Por Ariel Pennisi e Bruno Napoli | trad. UniNômade
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Do lado de cá do mostrador
Mitos iniciais do governo Macri, da Propuesta Republicana (PRO), e boas vindas aos novos ignorantes
A República não pode ser. Em minutos, essa ideia já delimitada de “república”, enquanto mera máquina procedimental, ficou reduzida só a uma foto, aquela do presidente Macri com os governadores, ou então posta de lado diante dos seguidos decretos, quase diários, dos primeiros 45 dias do governo. Tais decretos são a outra face do veto de leis que, quase semanalmente, Macri exercia quando era governador do distrito de Buenos Aires, entre 2007 e 2015. Como não pode ser o argumento republicano, temos que buscar as primeiras bases da legitimidade própria ao jogo eleitoral noutra parte. Nesse sentido, os três mitos iniciais que parecem organizar as expectativas despertadas pelo novo governo (em termos de imagem pública) são a procedência de seus principais integrantes, isto é, a empresa, a sua suposta solidez “técnica”, e uma combinação entre papel do empresário na sociedade e economia pessoal ou familiar, o que os coloca facilmente entre as classes acomodadas, começando pelo multimilionário presidente.
Neste artigo, nos propusemos fazer um primeiro exercício de leitura do presente imediato, levando em conta os múltiplos terrenos de conflito forjados pelas lutas em toda a Argentina, tomando o cuidado de colocar-se por fora da enunciação kirchnerista, que hoje vive aflita por uma necessidade básica insatisfeita: fortalecer-se como oposição ao novo governo. E a isto seria preciso acrescentar outra aflição: o histórico Partido Justicialista (PJ) observa com satisfação, e em não menor grau com sede de vingança, a “limpeza” que o novo partido governante (PRO) realiza dos restos de kirchnerismo no Estado. Algo que os “oportunistas” do PJ manejam com sua usual expertise na negociação, enquanto recompõem “a família peronista”.
1. Mais além de kirchnerismo e antikirchnerismo; mais além de macrismo e antimacrismo
Propomos algumas ferramentas para desativar essas bases de legitimidade que, melhor dizendo, consideramos sim motivos de preocupação, pelo que reforçam do existente, por seus possíveis efeitos no quadro social nos próximos anos. Além disso, sentimos a necessidade de buscar a maior precisão possível, num contexto de adesões fáceis e críticas apenas cantaroladas, como as que surgem dos interesses partidários dos derrotados e seus seguidores. A intenção consciente ou relativamente espontânea de prolongar o par kirchnerismo/antikirchnerismo por outro meios, — tanto da parte dos simpatizantes do novo governo, que seguem referindo-se ao kirchnerismo como se continuasse governando em alguns compartimentos estanques, evocando uma suposta “herança perversa do opróbio k”; quanto de quem está alucinando a existência de uma “resistência” que por enquanto não passa de catarse virtual das redes sociais e uma desesperada necessidade de lideranças, elementos que pontilham em chamadas à ação, como a do ex-ministro da economia e de outras referências kirchneristas, em algumas praças pelo menos até agora apenas em bairros de classe média e média acomodada de Buenos Aires, e em frequentes comentários no facebook, — apressa os espíritos e negligencia as urgências. Ao contrário, vemos um imbróglio de trajetórias: por um lado, lutas que persistem por todo o território argentino respondem às urgências próprias da defesa da vida, bem ali onde ela é posta concretamente em perigo, e o fazem ao combinar presença e paciência, e suportar não raras vezes os assaltos policiais e capangas; por outro lado, sem referir-se sequer às urgências nem aos antagonismos que vêm colocando-se em jogo nos territórios concretos, o esboço de um tipo de crítica similar àquela da campanha eleitoral derrotada, recheada de ingredientes morais, que assume por principal interlocutor o eleitor do PRO e cujo tom repetitivo parece com o de uma tia chata: “estás contente com o que fizeste?!” (inclusive cometendo erros tolos, como denunciar ações do novo governo sem checar a informação, errando o alvo em mais de uma oportunidade).
Então, do outro lado do governo, se percebem duas sensibilidades bem diferentes que, é claro, acabam se cruzando e se sobrepondo de maneiras distintas; mas que, de qualquer jeito, na hora de configurar apostas políticas em escala ou de “estar juntos” para fazer algo necessário, tendem a colidir. E colidem devido ao ponto referencial que priorizam. O ponto de vista das lutas, da resistência concreta, das práticas militantes, intelectuais, reticulares, mas também da amoralidade das escolhas e das maltas de bairro em estado de eterna juventude, não tem a necessidade de fazer brotar nenhuma “resistência” a partir do resultado das últimas eleições, nem muito menos crer num espaço de enunciação, aquele kirchnerista, que não só renuncia a lidar com a derrota e processá-la — uma derrota mais profunda do que a eleitoral –, como também renuncia a criticar aspectos estruturais do regime de acumulação, delatando assim continuidades entre o processo político precedente e o que se inicia, com o governo Macri. As sensibilidades em luta, como aquelas que teimosamente não desistem da busca e seguem pesquisando as condições, ou então, aliás, qualquer alma atenta e disposta ao que é possível fazer e potenciar-se nas situações concretas, estão calcadas antes numa insistência vital e política, do que numa enunciada “resistência”, mal-ajambrada, estruturada segundo uma permanente vontade de governismo daqueles que saíram dos escritórios públicos e caíram diretamente na praça. Ali, passaram a replicar, para piorar tudo, as mesmas hierarquias e o método de construção política responsável pela derrota. De um lado, os que falam, pensam e interpretam e, de outro, os seguidores (mesmo que não sejam seguidores no facebook). Os dois acontecimentos recentes em praças — sem prejuízo das derivas interessantes que possam ter –, o que teve como protagonista o ex-ministro da economia, e o que aglutinou ao redor do programa de televisão governista da gestão anterior (chamado “678”), reproduzem os pontos de vista do político profissional e do jornalismo, como forma de construir um olhar político, com um tipo de inteligibilidade e de percepção que deixa de fora os elementos antagonistas de lutas prévias e das duras realidades vividas nos territórios (moradores de favelas, de rua, flanelinhas, camelôs…). Esta última referência de enredo social somente fura o bloqueio do visível na mídia e consegue circular na opinião ao preço de uma espécie de inscrição moral: discurso justiceiro e criminalizador, compaixão esquerdista ou então solução progressista baseada na “adaptação”, pela via da política social ou da institucionalização…
As forças da insistência, bem como as agendas e problemas que elas trazem à tona, as redes que têm algo a ver com o legado de 2001, as formas que um nós assume em relação ao que Pablo Hupert (El Estado posnacional. Más allá de kirchnerismo y antikirchnerismo [1]) definiu como “prática de pensamento conjunto de problemas comuns”, e que resistiu à desolação neoliberal afirmando-se na novidade de suas tramas de relações; tudo isso preenche um conjunto de experiências, uma inteligibilidade particular e um chamado político que desborda tanto do olhar jornalístico, quanto da governabilidade ou da nova estatalidade, surgidas como resposta à irrupção de 2001. Este nós, — que a politologia de fato do kirchnerismo (ajudada pela matriz teórica de E. Laclau, recordemos, proclamado “imperador post mortem do Japão” [2]) se inclinou a considerar uma espécie de significante vazio, — se constitui da potência das situações e formas de vida concreta que, se poderiam ser pensadas em relação a um projeto de governo, jamais poderiam confundir-se com as categorias dele. Nesse caso, a relação não se poderia dar-se em termos do mesmo projeto político que alcançou o seu topo com a recuperação econômica e a ampliação de direitos; no entanto, ao mesmo tempo, não apenas se inclinou a dissolver a potência do nós, como também desembocou num comportamento e numa performance eleitorais contrários à vitalidade política que lhe dera origem. Não seria, então, nesse lugar ocupado pelas castas dirigentes onde deveríamos situar o “vazio”? Ainda assim, insistimos, agora não há nada a preencher, e muito a repensar.
