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Rio, redes e ruas

Por Pedro Mendes, UniNômade .

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O Império Ataca!

Na passagem de 2007 para 2008, estourava a maior crise econômica desde 1929, de proporções verdadeiramente globais: um após o outro, os maiores bancos e financeiras dos Estados Unidos e Europa foram declarando falência até que, temendo a derrocada completa do sistema econômico-financeiro imperial, os governos das grandes potências resolveram assumir o prejuízo e passaram a injetar capital (“liquidez”) em bancos e empresas a fim de resgatar sua credibilidade perante o mercado e reerguer suas marcas e patrimônios. Em questão de semanas, mais de 500 trilhões de dólares (mais de dez vezes o PIB mundial) foram queimados para que o 1% mais rico da população mundial pudesse continuar a reinar sobre o planeta.

A conta infinitamente salgada, como não poderia deixar de ser, foi rateada entre os habitantes dos países cujos governos disseram ‘sim’ ao Estado Imperial e supranacional ligado às finanças e à nata da burocracia dos organismos internacionais, e num efeito em cascata, hoje se abate sobre as populações de outros países também – dentre os quais o Brasil. A bolha imobiliária se tornava, a partir de então e quase que por decreto, crise da dívida soberana a ser rateada entre os cidadãos, pobres ou ricos, conscientes [da manobra] ou não.

Mais ou menos no mesmo período, no Rio de Janeiro, Eduardo Paes era eleito para o seu primeiro mandato de quatro anos como Prefeito da cidade – mandato que viria a ser renovado em 2012 – com o apoio formal do então Presidente Lula e do PT nacional, ainda que no segundo turno das eleições. Temendo perder o ‘palanque’ no terceiro maior colégio eleitoral do país (os dois primeiros, SP e MG, já haviam pendido para os tucanos), o Partido dos Trabalhadores não hesitou em se aliar a um candidato que, apenas alguns anos antes e diante de pequenas inovações introduzidas pelo Governo Lula – como o Bolsa Família e a Política de Cotas nas Universidades – promoveu um verdadeiro linchamento midiático que por pouco não resultou no impeachment do primeiro governo de esquerda eleito na história do país.

Tomada em conjunto, a operação executada pelo Prefeito consiste em, considerando a cidade como uma empresa e procurando extrair dela o máximo de lucro para ele e seus associados, intervir continuamente nos fluxos urbanos (mobilidade, eventos, ocupação do espaço público, turismo, comércio) para melhor dirigi-los. Ao tomar o controle destes fluxos, seja por meio da normatização arbitrária das atividades exercidas ou por meio direto do Choque de Ordem, e sempre se valendo da violência (nada) pacificadora das UPPs, o Prefeito e sua trupe passam então a orientá-los de forma que eles melhor se adequem às iniciativas das empresas que atuam na cidade. Neste sentido, o choque de gestão que o Prefeito eleito viria a aplicar na cidade, nos moldes daqueles desenvolvidos pelos partidos de direita (Demo­-PFL e PSDB) da qual ele se origina, baseia-se largamente na retomada das políticas de remoção sempre louvadas pelas classes média e alta cariocas; na repressão aos movimentos sociais e a toda e qualquer manifestação de dissenso ante as políticas adotadas; pela implantação, em parceria com o governo do Estado, de uma política de pacificação que recorre ao genocídio e à intimidação de uma parcela da população como elementos cotidianos de ‘controle’, política da qual faz parte o Choque de Ordem; e pela multiplicação de Parcerias Público-Privadas cujo objetivo explícito é saquear o comum metropolitano de uma cidade toda ela produzida por trabalhadores e pobres.

Dessa forma, o futebol é reduzido a produto econômico e canalizado para os bolsos de empreiteiras e empresários, ao mesmo tempo em que o público é racialmente selecionado, quer dizer biopoliticamente; o carnaval deve ser disciplinado para caber nos termos do contrato dos novos gestores da Apoteose; o Réveillon se torna além de um bom negócio também uma forma muito eficaz e clara de segregação; e as ruas se tornam mais um ativo imobiliário a ser repartido entre as empresas – e apenas então alugados aos trabalhadores informais, como a própria Prefeitura faz questão de esclarecer. Some-se a tudo isso, os mega-eventos que legitimam qualquer barbaridade e inundam a cidade maravilhosa de investimentos – como se este fossem bons em si! O Bando Imobiliário reorganiza a cidade para melhor explora-la. Ao passo que o trabalho colaborativo que garante sua produção (e que lhe dá vida) é violentamente escamoteado pelos poderes público e privado.

