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Estelita: os desocupados do Cais

Por Maria Eduarda Dantas

Estelita

1. A alienação do mundo

Uma das acusações mais comumente feitas às sociedades contemporâneas é a de uma suposta “alienação política”, isto é, de uma aparente indisposição, ou mesmo incapacidade, por parte de seus membros, de tomarem parte nas coisas de interesse comum — de pensarem o mundo como um espaço necessariamente compartilhado e habitado em conjunto pelos homens, o que, por si só, teria o condão de uni-los.
A “natureza política” do homem, tão frequentemente alardeada por meio do aristotélico slogan segundo o qual seríamos, por natureza, “animais políticos”, não se reporta ao fato de que haja qualquer essência política no homem, individualmente considerado. Antes, diz respeito à circunstância de a natureza nos haver trancafiado todos juntos, ao dar o formato esférico que bem conhecemos à nossa temporada na Terra. A política, portanto, é decorrência da pluralidade humana e surge fora do homem, no espaço que existe entre os homens.

Para Arendt, o que tornava a sociedade de massas tão difícil de suportar não era o número de pessoas que ela compreendia — “ou pelo menos não é este o fator fundamental”, dizia. “Antes, é o fato de que o mundo entre elas perdeu a força de mantê-las juntas, de relacioná-las umas às outras e de separá-las”. Imagine que um grupo de pessoas reunidas em torno de uma mesa, de uma hora para a outra, por força de algum truque ou ilusão de ótica, vissem a mesa desaparecer entre elas: “duas pessoas sentadas em frente uma à outra já não estariam separadas mas tampouco teriam qualquer relação tangível entre si” (ARENDT, 2008, p. 62).

Se, para Arendt, a “impossibilidade” da política nos nossos dias deve-se a essa “perda do mundo”, fenômeno associado à atomização da sociedade e à progressiva contaminação do espaço público pelas atividades típicas do privado, fazendo a ação ser subsequentemente eclipsada pelo trabalho e pelo labor, para Bourdieu, por outro lado, a alienação das pessoas em relação à política estava relacionada à colonização do campo político por experts que dele se apropriam e, excluindo os demais (os “profanos”), monopolizam a linguagem, os temas e a agenda da política: convertem-se em políticos profissionais. Com isso, logram produzir, legitimar e reproduzir os privilégios e assimetrias sociais, às custas da dominação do restante da população.

2. O “Ocupe-se”

Nesse sentido, o ‪#‎ocupeestelita‬, movimento de luta dos recifenses pela sua cidade e “pelo seu céu”, como tão bem colocou o El País, deve, necessariamente, ser entendido também como movimento de resgate da política por parte da população de Recife, que a retoma do domínio dos “políticos profissionais” e de todos aqueles que, animados por interesses que vão não muito mais longe que o próprio nariz, investiam — metafórica e literalmente — no desinteresse dos recifenses em relação ao seu destino comum — e capitalizavam-se em cima disto.

A cidade, espaço compartilhado pelos cidadãos, constitui-se, a um só tempo, o lugar e o próprio tema privilegiados da política — e a batalha que, hoje, os recifenses travam por uma de suas vistas mais bonitas, desdobra-se na metáfora da luta pelo que está por vir para a cidade: o horizonte a que todos têm direito não é só aquele que se pode, concreta e fisicamente, enxergar, no Cais José Estelita, mas também — e talvez principalmente — o horizonte do futuro comum dos recifenses, de sua cidade. O que queremos para o Recife? É isso que está em jogo.

Nessa toada, torna-se peculiarmente interessante atentar para o infame bordão em torno do qual os críticos do #ocupeestelita agruparam-se: “ocupe-se”. Para além do jogo de palavras um tanto quanto preguiçoso, nele é possível identificar dois julgamentos — ou “acusações”, conforme o tom adotado — que, longe de restringirem-se ao movimento político do #ocupeestelita, vêm sendo direcionados à própria atividade política, desde sempre.

Em um primeiro sentido, diz-se “ocupe-se” a manifestantes que “estão” desocupados, porque seu engajamento político não produz nada para a sociedade. Noutras palavras, acusa-se atividade política de ser improdutiva. Em um segundo sentido, diz-se “ocupe-se” a manifestantes que “são” desocupados, porque não produzem nada para a sociedade e, por essa razão, gozam do privilégio de poder dedicar-se a questões políticas. Noutras palavras, acusa-se a atividade política de ser exclusividade de uma elite que, liberta do reino das necessidades, pode dar-se ao luxo de “mover-se politicamente”, para recuperar uma expressão arendtiana.

Em ambos os casos, tenta-se julgar a política e ação política por meio de critérios que lhe são externos e completamente estranhos: a utilidade, a produtividade, a necessidade. E é isso que torna o imperativo “ocupe-se” tão cretino e modorrento. Não é, exatamente, a tentativa de deslegitimar a pauta do movimento, ao insinuar que ele é composto por desocupados que só sabem “gerar desordem” — o que, de toda forma, como qualquer pessoa que se dê ao trabalho de conhecer o #ocupeestelita é capaz de atestar, não poderia estar mais longe da verdade –, mas a profunda aversão em relação à política que se revela, no discurso que manda os nossos ocupantes irem “ocupare-se”.