Nesse sentido, não precisamos ignorar que o último mandato do kirchnerismo esteve marcado por um giro conservador que, apoiado na matriz agroexportadora que lhe conferiu os melhores dividendos, manteve os bancos a salvo (esses sim, os principais beneficiários, no topo da pirâmide), bem como as principais empresas concentradoras de capital, com o poder de decisão sobre os itens mais sensíveis da economia. Além disso, essas empresas estão implicadas na estrutura financeira (o livro La restricción eterna. El poder económico durante el kirchnerismo, de A. Gaggero, M. Schorr y A. Weiner, apresenta uma análise inteligente da curva de concentração e expatriação econômicas dos últimos anos, tanto do ponto de vista de seus antecedentes históricos imediatos, do comportamento das elites empresariais, como da legislação favorável a seus interesses). Consideramos que a crítica às medidas do novo governo brotadas do solo kirchnerista, crítica que em parte compartilhamos, não é suficiente para aprofundar um olhar sobre os padrões de produção e consumo. A matriz de comportamento dos capitais não muda com uma eleição, nem as formas territoriais que o “vandalismo” empresarial assumiu. É preciso reconhecer que o consenso ao redor da necessidade de um “ajuste” precede a eleição, a fim de tentar ampliar a compreensão do comportamento do capital nacional-transnacional e do capital em nosso próprio comportamento social. Por isso, não surpreenderam as declarações de Bein e Blejer, dois dos principais assessores econômicos do candidato kirchnerista, que concordaram com a desvalorização e o aumento compulsivo da chamada “trava cambial” realizados por Macri, declarando, inclusive, que o candidato kirchnerista, “Scioli não teria feito algo tão diferente” [3]. Quer dizer, os kirchneristas sintonizaram na frequência “técnica” do plano, dando a entender que, fora remendos aqui e ali, nos últimos dois ou três anos o governo largou a mão da economia. Mantiveram-na em estado vegetativo, sem grandes crises imediatas, mas, ao mesmo tempo, tampouco sem saídas à vista?
Depois de um período de importante recuperação, com elementos reparadores potentes e algumas reconquistas na mochila, o último mandato de Cristina Fernández foi marcado pelo aplainamento e estancamento da criação de trabalho, perda do poder aquisitivo, precariedade da economia doméstica, destruição de mais de 500 mil postos de trabalho, consolidação da informalidade e precariedade laboral em percentuais muito altos, e estabilização de outros números preocupantes: 50% dos trabalhadores formais recebem só um salário mínimo — o que há muito tempo vem perdendo para a cesta básica –, e os subempregados e terceirizados recebem ainda menos, 70% dos aposentados ganham a pensão mínima que, segundo o Defensor Público da Terceira Idade, os expõe a condições de pobreza econômica, cerca de 10 milhões de pessoas estão abaixo dos índices usuais de pobreza, intensifica-se a extração do mais-valor em favor dos patrões, entre outros fenômenos. Na sequência, se podem listar os problemas que somente parecem interessar às esquerdas e a espaços de militância autônoma, tais como a repressão policial de manifestações, a persecução criminal dos “revoltados” (Lei Antiterrorista, Projeto X), ou então a intransigência no tema dos direitos humanos (por exemplo, com a nomeação de Milani). Continuando com a “lista” (chave de leitura cara aos governismos e o kirchnerismo não foi exceção), neste caso de contrarrealizações: desoneração dos impostos em folha de pagamento para beneficiar as grandes empresas; uma lei noventista para as agências seguradoras trabalhistas; pagamento da dívida contraída pela ditadura ao Clube de Paris, inclusive as multas; acerto de contas com o Ciadi (do BM); avanço em contratos como os com a Chevron e o acordo semissecreto com a China; subsídio do dólar turismo para usufruto da classe média alta e uma arriscada aposta com o Banco Central. Além disso, o governo autorizou a formação de uma sociedade anônima, — logo depois de pagar uma expropriação custosa à Repsol, — que passou a operar 17,5% do mercado do petróleo (que corresponde a 51% das ações da empresa estatal, a YPF); e a política energética transferiu recursos em escala milionária às grandes petroleiras. O que explica a manutenção do CEO da YPF, Gallucio, e a mesma orientação no começo deste novo governo.
