Por Marisol
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Acompanhada por um grupo de colegas trabalhadoras da educação que vêm ocupando as ruas desde as manifestações de junho, cheguei na Cinelândia por volta da uma da tarde. Durante toda a manhã, chegavam informações que o clima era tenso. Grades, cães de guarda, policiais que faziam barreiras numa proporção muito maior do que no dia anterior. Pra quem já vinha assistindo nos últimos meses à violência desmedida do estado contra manifestantes, o medo não deixava de estar presente. Mas a revolta pulsante e a indignação contra a aliança perversa que favorece os desmandos dos governos era maior.
Chegando lá, a emoção de ver aquela praça lotada – diretores de escolas, coordenadores, professores, funcionários em geral, alunos, pais, profissionais da saúde, sindicatos, partidos e diferentes movimentos organizados – se misturou com a certeza de que o aparato de guerra estava ali para garantir a qualquer custo a aprovação na Câmara do novo PCCR (plano de carreira e reajuste). Ficamos ali, encontrando colegas e compartilhando gritos e marchinhas políticas revelando uma pauta clara. Apesar da educação permanecer no centro das reivindicações, era o modelo de gestão da cidade que estava em xeque.
Um pouco antes das quatro horas, sem saber o que acontecia dentro da casa do povo, já que o povo foi impedido de entrar e as decisões se davam num silêncio escandaloso, tivemos a ideia de acompanhar, via celular, o canal legislativo para divulgar algumas notícias. Por volta das quatro e quinze. uma amiga, chocada, informa: “gente, sessão extraordinária aprovada, vão passar tudo na marra hoje”. Imediatamente depois da informação, ouvimos a primeira bomba de gás lacrimogêneo ser lançada.
As pessoas correram, mas para a minha surpresa, se reagruparam logo em seguida. Os moleques Black Blocs – aparentando entre quinze e dezessete anos – começaram a circular, uma parte deles oferecendo soro, água, vinagre, leite de magnésio e orientações sobre os efeitos das bombas, e possibilidades de fuga caso a polícia encurralasse ainda mais. A outra parte se manteve no front, chamando a atenção dos cães (racionais e irracionais) para que os manifestantes pudessem escapar.
A cena era de um campo de guerra. A polícia vinha em barreiras, jogava uma bomba, dispersava as pessoas e avançava mais, varrendo a multidão pela Rio Branco. Entre choros e gritos de “calma”, “fascista” e “volta”, íamos reagrupando ainda em grupos enormes. Apesar de tudo, um sentimento de alívio transbordava em mim. No dia anterior, eram comuns no palanque montado na Cinelândia frases de criminalização dos praticantes da tática black bloc. Circulavam discursos como “não nos misturemos aos mascarados” e “a educação se manifesta de outra forma” – para expressar formas de resistência politicamente corretas, sem violência e sem palavrões. O discurso de que o vandalismo provocava a reação da polícia, e não o contrário, era forte.
Naquele 1º de outubro, as coisas começaram a mudar. Indignados com a violência policial que teve início, sem qualquer indício do dito vandalismo, e com o fato de ser os alvos do ataque policial, os educadores ali presentes começaram a gritar: “o black bloc é meu amigo, mexeu com ele, mexeu comigo”. Ficou claro naquele momento que o perigo não estava representado por máscaras e sim pelas fardas.
Vendedores ambulantes das ruas, pessoas que saiam do trabalho e transeuntes em geral olhavam tudo com caras de espanto. Duas professoras idosas paradas ao meu lado, já aposentadas, choravam e diziam que não queriam estar vivas para assistir àquilo. Citando Paulo Freire, afirmavam que escolheram a profissão pela crença de que a educação pode transformar essa realidade injusta que sonhavam mudar.
A insistência dos manifestantes em permanecerem no local teve como resposta um ataque mais duro. Depois de muitas bombas e já com olhos ardidos e bocas secas, ouvimos também um tiro. Mesmo com os boatos de que fora lançado para o alto, a presença de armas letais nos dava a certeza de que, com a polícia que temos, elas estavam ali para serem usadas. A essa altura o PCCR já estava aprovado e a polícia já chegava nos arredores da Lapa. Não havia mais o que fazer ali.
No dia seguinte, a indignação que marcou a terça feira foi ainda maior: junto aos rumores [NE. não confirmados] de que duas pessoas morreram pelos efeitos do gás, algumas escolas amanheceram com um “comunicado oficial” exposto no portão de entrada. O documento explicava à população o quão maravilhoso era o PCCR, e as intenções do prefeito.
As informações de bastidor sobre a prefeitura do Rio indicam que o aparato de guerra colocado a serviço do prefeito será fortalecido por medidas administrativas duras, que estão por vir. Do lado de fora, um batalhão da Guarda Municipal cercava o prédio e lá dentro pelo menos seis guardas faziam rondas no andar da secretaria de educação, expondo seus cassetetes para quem quisesse ver. A orientação interna era manter silêncio e ter cuidado com o que se falava. Apesar da forte pressão e ameaça de “caça às bruxas” que todos já esperavam, as roupas pretas e caras inchadas de choro expressavam a resistência que ali era possível. Não era um dia de trabalho normal como tentavam demonstrar.
Às nove já foi possível ler no diário oficial o PCCR aprovado pela Câmara. Pela rapidez de todo o processo – estranha em relação a morosidade da estrutura burocrática – a possibilidade da notícia ter sido enviada para a publicação antes mesmo da votação não pode ser descartada.
Algumas chefias pediam cuidado nos comentários e revelavam que, no dia anterior, enquanto os manifestantes eram atacados, o prefeito Eduardo Paes e a secretária de educação Cláudia Costin comunicavam em reunião extraordinária com seu pessoal de confiança, que o Plano já seria publicado no dia seguinte e que medidas administrativas rígidas seriam necessárias. Entre as anunciadas, constava o pedido para a identificação de ocupantes de cargos de confiança que demonstrassem apoio à greve e maior rigidez na avaliação de grevistas em estágio probatório. O objetivo anunciado foi o de “limpar a educação de baderneiros”.
Ainda digerindo as cenas de guerra do dia anterior e recebendo informações de colegas feridos, muitos educadores, agora mais qualificados pela luta, se organizam para o fortalecimento das mobilizações, fazendo ecoar os anseios de mais democracia e liberdade no interior de uma política historicamente autoritária e normalizadora. Que a forte sensação de impotência que imperou nestes últimos dias se transforme em movimento, ato, criação e que na rua, possamos produzir a formação que desejamos dentro das escolas.