuru. Também dobrados pelo cerco das forças federais, ajudado pela completa surdez da grande imprensa, semanas mais tarde. Voltando à Rio+20, em junho de 2012, foram os índios os únicos a confrontar diretamente a conferência internacional. Cerca de 500 indígenas se destacaram da marcha de movimentos sociais, que incluía os tradicionais Movimento dos Trabalhadores Sem Terra e Via Campesina, cujas lideranças já haviam transigido, comportadamente, em não avançar sobre a área de segurança ao redor do pavilhão de eventos. Os índios rejeitaram o acordão e partiram para cima de um dos bloqueios militares, levando o governo e negociar o acesso para doze caciques presentes.

Entre os doze, estava Raoni, 80 anos, o chefe guerreiro caiapó que, desde a ressurgência do indigenismo brasileiro no final dos anos 1970, vem lutando pela reconquista das terras, direitos e riquezas para a população indígena. Em entrevista recente, Raoni disse que tem trabalhado para vencer a presidenta Dilma. O cacique se refere ao desafio não só das mobilizações indígenas, como também do campo da esquerda, em combater ações de um governo sucessor dos anos Lula que justifica a violência de classe e raça com o desenvolvimento econômico, a integração do país e a inclusão social.

Não se coloca em questão a integração massiva no mercado de trabalho e consumo nos últimos quinze anos, segundo o padrão furtadiano de desenvolvimento com base na “economia interna”, industrialização e geração de emprego, o que tem guiado boa parte do pensamento econômico sobre o subdesenvolvimento. O que se questiona é como os dínamos dessa modernização acabam por moer as minorias e formas alternativas ao Brasil Maior, ao “Brasil que deu certo”, para produzir a paçoca do novo trabalhador brasileiro. Exaltado em sua diversidade proverbial, achatado contudo na feição integrada e obliterante ao mercado mundializado, suas exigências de engajamento ao trabalho, autoempreendedorismo e precariedade. A conscrição em massa a participar do novo Brasil do trabalho unificou o espectro ideológico, uma disputa de projetos de gestão (mais estatal, ou mais mercado). Cimentam-se as classes e raças, e todos os agregados sociais a quem se atribui o “arcaico” e a “pobreza”,  no consenso nacional-desenvolvimentista, da esquerda à direita, dos anos 1950 ao novo século: enfim realizado e mesmo dignificado em sua grande missão civilizatória contra o atraso e o absenteísmo.

Em vez da conclusão de que aconteceu um abandono generalizado do caráter de esquerda, pelas organizações e grupos que tradicionalmente assim se reinvindicam, — o que costuma conduzir ao velho tribunal esquerdista de traições e linhas justas, numa quase neurose de estar sempre “mais à esquerda” — trata-se de mudar a própria noção do que seja luta de esquerda hoje.

Não é outra a definição de classe – senão luta contra um esforço político de unificação, que escamoteia as divisões internas do tecido social a serviço de metas econômicas inaceitáveis. Nesse esforço, capitula a boa consciência do “menos pior”. O devir-índio das lutas no Brasil, que vem entusiasmando coletivos e militantes de várias tendências, é uma via transformadora de tudo isso que insiste em se filiar à tradição dos resistentes. Sem nenhum romantismo, sem mito do “bom selvagem”, a radicalização de uma recusa.

Publicado originalmente no Quadrado dos loucos

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