Há quem meta todo o período de doze anos no mesmo saco, tanto a título de condescendência cega, quanto de fanatismo destruidor. Nós podemos dizer que os últimos doze anos não se caracterizaram por bandeiras homogêneas, nem muito menos por um “modelo” econômico ou político. Encontramos fontes de legitimidade — tais como parte das organizações das Mães — que se mantiveram ao longo do período, enunciados que perduraram, e medidas governamentais que tiveram certa coerência; mas não podemos deixar de assinalar, em relação ao último período, aberto com os 54% de votos no pleito anterior, mudanças importantes tanto na estrutura macroeconômica quanto em medidas legislativas, bem como no tocante à relação entre o governo e os movimentos sociais e outros atores populares. Preocupam-nos as continuidades do plano macropolítico entre o período anterior e o que vislumbramos para os próximos anos: o lugar dominador que os agroexportadores ocupam, os grandes capitais dedicados à extração selvagem de recursos estratégicos, o setor financeiro e as empresas mais poderosas (antes relativamente reguladas e doravante desobrigadas, participando do governo), a “narcocultura” instalada — agora retomada como pretexto para a militarização dos bairros — e a ambivalência do consumismo. Contudo, voltando à colocação anterior, nos perguntamos: como nos encontrarmos para revitalizar esse nós, assumindo que 2001 ficou longe, que passou água debaixo da ponte entre movimentos sociais e estado, e que certo desgaste de nossas próprias formas de pensar e atuar nos força a nos colocarmos de outro modo? Como, então, voltar a situar os problemas identificados no plano macropolítico na órbita da imensa rede de experiências que permitem afirmar cada vez mais um nós? Uma vez esgotada a lógica das “listas” de realizações e contrarrealizações dos governos, existe a possibilidade de revitalizar e revisar referências menos imediatas. Talvez, nessa tensão, se desdobre a principal querela com o que fica do kirchnerismo: a partir de que plano, prioritariamente, nos pensamos?
É imprescindível, portanto, construir as ferramentas e os espaços enunciativos, tanto a partir de experiências existentes, quanto dos enredos por vir, que deem conta da complexidade das relações de produção, — de valor, de riqueza e de sentido, — como um desafio que não se deixa historicizar nem de um modo kirchnerista, nem muito menos de um modo antikirchnerista e antiperonista. De fato, quando quase como se tivéssemos sido parados numa blitz policial nos perguntam “de que lado” estamos, constatamos da maneira mais cabal a superficialidade dessa dicotomia que, sobredeterminando o conflito a partir da política profissionalizada, ignora os conflitos concretos nos territórios e entre as racionalidades das formas de vida que cada desdobramento pressupõe. “De que lado estás” é uma pergunta que não merece resposta, a não ser aludindo à série de lutas e experiências que trançam uma rede de insistências: nas Malvinas Argentinas, em Córdoba, onde há luta contra a Monsanto, de que lado estás?; no noroeste argentino, onde o avanço dos sojeiros intimida e mata agricultores e comunidades indígenas, de que lado estás?; nas lutas das cordilheiras contra a mineração a céu aberto, de que lado estás?, nos bairros irradiados pelas subestações que as multinacionais com a conivência do estado instalam a custo de morte por câncer e leucemia de seus habitantes, de que lado estás?, e na luta pela terra, e na auditoria da dívida externa? ante o endividamento popular pela via da financeirização das vidas?, e a urbanização das favelas e assentamentos no marco do direito à cidade?, ante a violência das forças de segurança?, e ante as propostas alternativas para uma soberania alimentar?
Em nenhum caso, e mais além do tom de zoeira da(s) resposta(s), o par kirchnerismo/antikirchnerismo não serve para ler nem para agir, ou melhor dizendo, se perfila como uma rivalidade imaginária, a que corresponde certa preguiça do pensamento e um tanto de comodidade política. A fantasia do retorno do kirchnerismo, a iconografia do “retorno”, os sururus que se aproximam a partir do PJ funcionam apenas no plano de uma macropolítica, desacoplada da complexidade que nos atravessa neste momento histórico. Preferimos reconhecer a nossa fragilidade e zonas de incompreensão, aguçar a nossa análise ao redor do que este novo governo significa, fortalecer a insistência em que estamos envelopados, ficarmos perto das experiências e lutas coletivas que percebemos ser potentes — tanto em nosso país como na região — e dispormo-nos à formação de novos espaços de expressão política, dinamizados pela insistência/resistência que não se deixe codificar como mera reivindicação, mas que participe de um jogo aberto, em que se poderiam conjugar, inclusive, as sensibilidades de esquerda, as afins kirchneristas e peronistas, as tradições socialistas e, por que não?, novos indignados ante o avanço de um governo formado diretamente pelas elites empresariais. Horacio González, com a delicadeza que o caracteriza e a arte do provisório a seu favor, se referiu à necessidade de “novas esquerdas populares” para, simultaneamente, estudar o momento que atravessamos e voltar ao cadinho de novas formas de construção política.
2. A empresa
Em seu livro Perón o muerte. Los fundamentos discursivos del fenómeno peronista [4], Verón e Sigal, entre várias outras questões, se ocupam do que eles chamam de “modelo da chegada”, com que Perón logra interpelar os seus seguidores, uma boa porção da classe trabalhadora, setores plebeus e setores médios, assim como aristocratas industriais. De onde vem e aonde chega? Os autores o dizem sem eufemismos: “A resposta é simples: vem do quartel e chega ao Estado”. E justificam a hipótese reunindo discursos e analisando-os segundo a sua situação enunciativa. Por outro lado, de onde vinha a Argentina, se tal pergunta fosse possível? Vinha de uma década de atropelos por parte das classes dirigentes, os setores proprietários de terras e outros setores da produção, que usufruíram desbragadamente um período aberto pelo golpe de 1930 (de que o próprio Perón havia escassamente participado [5]), contra o segundo governo de Yrigoyen. Não foi difícil para o Grupo de Oficiais Unidos (GOU) tomar o poder em 1943, nem tirar proveito de sua contraposição em relação à época da fraude sistemática. Segundo diziam, ela chegava ao fim graças a sua “Revolução”. Mas foi o mais notável de seus integrantes, Juan Domingo Perón, quem melhor soube construir o contraste enunciativo, para erigir-se ele próprio o líder de um movimento de que não participava naturalmente, já que pertencia a essa “outra sociedade”, habitante de quartel, tão intemporal quanto incorruptível em comparação com a corruptibilidade da desprestigiada política. Sua curta e exitosa passagem pelo Estado — por um único ministério — não o impediu de apresentar-se como militar, ao contrário, potenciou-lhe a figura como portadora de valores transcendentes. Mas a essa trajetória “por cima” correspondeu um movimento por baixo, cujos efeitos deram a forma ao primeiro peronismo, o marco de uma série de tensões ora produtivas, ora trágicas.