De sua parte, o governo federal tem na economia a principal base de sustentação, uma vez que esta lhe permite pacificar a fúria acumuladora da elite nacional (e internacional) ao mesmo tempo que destina parte dos recursos às (cada vez menos) políticas dos pobres, cada vez mais entendidas como medida compensatória – e menos como vetor de transformação. A predileção pela economia, por sua vez, leva inevitavelmente à ênfase no crescimento – do PIB como do emprego. Neste sentido, falta ao governo federal coragem e criatividade para investir em políticas inovadoras que se dirijam diretamente aos trabalhadores pobres e precários das grandes cidades brasileiras e que tenham por objetivo a mobilização produtiva da vida, como políticas de renda (salário de vida), de incremento da capacidade de comunicação (banda larga e telefonia móvel acessíveis e de qualidade) e de mobilidade, uma vez que é no trânsito e nas trocas da cidade que toda / qualquer produção se efetua. O governo assim acaba fazendo mais do mesmo, e destina enorme parte dos recursos para obras que ninguém quer (além das empreiteiras e de seus sócios no governo), com o fito de gerar empregos (num país / mundo onde a regra é o desemprego, e logo a falência da categoria “emprego”) e movimentar a economia, o que certamente beneficia também os pobres, mas tem alcances claros como política pública transformadora.

De outra parte, os governos estadual e municipal, rapidamente adaptados a um cenário de mobilidade social crescente armaram suas arapucas para capturar todo possível ganho que os trabalhadores pobres e precários possam eventualmente vir a ter, bem como tudo aquilo que em sua imensa potência produziram. Invocando razões de ordem administrativa e econômica1 (entre outras não tão ‘nobres’), investem violentamente contra as favelas, as formas de viver e de comercializar de camelôs, as ocupações criativas das ruas por parte dos artistas, as paisagens naturais e culturais; enfim, contra a (auto)valorização que o trabalho informal de todos nós construiu e que deu forma e vida à cidade do Rio de Janeiro. Assim, o desenvolvimentismo do governo federal se casa perfeitamente com a gestão midiática e fragmentária dos governos locais. No plano macro, tal operação se sustenta por meio de um perverso consenso que desqualifica como ‘radicais e demagogos’ (e futuramente também como terroristas2) todos aqueles que ousarem fazer qualquer ponderação a respeito dos rumos que a cidade toma: o Rio de Janeiro e o país podem até ser para todos (Lula); a pobreza até pode acabar (Dilma); mas somando forças (Cabral), seremos ‘nós’ – Um Rio! (Paes) – que ficaremos com o legado da Copa, das Olimpíadas e das intervenções urbanas que delas decorrem. Um por todos e todos por um [Rio]!

Assim, no plano político, a associação / consenso entre os diferentes poderes e forças políticas se traduziu em dois movimentos confluentes: i – a migração de quadros da direita para o centro e para a base aliada ao governo federal; movimento no qual se inclui o atual Prefeito; ii) o ingresso, em contrapartida, de quadros do partido do governo federal (PT) na administração reacionária dos novos ‘parceiros’. Isso tudo somado contribuiu para a formação de um dispositivo de poder que atua por dentro da máquina de governo, mas cujos tentáculos se estendem para além, abrangendo diversos grupos que atuam em território urbano, principalmente por conta da histórica relação do PT com sindicatos e movimentos sociais.

Por outro lado, porém, como nos lembra Foucault, onde há crescimento do aparato de poder, há também o florescimento da resistência. E alguns recentes acontecimentos políticos na cidade oferecem pistas para novas formas de mobilização, agregando à cultura da luta importantes inovações em termos de composição e estratégia.

