Por Manuel Castells, na Vanguardia, 30/9/17 | Trad. UniNômade
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“No dia de hoje, anulado e desarmado o independentismo catalão, as tropas constitucionais alcançaram os seus últimos objetivos. A sedição terminou. Madri, 1º de outubro de 2017.” Tal poderia ser a premissa de um reality show que tentasse repercutir o desejo íntimo dos dirigentes do PP [NT.: Partido Popular, governista, do primeiro-ministro Mariano Rajoy] e do Ciudadanos [NT.: partido recém-criado, aproveitando o rechaço antipolítico, por uma “nova política” encabeçada por outsiders] de algum líder histórico do PSOE [NT.: o segundo partido do bipartidarismo que opera o Régimen de 1978, que se seguiu à ditadura franquista] e de certos meios jurídicos. A alegoria é obviamente exagerada, porque não há armas. Mas se liga com as imagens das colunas da Guarda Civil nacional marchando para a reconquista da Catalunha a partir de várias cidades da geografia carpevetônica [NT.: refere-se à aliança dos carpetanos e vetones que repeliram a invasão romana na península ibérica por várias décadas, até serem subjugados em 153 a.C. pelas legiões de Scipio Africanus] entre vivas à Espanha e gritos de “a por ellos”. Inclusive despedidas em bases da Benemérita [NT. como é chamada a Guarda Civil, braço armado do Ministério do Interior, com sede em Madri]. E se relaciona com a ausência de proteção policial à assembleia de deputados democraticamente eleitos em Saragoça, cercados por centenas de nazis, ausência justificada pela “falta de efetivos”, pois foram destinados para Barcelona.
Nesse contexto, não parece de todo incoerente o passado falangista [NT. Falange Española, partido fascista de respaldo da ditadura do general Francisco Franco, de 1939 a 1975], evidenciado fotograficamente, de Albert Rivera, instigador de uma repressão desproporcional. Como disse Pedro Sánchez do PSOE, é preciso deixar de lado a lei do mais forte e apelar para o diálogo. Porque ainda que se impusessem as medidas de força ordenadas pelo Tribunal Superior de Justicia de Cataluña [NT. Órgão máximo da justiça na comunidade autônoma] e da Fiscalía, não se apaziguaria o grave conflito que estamos vivendo. Ao contrário, ele aprofundaria a fratura social. Entre a Catalunha e a Espanha, na Catalunha e também na Espanha. Apelar a uma Constituição que muitos cidadãos já não reconhecem e que a direita resiste em reformar seriam manter a ordem e o arbítrio como formas de governo. Uma velha tradição espanhola que minava a convivência num país que, queira-se ou não, é plurinacional, como assim o defendem o PSOE, o Podemos e o PNV (Partido Nacionalista Basco), entre outros. O tempo haverá de depurar as responsabilidades sobre quem é mais culpado pela profunda crise constitucional que quebrantou o estado espanhol. Mas é má fé atribuí-la à Generalitat [NT. autoridade da comunidade catalã], por sua insistência num plebiscito, como tendo sido a causa do conflito, sem lembrar que os parlamentos catalão e espanhol aprovaram, em 2010, um Estatuto da Autonomia massivamente referendado por um voto legal na Catalunha. E que foi o recurso do PP a um Tribunal Constitucional enviesado em suas opiniões, o que levou a judicializar a política e negar a soberania popular, podando a autonomia numa provocação à vontade majoritária dos catalães. Não é caso de referir-se à utilização eleitoral pela ex-CiU [NT. Convergència i Unió, federação de partidos independentistas catalães, que durou de 1978 a 2015] da indignação popular, sem considerar também o projeto deliberado da direita (PP e Ciudadanos) em fundar boa parte de sua base eleitoral no anticatalanismo. Esse sentimento que agora se inscreve nas boas gentes da Andaluzia ou de Madri, depois de terem sido açoitadas e manipuladas por meios de comunicação a serviço dos poderes de sempre, e sem esquecer que alguns meios públicos catalães caíram na tentação de retribuir na mesma moeda.
Os historiadores farão a crônica e a crítica deste lamentável processo em que as aspirações nacionais legítimas de muitos catalães foram desprezadas e humilhadas até exasperar a confrontação. Para, no fim, recorrer a essa lei da força que a esquerda rechaça, de Pablo Iglesias até Pedro Sánchez, assim como o nacionalismo basco e o nacionalismo galego. Mas essas são perguntas para o futuro. Porque, como a história ainda não está escrita, a questão candente não é como se chegou até este 1º de outubro de escolas fechadas, independentistas detidos, milhares de cidadãos nas ruas buscando espaços de democracia, policiais catalães que, movidos pela consciência, se desgarram da própria corporação, e guardas civis nacionais que obedecem ordens e ocupam militarmente todo um país.
A questão é que o 2 de outubro virá. As propostas mais bem intencionadas falam de comissões parlamentares para a reforma da Constituição, em negociações com o soberanismo catalão (e, de passagem, o basco), de uma trégua em troca de concessões de prerrogativas e competências. Mas como se pode esperar que uma negociação entre políticos possa cicatrizar as feridas profundas de um povo humilhado em sua dignidade? Porque se fala tanto de uma Catalunha dividida, mas a divisão se refere à independência e não ao direito de decidir num plebiscito, uma opção apoiada por 3/4 da população. O pisoteio brutal dessa aspiração majoritária não permitirá um retorno à normalidade, como se nada tivesse acontecido.
Em 2 de outubro, não começa a negociação, mas a resistência pacífica de quem quer votar no plebiscito. E não apenas dessa CUP [NT. Candidatura de Unidade Popular, extrema-esquerda independentista da Catalunha] magnificada e demonizada pelos meios de comunicação em Madri. Mas, sim, de centenas de milhares de cidadãos que não vão se render tão facilmente, ainda que o seu esforço pareça fútil. Prevejo que em dois terços dos municípios catalães se arriará a bandeira espanhola. E haverá universidades ocupadas, acampadas se disseminando pelo espaço público, edifícios oficiais com piquetes, masmorras cercadas, avenidas bloqueadas, comunicações perturbadas, tentativas de greve geral, aqui e ali, em função dos humores, da repressão e da indignação. E com uma opinião pública internacional que começa a mobilizar-se, sobretudo entre os milhares de jovens amantes de Barcelona. Meus estudantes dos Estados Unidos me perguntam como fazer para ir defender a Catalunha, como se fossem as brigadas internacionais. É claro que eu os acalmo e digo que simplesmente enviem mensagens. Mas a tormenta se tornou global: uma nova causa alenta os jovens que amam viva a liberdade. Sobretudo se o amigo de Rajoy se chama Trump. E tudo isso contando que não haja um descontrole da polícia, até agora disciplinada, que venha a ocasionar mortos e feridos. Porque aí tudo pode acontecer.
Mas talvez o 2 de outubro não chegue. Se, no 1º de outubro, surgisse um instantâneo de clarividência em Madri e se negociassem condições para uma votação por gentes que só querem dizer o que querem ser, aí sim, poderíamos voltar a olhar para o futuro sem temer o passado.
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