Em nossa época, Macri, — que parecia propor uma solução berlusconiana para os problemas dos argentinos, — desceu à política depois de uma crise terminal de representação. À sombra de novas formas de conflito e lutas que as revoltas e os experimentos de 2001 protagonizaram, foi se tecendo uma subjetividade reativa, por vezes pura beatice, meramente reacionária noutras, por vezes com aspectos antipolíticos e, ultimamente, parte de uma espécie de politização de direita “desde baixo” (a linguagem securitária, a autodefesa da “sociedade”, os linchamentos). Macri também teve o seu “modelo de chegada”. Desta vez, nada de quartéis nem retóricas associadas aos assuntos militares. O “fora” que pôs para funcionar como uma das fontes de legitimidade de sua incursão política foi e continua sendo a empresa. O PRO se construiu como espaço político pós-partidário, em boa medida, graças à capacidade de ligar os valores e a imagem da empresa, com o inconformismo antipolítico vertido em queixa permanente por parte do sujeito midiático por excelência: a gente. Se a sua passagem pelo futebol, também geralmente associada à má prática política, não só não jogou contra Macri, como na verdade nunca deixou de somar-lhe atributos positivos; isso se deveu — tracemos a hipótese — ao fato que também o futebol veio desse “fora” que era a empresa e que, apesar dos descaminhos e obscuridades de sua gestão (o que também se verificou em sua atuação empresarial delitiva), prevaleceu o êxito desportivo como um ativo para a imagem pública. Daí o duplo sucesso: futebol e empresa.
A comparação não vale como transposição, mas sim como eco de uma estratégia, retomada a partir de outras condições e com outros meios. Ali onde Perón se distancia, para apartar o exército de todo “sentimento de ambição”, Macri diz “venho para ajudá-los”. Perón diagnosticava a degradação social e moral do Estado argentino e da política e antepunha “um autêntico sentido orgânico-social” na busca da redenção patriótica; já o aparelho discursivo e midiático do PRO se empenha, igualmente ante um panorama lido como caótico e degradante, em aferrar-se à ilusão de uma “normalidade” evidente que dispensaria todo esse palavrório nacionalista a quem lhe pisque de volta. Se Perón ofereceu como uma transfusão sanguínea, os valores da disciplina, camaradagem, patriotismo, hierarquia e respeito, isto é, valores próprios da cultura militar, o embarque de empresários de alto escalão no esquema proposto pelo PRO conta também com a sua escala própria de valores: da eficiência ao sucesso individual, da adaptabilidade à aptidão e competência.
Dizíamos que Macri passou da mão do futebol e da empresa à da política. Apesar disso, a sua tradução eleitoral tardou um pouco a chegar. Foram necessários bilhões em publicidade, marketing, pesquisas de opinião, consultorias, operações midiáticas, compra de famosos e outras verbas para ele ter acesso; primeiro, ao governo do distrito de Buenos Aires, depois, à promoção de sua gestão e à blindagem midiática em relação aos enormes descalabros econômicos e institucionais, aos casos de corrupção e às formas do mais pasmacento compadrio político; para, finalmente, alcançar o prêmio máximo que o reconcilia com o seu pai, espécie de Al Capone do terceiro mundo. É que, na máfia e na família, que a tradição italiana conhece, vale tudo. Como pode ser, então, que depois de ter governado Buenos Aires por dois mandatos seguidos e formar o seu espaço político com as velhas raposas do PJ e uma segunda geração do canteiro menemista (Maxi Corach, Jorge Triacca h., Adrián Menem, entre outros), se sustente algo com essa forma de “chegada”?
Desta vez, a vitória eleitoral de Macri não está precedida por uma década infame (que tampouco consideramos “ganha” sem mais nem porquê) nem por uma irrupção histórica (nem 17 de outubro nem 2001), mas sim por um contexto com complexidade própria. Aceitando que não estamos em condições ainda de compreendê-lo satisfatoriamente, observamos que, por um lado, foram tecendo-se condições subjetivas através da crescente demagogia securitária, de arroubos antipolíticos, da confluência multitudinária numa determinada estética política nas mídias, do consumo como forma de estar no mundo… Por outro, se logrou certo consenso ao redor da demonização do governo kirchnerista que, no lugar de objeto para uma crítica mais ou menos racional (que cremos necessária), tornou-se depositário de medos e diversas formas de desprezo histórico aos setores populares. A partir desse consenso que precedeu a eleição, ao redor da necessidade de ajuste, e do qual ambos os candidatos participaram, se sustenta que o país vem de um período autoritário, populacheiro, caótico, complacente com o crime de rua, assim como com a corrupção estatal, um governo briguento, gastador etc. De maneira que não foi complicado ao PRO, agora com os remanescentes mais reativos da UCR e da Coalizão Cívica, construir-se como a contraimagem desse demônio. Foi novamente o papel exercido pelo empresariado, doravante recondicionado graças a uma espécie de cirurgia estética publicitária, como se fosse alguém parecido com o vizinho que “está de saco cheio”, portador de uma espiritualidade que interpela individualmente e quase não necessita de palavra (ainda que, sem imagem, não seria nada).
Se faltava algo para completar essa migração da empresa ao Estado, não faltou mais com a nomeação de gerentes, empresários e integrantes de fundações e ONGs para ocupar cargos importantes, completando o panorama. À legitimação própria da empresa como outro mundo, se acrescenta ainda a suposta solidez técnica dos economistas pró-empresa.
3. Tecnocracia opaca
A ideia de um “supermundo técnico” como produto demiúrgico do capitalismo é, em Martínez Estrada, a ponta-de-lança para desentranhar as crenças que sustentam o mito da técnica. Nas nossas condições, nos deparamos com um supermundo macroeconômico e financeiro cuja compreensão deve ser disputada com aqueles que pretendem ser seus técnicos prediletos. Não se pode ignorar nem negligenciar a sua real dimensão. Quer dizer, há graus de autonomização de algoritmos que excedem a capacidade real de um ministro da economia imprimir a vontade sob a forma da regulação, já que, no caso argentino (mas não somente), as principais formas de acumulação e produção de valor estão ligadas indissociavelmente a processos de que não se têm controle (preços internacionais, moeda estrangeira, pagamento de uma dívida em alta porcentagem legítima etc). E não basta, para atenuar a opacidade estrutural, forçar a imaginação com a figura funesta do juiz encurvado que vem do norte — recordemos, além disso, que a troca de dívidas de 2005, construída por Prat Gay, Lavagna e Kirchner, foi a base da negociação que levou à adoção da jurisdição norte-americana –, nem basta descarregar todo o problema sobre uma nova fauna inimiga — como se a grande maioria dos credores de uma dívida comprovadamente viciada de ilegitimidade não fosse formada por abutres. Essas liturgias imediatistas valem menos, na hora da análise, do que uma declaração da ONU — decerto desmedidamente festejada e capitalizada como imagem, pelo ex-ministro da economia.