Um Aprendizado da Democracia

Um ponto importante da experiência da OcupaRio, ocorrida a aproximadamente um ano e meio e que teve a Praça da Cinelândia como seu epicentro, foi o desenvolvimento de um saber democrático que não se resumia ao conhecimento político que cada grupo ou indivíduo aportava, mas que emanava do contato próximo e muitas vezes violento com a diferença mais radical. Foi muito importante e inovador o envolvimento de ricos e pobres, brancos e não-brancos, pessoas politizadas ou não, de pré-adolescentes (e até crianças) a velhos, vivendo na rua ou em casa, em um experimento político que, apesar de todos os problemas, teve o mérito de se não constituir sobre nenhuma forma de hierarquia prévia, embora, é claro!, elas aparecessem a todo momento e nas situações as mais diversas. Ao mesmo tempo em que causava um curto-circuito nos dispositivos de poder, que por um longo tempo não souberam como se relacionar com essa inovação (mesmo para desmantelá-la), a composição diversificada da Ocupa fazia com que experiências de vida diversas se desdobrassem em questões políticas diferentes, por meio do recurso a formas de linguagem variadas, abrindo assim a constituição da democracia aos muitos que habitam a cidade.

E mais, por um processo de polinização, a semente de democracia que brotou dali teve o efeito, junto a outras experiências, de incentivar os moradores e jovens do Morro do Borel e do Complexo do Alemão a realizar suas próprias ocupações urbanas, com questões políticas outras, demonstrando que, apesar dos pesares, a luta não apenas continua como se renova incessantemente.

Outra rede-movimento que talvez exemplifique esse tipo de composição transversal seja a que se formou na cidade do Rio de Janeiro em torno da questão da moradia nos últimos anos da década passada. Essa articulação inovadora envolveu moradores, militantes, advogados, pastorais da igreja, defensores públicos, artistas, mandatos e comunicadores populares na luta pelo direito à moradia digna e à cidade, e logrou conquistar algumas importantes vitórias ante o rolo compressor desenvolvimentista que acompanha e antecipa os mega-eventos na cidade. Antes de ser desmantelada de forma truculenta e anti-democrática pelos poderes que a regem [a cidade], essa composição atualíssima – que expressa o potencial revolucionário do trabalho nas cidades – deu mostras de que resistir é possível e que a organização das redes, somada a um saudável ‘deixar-se atravessar’ típico dos pobres da cidade pode constituir um instrumento poderoso de enfrentamento ao poder. Sua composição multifacetada, neste sentido, permitiu que se lutasse de forma simultânea e consistente em várias frentes de conflito e fazendo uso de distintas linguagens para tanto – política, jurídica, artística, multimídia etc.

Da mesma maneira, país afora diversas e variadas lutas não cessaram de eclodir e ainda eclodem, aqui e acolá, contra o projeto de Brasil Maior que não leva em consideração as necessidades e os desejos dos grupos que aqui vivem. São revoltas que exprimem (e combatem) a situação muitas vezes degradante do trabalho (Jirau, Maracanã), a destruição de formas de vida (Belo Monte, Vila Autódromo, Horto), a violência racista que atinge os pobres nas cidades (Pinheirinho e as inúmeras favelas de São Paulo que aparecem pegando fogo), a violência hedionda das polícias (Complexo da Maré, Salvador), e que nem por isso cessam de inventar o amanhã e construir a democracia com seu sangue e dignidade. É a vida e a luta pela vida dos trabalhadores e pobres do país que não cessa de bifurcar os esquemas rígidos e lineares do poder.

Ecoando os ventos que vem do norte e do oeste: Occupy Wall Street, 15M e Primavera Árabe – movimentos de tipo novo – mas também as articulações inovadoras que surgem a todo o momento no Brasil e em outros países da América Latina, nos perguntamos até onde é possível avançar na luta pela radicalização da democracia na cidade do Rio de Janeiro. E lembrando Marx, respondemos que o pobre é aquele cuja potência é inversamente proporcional à situação de pobreza. Pois ele é o produtor de toda riqueza (i) e também, no capitalismo, aquele que é explorado, ao máximo, em sua capacidade de produzir (ii): sua potência é ilimitada e abarca a própria vida, a cidade e o comum de todas as vidas sobre a terra!

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1 Liminar que impedia assinatura de contrato de concessão do Maracanã é suspensa. “Sob o argumento de que a manutenção das decisões representava grave risco para a ordem administrativa e econômica do Estado”: http://www.tjrj.jus.br/web/guest/home/-/noticias/visualizar/125913.

2 Projeto de Lei quer punir “terroristas” e grevistas na Copa. Pública – Agência de Reportagem e Jornalismo Investigativo: http://www.apublica.org/2012/02/pl-quer-punir-terroristas-grevistas-na-copa/.

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