O semblante político dos economistas convocados pelo novo governo do PRO diz mais do que as imagens malévolas que todos nós comprazemos em repudiar. Trata-se de uma aposta pela opacidade já arraigada em nosso sistema econômico e da postulação de um sentido comum que descansa na suposta capacidade técnica dos funcionários, renunciando-se a compreender as condições históricas. O discurso dos nomeados, assentado no prestígio e na solidez técnica sem mais, segue numa ideia que, de modos distintos, percorre as ranhuras subjetivas de cônscios e distraídos: a ideia que a macroeconomia se moveria por leis naturais, com um ponto de vista neutro. Ainda assim, as variáveis favoritas desses cirurgiões — isto é, investimentos estrangeiros, tipo de câmbio rentável, o humor dos mercados, o gasto público, entre outras — configuram um plano de percepção e discussão importante, principalmente, para as empresas nacionais e multinacionais em condições de oligopólio, para os bancos e setores com maior capacidade de concentração de riqueza; mas para as multidões a pé, tal recorte pode levar à impotência. Essas supostas leis naturais da macroeconomia se sustentam num ponto de vista que pretende subsistir com a frieza de seus gestores e o secretismo de seus principais atores.
Não há “técnicos” per se. Em contrapartida, precisamos discutir a própria matéria da discussão, seja para manter abertos os significados das políticas econômicas, seja para situar espaços reais de ação, mesmo que vivamos nm contexto de algoritmos autonomizados. Sem dúvida, nem a ONU nem a propaganda partidária são espaços que agem em função de uma compreensão distinta da complexidade macroeconômica e, portanto, que incidam nas chances de questionar à raiz o macroeconomismo. Este, com desfaçatez, chegou pela primeira vez no final dos 70 — na ditadura — para ficar de vez. Um liberalismo que renova as suas formas de acumulação na linguagem popular agregando a partícula “neo” e que, apesar do hiato — ambíguo e de recomposição política — dos 80, se apossou plenamente dos estados latino-americanos nos 90, para não sair mais das políticas que condicionam a vida de milhões de cidadãos. Retomando a audácia de mencionar os novos administradores do estado argentino como “os que sabem”, nos perguntamos: que sabem fazer os sólidos técnicos aclamados pelos grandes meios de comunicação? Que trajetórias permitiram-lhes os lugares atuais? Com que atores interagem em sua vida laboral e política e em que trama estão imersos? Quais são as suas práticas contumazes e quais os seus compromissos privados? O saber técnico, — necessário nas democracias contemporâneas, sempre que suponha conhecimentos sobre a instabilidade dos territórios em que opera, isto é, que não se sustente na ilusão da “competência perfeita”, tão típica da língua macroeconômica, — é, na realidade, uma fonte fraca de legitimação dos ministros escolhidos. Em seu momento, D. Cavallo, depois de ter demonstrado os próprios dotes para produzir danos na escala de um país inteiro (1982), gerou o fascínio durante o primeiro mandato de Menem, sob o olhar cúmplice dos meios de comunicação, partidos políticos (principalmente o Partido Justicialista) e outros grupos de pressão. Contribuiu para a sua imagem relegar ao segundo plano qualquer curiosidade a respeito de seu passado recente (na última ditadura). O esquema se repetiu durante a desastrosa passagem da Alianza (recordemos que boa parte dos funcionários daquele governo assassino, à parte de continuador do pior menemismo, integra hoje o staff de Macri).
Esse modelo de saber técnico volta com ares renovados, menos enfático e mais “conhecedor”. É o modelo de um saber mais condicionado pelo utilitarismo elitista do que pelas forças mais ativas e dinâmicas da política argentina — que muitos chamariam de “populares”, enquanto outros falariam “trabalhadores” ou, com menor frequência, numa multidão constituinte. Nem sequer se trata de um modo de compreensão da economia exposto à vigilância cidadã. O seu núcleo irredutível, insistimos, está dado pela capacidade de conservar as posições dominantes e salvaguardar, quando não incrementar, os privilégios dos principais setores e elites políticas e econômicas, muitas delas já beneficiadas durante o último período, ainda que nem sempre conseguindo a legitimidade necessária e, em alguns casos, devendo responder a controles estatais.
Será preciso perguntar-se também se esse saber técnico fetichizado, colocando em primeiro plano a dimensão operativa das medidas estatais, não logra afinal mistificá-las — Cavallo, antes de ser técnico em economia, foi um “monge negro” que não poucos acreditavam ser um mago. Isto é, a aplicação das medidas econômicas na escala de um ministério ou de um banco central requer a mais alta perícia, como qualquer outro campo que implique variáveis complexas atinentes à vida pública. Porém, o discurso tecnocrático, no que participa um senso comum pacificado, vai mais além, a ponto de substituir a discussão sobre o sentido de um gabinete econômico e suas medidas, pela inteligência técnica — como se esta fosse um valor em si . O operativo aí vira hierarquia; os técnicos, em vez de ocuparem-se de sua modesta e nobre tarefa operativa, passam a mandar, decidir qual é a matéria sobre o que se opera e quais são os termos da discussão. Nesse plano, a diferença do governo Macri em relação ao anterior está no fato que o atual pretende produzir sentido a partir de uma imagem técnica da política estatal, enquanto o anterior, — apesar de ter-se forjado também numa opacidade técnica, à contraluz de sua vontade pedagógica, — o fez a partir de uma imagem ideológica. No período anterior, as idas e vindas operativas ocasionaram discussões técnicas e até tecnicistas, mas já desde o começo do novo governo, o tecnicismo parece virar a explicação última para o diagnóstico e a ação.
Enquanto o ex-ministro e atual deputado Kicillof esteja talvez construindo uma candidatura futura, compensando e até potenciando o seu lado técnico, — quem o segue nas redes não cansa de apoiar-se em seu suposto saber –, dosado com o carisma de roqueiro; o atual ministro Prat Gay finge um semblante descontraído na hora de vender as más notícias de hoje na forma de promessa de boas novas futuras, invertendo assim a imagem zombeteira que muitos têm do populismo: a proposta agora é “fome para hoje, pão para amanhã”. O rock tem a sua eficácia, Charly García lançou uma bomba midiática na forma de uma carta dirigida ao público. Mas quando é o político que se torna roqueiro, o umbral da demagogia e mesmo do ridículo não é tão nítido (o caso de Boudou é, dentre os decadentes, o mais próximo no tempo). Dentro do rock, também existe uma discussão ao redor do “virtuosismo” dos músicos, muitas vezes contraposto ao voo espiritual, ou então, à conexão entre o costado técnico da música e as vísceras do mundo. Mas em nenhum caso o que interessa é a dimensão pessoal, já que bem sabemos das tramas efetivas de relações que orientam os comportamentos dos ministros — e das forças cósmicas que insuflam o espírito roqueiro — se trata na verdade de formas de personificação do saber técnico e da própria economia. Prat Gay não tem musicalidade, mas tem, sim, a capacidade de anunciar ajustes como um técnico de novo tipo, um que muito bem poderia anunciar a novidade ruim sentado na classe executiva de um avião, tomando champanhe para uma viagem de “caça” a capitais estrangeiros.
4. O mito moderno: Dívida = Investimento Estrangeiro + Crescimento
O livro La dictadura del capital financiero (Napoli, Perosino, Bosisio) [6] analisa em profundidade a instalação na última ditadura com lógica financeira, imposta como “normalidade fabricada” e praticada como nova ordem econômica. O livro ressalta insistentemente a importância que teve para esse processo a ocupação, por parte dos representantes de importantes corporações econômicas, de postos-chave no Estado. Esses atores, antes agentes das principais empresas e associações de empresários e patrões, passaram a controlar a política monetária, o mercado de capitais, os assuntos agrários e os bens públicos. “Por exemplo, o Conselho Empresarial Argentino (CEA), presidido por Martínez de Hoz (também presidente de Ancidar S.A.), ficou com o Ministério da Economia. Outro caso é o da Associação dos Bancos Argentinos (ADEBA), que ocupou a vice-presidência do Banco Central da República Argentina (BCRA). A presidência do BC caiu nas mãos de quem tinha sido diretor executivo do Fundo Monetário Internacional (FMI), Adiolfo Diz. Quanto ao setor comercial, temos como representante Guillermo Walter Klein, dirigente da Câmara Argentina de Comércio (CAC) e representante da Bolsa de Comércio de Buenos Aires, que assumiu a Secretaria de Estado de Programação e Coordenação Econômica do Ministério da Receita. No que tange aos proprietários do campo, o caso de Jorge Zorreguieta é mais do que claro: dirigente da Sociedade Rural Argentina (SRA), assumiu como Subsecretário de Agricultura da Nação, e a seguir como titular da Secretaria de Agricultura, Pecuária e Pesca. Adicionalmente, presidiu a Junta Nacional dos Grãos (…). O Banco da Nação Argentina (BNA) e “pagador oficial” do estado nacional, caiu nas mãos de Juan Ocampo, representante dos bancos privados e de um setor importante do agronegócio, e acionista do Banco Ganadero…”. De maneira alguma, é possível continuar mantendo a ideia de uma simples “colaboração” civil desses setores com a ditadura. Por isso, o livro, no esforço de renomear esse processo, fala em “ditadura militar corporativa”, para dar conta do caráter estruturante que esse mapa ministerial tem em relação à estrutura econômica e jurídico-econômica das trocas no país.
Desse modo, o momento mais combativo da classe operária argentina, — que tinha cumprido um périplo de lutas e organização de base muito intenso, entre o Cordobaço e as jornadas de junho e julho de 1975, coincidindo com um tipo de capacidade industrial instalada relativamente moderna, — foi duplamente desativado por meio de uma repressão sistemática, começada no final de 1973, e que intensifica seus piores métodos entre 1976 e 1979, mediante o desmantelamento da estrutura produtiva.
As elites econômicas obtiveram a sua acumulação originária financeira e consagraram toda uma nova legislação a fim de conservá-la intocada, a partir do próprio estado. A capacidade de discussão que essas elites econômicas mantiveram com os representantes da corporação militar, — que ocupou as estruturas executivas do estado argentino, entre 1976 e 1983, — é semelhante à capacidade discursiva estruturante do atual deslocamento político em proveito dos “que sabem”. Foram aqueles técnicos, representantes das elites, sobretudo financeiras, por meio de extensas rodadas de debates com os militares da Comissão de Assessoramento Legislativo (um grupo de nove militares que substituiu o Congresso Nacional durante o governo de fato desses anos), que propiciaram com seu “saber técnico” as mudanças legislativas mais importantes para o setor financeiro. A saber: a primeira delas consistiu em “descentralizar os depósitos”, quer dizer, esvaziar o Banco Central de reservas e devolvê-las aos bancos privados para que façam uso desses ativos (até este momento, cada depósito num banco era remetido ao BC para que este decidisse o seu destino, na forma de investimento público). Com a descentralização, o BC foi obrigado a endividar-se e se conferiu poder de negociação diretamente aos bancos.
A segunda medida de peso foi legitimar os investimentos estrangeiros ao equipará-los com os investimentos em capital nacional. Isto permitiu a um capital mais dinâmico e forte (o estrangeiro) competir em igualdade de condições com o capital local, gerando em poucos anos uma evasão milionária de ativos.
A terceira e mais polêmica medida foi a redação de uma nova Lei de Entidades Financeiras, que alterou a regulação do sistema financeiro, atribuindo amplo poder aos bancos, com a abertura indiscriminada de sucursais, a tomada de depósitos garantidos à taxa de 100% pelo estado (ou seja, o banco quebrava, a dívida com os clientes era assumida pelo estado social… integralmente) e a autorização de fusões de empresas financeiras visando à criação de novas entidades, com menos requisitos e menor regulação estatal. O impacto dessas mudanças na legislação, feitas sob medida pelos “que sabem”, foi imediato. Cresceu e se encarnou no discurso cotidiano a ideia de que a dívida financeira (e a consequente “entrada de capitais e investimentos”) significava uma capacidade promissora, possibilitar um futuro ao país. Em seus efeitos materiais objetivos (ainda que não duvidemos que os elementos discursivos não o sejam, mas noutra ordem), a dívida pública do estado nacional cresceu de maneira exponencial, mas também cresceu a dívida de pequenos empresários que, em poucos anos, quebraram ou devotaram o seu capital produtivo à especulação financeira, tornada mais rentável nas novas condições do que qualquer outro negócio.
Assim, a ideia crescente de Dívida = Investimento Estrangeiro + Crescimento (os “capitais estrangeiros que vão chegar…”, quase como um moderno messias de punhos repletos de verdades) tomou corpo e condicionou, na forma da acumulação originária financeira, qualquer intenção produtivista. Não é menos certo também que esse processo, que já leva quase 40 anos (as mencionadas leis de Investimentos Estrangeiros e de Entidades Financeiras são de 1977), tenha sido possível, entre outras coisas, graças a duas questões fundantes da economia cotidiana: primeiro, uma complexa conivência entre dirigismo político estatal (conjuntural, não importa o partido, mas sim o lugar ocupado no estado) e representantes das elites financeiras, que se financiam mutuamente e em ambas as direções; segundo, a vigência das mencionadas leis, que nenhum governo da democracia quis ou pôde revogar. Então, um ponto de partida da democracia recuperada na Argentina, a partir de 1983, é que a própria política democrática se construiu convivendo com a legislação abundante herdada da ditadura. Exemplos disso são as leis financeiras e as de privatização de empresas estatais, — uma invenção de Videla/Martinez de Hoz –, usadas com diversas intensidades pelos governos de Alfonsín, Menem e Kirchner.
Outro ponto sobressalente dessa estruturação do discurso com a equação Dívida = Investimento Estrangeiro + Crescimento, — quer dizer, essa notável operação discursiva que iguala os termos, o risco em endividar-se e a promessa de um bom futuro, — está no fato que, quem agora se apresenta como os novos técnicos, “os que sabem”, na administração PRO, não recorre a ideias inovadoras. Eles seguem assim prometendo, que seria a única maneira de dar-nos um futuro, a hipoteca desse mesmo futuro nas mãos de um credor que, aliás, é difuso e múltiplo (podem ser fundos de investimento, bancos, organismos de crédito internacionais; dá no mesmo contanto o “messias/dinheiro” aterrisse por um momento). Assim são as coisas: esses novos técnicos — que vêm à Argentina para “ajudar” porque cada um sabe que já arrebanhou a sua própria fortuna, — vem para resgatar suas receitas. O que se demonstrou em passagens históricas: 1) Quando lhes coube administrar o BC nos 80 (Carlos Melconian), já na democracia, o endividaram até a possibilidade de default; 2) quando intervieram na grande crise de 2001 (Federico Sturzenegger), outra vez apostaram no endividamento, mas desta vez conseguiram que a Argentina (com um PIB impensado para a sua população) entrasse finalmente em default, implicando um negócio milionário não só para os credores, como também para os negociadores desses débitos, que ganharam milhões apenas participando da transação, mediante o velho truque da intermediação — diga-se de passagem, Sturzenegger segue processado judicialmente por sua atuação junto a Cavallo. Atualmente, recuperam os seus lugares na cúpula do estado e retornam à mesma fórmula, transformando os títulos do tesouro — que são intangíveis por lei — em títulos que podem ser vendidos no mercado de capitais, em troca da promessa de mais capitais (quer dizer, mais dívida) a uma taxa altíssima para a Argentina e com uma gigantesca comissão aos intermediários (operadores financeiros que “sabem” desses exercícios contábeis, opacos para a grande maioria, até que um gênero básico de conhecimento seja excitado pela subida dos preços de gastos cotidianos).
É assim que o endividamento público, como se ressalta no Informe do deputado Claudio Lozano, depois de seu trabalho na impedida Comissão Bicameral Permanente de Investigação da Origem e Continuação da Gestão e do Pagamento da Dívida Exterior da Nação (Lei n.º 26.984), beneficiou “a acumulação financeira de um conjunto reduzido de grupos empresários locais e estrangeiros, às custas do desemprego crescente e da destruição de porções significativas da cadeia produtiva fabril”. Simultaneamente, não são poucas as empresas ou grupos econômicos que, beneficiados pela escandalosa estatização de suas dívidas durante a última ditadura, se mantêm hoje total ou parcialmente em sua condição original, ou seja, em posições privilegiadas na economia argentina. Por exemplo, Socma (dos Macri), Pérez Companc, Loma Negre, Ledesma, Fiat, Arcor, Banco da Galícia, Alpargatas, Fate, são só algumas das 67 empresas que hoje participam da cúpula. Não devemos a nós próprios enquanto país, uma férrea investigação da trama empresarial-estatal, a fim de avaliar o comportamento dos atores, o roubo estrutural legalizado e os efeitos concretos da deterioração da participação das maiorias na riqueza que os corpos geram?
5. O começo aberto para os ignorantes
Quiçá nos reste uma das perguntas mais incômodas sem resposta, pois a política contemporânea já não força vontades multitudinárias, da lama que nos instiga a resolvê-la: como nos convertemos de uma cultura ordenada de quartel, através de um líder “reto e disciplinado”, num Estado corrompido pelo desejo de poucos? A política contemporânea e pós-2001 se apresenta para nós como mistificação e engano, curiosamente compartilhados por multidões menos homogêneas do que aquela lama (agora múltiplas e polifônicas, mas nem por isso menos parecidas às anteriores em seus gestos de brutal intolerância) e nos ensina, aos ignorantes evidentes como aqueles que tentam entender o mundo PRO e as fibras sensíveis que o alimentam, que a ficção atual (a da última década) foi algo enganosa e perceptiva, confinadora e permissiva, e promotora do que se sucedeu. A gestão pelos “que sabem”, no ritmo de uma dança impenitente, se construiu paralelamente à gestão anterior, intuindo onde amassar, prevendo duas fontes anímicas das multidões esgotadas: cansaço e necessidade. A gestão do óbvio transforma a política no próprio senso comum e, contrariamente ao que se crê da desgastada desconfiança popular, converte a política num espaço do mais transparente, cinicamente primitivo: “devo acreditar que mente, sabendo que mente, já que, no final das contas, acredito-o mais efetivo do que o meu cansaço e necessidade”.
Assim, a política, que se apresentava opaca por tratar-se de uma questão das elites, se apresenta clara, transparente, obscena; e a economia, que se anuncia com a clareza de um dono de empresa “descontraído”, se torna cada vez mais opaca, suportando-se na equação que vende gato por lebre (ou dívida por futuro, que é mais ou menos a mesma coisa). Se o enorme ensaísta e professor sanjuanino sonhou com elites que discutiam política entre si (sem ceder lugar à desprezada chusma), enquanto garantiam a educação do “soberano”, e a economia consistia simplesmente que todos trabalhassem sem mais (em parte, era essa a missão da escola); a nossa equipe PRO libera o “soberano”, que sabe muito do cotidiano, — e assim se fortalece o regime do óbvio –, da necessidade de educação ou trabalho, já que somente lhe cabe esperar a ajuda dos novos gestores, para melhorar a sua qualidade de vida, quer dizer, o consumo. Uma forma a mais de “magia” que, até agora, como dissemos antes, apenas Cavallo tinha conseguido impregnar ao redor de sua figura.
A ideia tola de que os empresários endinheirados do outro lado do mostrador se manterão longe de toda tentação econômica e imunes ao pecado da corrupção vai por terra antes mesmo de levantar voo. Os grandes grupos econômicos, diferentemente da maioria das pequenas e médias empresas, dos pequenos agentes econômicos, embolsam as suas fortunas em grande medida graças à cumplicidade com a sonegação estatal e o peso que têm para dobrar em seu favor medidas de governo e até leis, contando inclusive com o beneplácito de estruturas enganchadas no poder judiciário. O fato que haja castas dirigentes da política que se enriquecem graças aos cargos em todos os níveis não conduz, em hipótese alguma, à ideia que o milionário “não vai roubar”, como imprudentemente se reproduz às vezes na rua. Mas alguém acredita realmente nessas tolices, ou se trata de uma compreensão pornográfica em que todos se fazem de bobos como se tivessem regozijo em sustentar o insustentável? A política é permanentemente apresentada como uma telenovela, com as suas histórias de vida e os seus dramas menores. Uma entrevista ao atual presidente não passa de uma nota da revista Caras. Os jornalistas que rasgavam as vestes agora lhe fazem a corte, submissa e gostosamente, a um governo que se confunde diretamente com o patrão deles. Não era esse o tipo de vínculo que eles questionavam em primeiro lugar? Será que se sentiam ressentidos ou excluídos? São, sim, uma perna fundamental do regime do óbvio, da opiniologia que expurga toda aspereza real na máquina de produzir evidências.
O fato que boa parte das elites empresárias busque apossar-se diretamente dos recursos estatais é um dado histórico significativo do momento, na medida em que completa definitivamente as práticas que esses grupos realizam fora do estado. Ocupar os dois lados do mostrador é um projeto ambicioso que somente durante a última ditadura pôde emplacar. Nesse sentido, o discurso insosso e filantrópico, ou a “vocação profissional” não passam de muletas para a, ainda que cantada, vontade inconfessável de expansão de um regime de vida fundado na acumulação originária financeira, a hierarquização exitosa do indivíduo-empresa, a dissolução do laço político na trama social, a capitalização por algumas poucas características inventivas do comum, o retorno da renda pura e dura como controle territorial, a flexibilização total das condições de trabalho, o endividamento em todos os níveis e a policialização da vida como forma de gestão do conflito. Tudo isso parece demais, no entanto, não há marionetes claras, nem malvados de manto negro, nem estereótipos à Eisenstein do porco capitalista, e mesmo se os houvesse, não seriam mais do que expressões para relações mais complexas daquelas que participamos e, para agravar as complexidades, algumas delas atravessaram o período que passou sem sair da zona de conforto.
Finale
Que se movia e que se moveu nas conexões transversais entre corpo-a-corpo de bairro, discurso político, redes econômicas e afetivas, linguagem da rua? Que ficará da batalha imaginária entre o que se coloca na exploração como modo de vida (“me arregaço”), com a consequente tranquilidade proprietária, ainda que no limiar mínimo de capacidade econômica, e o considerado vago, perdulário, festivo, relutante às codificações que pesam sobre a sua forma de vida? Que alianças se tecerão entre este novo populismo branco e o temor e tremor de bairro? Não sabemos que dança nos espera, nem sequer soubemos dançar a que passou. Revisamos o recém escrito e encontramos excessiva confiança no “ponto de vista da luta”… Uma confiança, entretanto, em algum ponto, moral. Seremos carne de canhão? [7] Talvez, algumas bofetadas a mais, conseguiremos reavivar a pena — que é o que por enquanto nos salva da empesteada normalidade — para nomear o que hoje não conseguimos. Por enquanto, vemos o monstro nu numa época em que desnudar o rei não significada nada… e a demonização, eficaz até há pouco, pode ir perdendo força e sentido. Que forças nos ficam e que ventos removerão os espíritos atentos? Porque, aparentemente, ignorantes por vocação, só nos sobra a nossa atenção.
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[1] – Pablo Hupert. El Estado posnacional. Más allá de kirchnerismo y antikirchnerismo. Buenos Aires: Quadrata – Pie de los Hechos, 2015.
[2] – Numa das últimas entrevistas públicas, disse com sarcasmo o seguinte: “Macri tem tantas possibilidades de ser presidente da Argentina, como eu de ser imperador do Japão.” Daí a nossa coroação respeitosa de Laclau.
[3] – http://www.lapoliticaonline.com/nota/95306/
[4] – Eliseo Verón, Silvia Sigal. Perón o muerte. Los fundamentos discursivos del fenómeno peronista. Buenos Aires: Legasa, 1986.
[5] – Recomendamos o capítulo “1930: la mirada del testigo” de Horacio González. Perón. Reflejos de una vida. Buenos Aires: Colihue, 2008.
[6] – Bruno Napoli, Celeste Perosino, Walter Bosisio. La dictadura del capital financiero. Buenos Aires: Quadrata – Continente/Peña Lillo, 2014.
[7] – http://www.minutouno.com/notas/1466564-video-este-es-el-trapito-que-noqueo-un-joven-san-martin