3. A inutilidade da política

O curioso disso tudo é que, de maneira bastante irônica e, consequentemente, involuntária, o “Ocupe-se” está correto. A política não é uma atividade produtiva e, pelo menos em alguma medida, é necessário libertar-se dos constrangimentos do “reino das necessidades” para poder agir politicamente. Mas não há nada de errado, vergonhoso ou censurável nessas circunstâncias, que são características próprias da política — e é isso que o “Ocupe-se” não logra enxergar, porque, reprodutores irrefletidos da lógica da alienação, só conseguem julgar qualquer coisa que apareça diante dos seus olhos de acordo com o critério da utilidade. Esse parâmetro nos é enfiado goela abaixo por uma sociedade capitalista, de produtores, na qual o homem é reduzido ao trabalho de suas mãos e ao labor de seu corpo, e que, por isso, torna-se absolutamente incapaz de preocupar-se com outra coisa que não seja a geração de “produtos tangíveis e lucros demonstráveis” (ARENDT, 2008, p. 232).

A ação, o discurso e a política, dentre as atividades que compõem o espectro da vita activa, são, sem dúvida, as mais inúteis e as mais improdutivas. Os seus “produtos” são destituídos de tangibilidade e são ainda menos duráveis e mais fúteis do que o que se produz para o consumo — nosso metabolismo com a natureza –, porque sua permanência no mundo depende da pluralidade humana, “da presença constante de outros que possam ver e ouvir” (ARENDT, 2008, p. 106); depende, enfim, da “frágil teia de relações” de que se compõem os negócios humanos, cujas incerteza e instabilidade decorrem do fato de eles se darem numa comunidade em que todos gozam de igual capacidade para agir.
Nesse ponto, a ação, talvez um tanto inusitadamente, está mais próxima do pensamento do que de qualquer outra atividade humana, pois, como ele, não deixa nada de tangível atrás de si — pelo contrário, carrega sempre um alto grau de efemeridade, fatalidade e, mesmo, auto-destruição, de modo análogo à existência do próprio homem, ser condenado à mortalidade em um universo em que todo o resto é imortal.

A política, pois, conduz-se nesta tripla frustração: a imprevisibilidade dos seus resultados, a irreversibilidade dos seus processos e o anonimato dos seus atores (ARENDT, 2008, p. 232). E aqui, novamente — também inadvertidamente e não no sentido originalmente pretendido, é certo–, o “Ocupe-se” está correto, dessa vez, ao afirmar que o que o #ocupeestelita sabe fazer de melhor é “gerar desordem”. Ao agir, damos início a uma cadeia de processos cujas consequências são infinitamente imprevisíveis, pois os limites e os significados de cada ação não são, absolutamente, dados por aquele que a inicia, mas apenas se revelam sob a luz que iluminam os processos históricos e que só aparece quando a ação termina — “muitas vezes quando todos os participantes já estão mortos” (ARENDT, 2008, p. 204).

Ao ocupar-se da ação, o homem não sabe, nem tem como saber, ao certo, o que faz. A ordem, a estabilidade ou previsibilidade jamais poderiam ser inseridas nos negócios humanos por meio da ação — quem faz isso é a “polícia”, que, por excelência, se opõe à política, para evocar a dicotomia utilizada por Jacques Rancière.

4. E o sentido da política?

O “Ocupe-se” não foi o primeiro a “denunciar” a ociosidade e a inutilidade da política — nem será o último, podem ter certeza. Isso é tão antigo quanto a própria história escrita, muito embora o exemplo clássico, nessa questão, seja Adam Smith, que afirmava que a função exclusiva do governo deveria ser a defesa do rico contra os pobres — a defesa dos que têm propriedades contra os que não as têm. Parece familiar?

Os argumentos que são levantados contra um adversário por vezes têm essa capacidade, quase mágica, sem dúvida deliciosa, de expor mais quem fala do que aquele sobre o qual se fala. É o caso do “Ocupe-se”. Ao sugerir que se é manifestante porque se é desocupado, ou que se é desocupado porque se é manifestante, eles só mostram que não conseguem perceber do que se trata a política, nem podem compreender o sentido necessariamente político de um mundo compartilhado — a dimensão incontornavelmente política da cidade. Daí a incapacidade dos membros do “Ocupe-se” de participarem do debate sobre o Cais José Estelita de qualquer maneira minimamente construtiva. Com efeito, o que une o #ocupeestelita é, apenas imediatamente, a rejeição às 12 torronas horrorosas do Projeto Novo Recife — no fundo, estamos unidos pela própria cidade, pelo próprio Recife.

Sugerir aos manifestantes que vão “ocupar-se” é insistir em uma lógica despolitizante e apolitizante; é querer que as pessoas abram mão de tomarem parte nas coisas de interesse comum; é, enfim, pretender que se abdique de participar dos processos que constroem o sentido do nosso mundo, pois se é verdade que a política não tem o condão de “produzir” coisas, da mesma forma que o trabalho “produz” bens úteis, tangíveis, consumíveis, não é inteiramente correto afirmar que dela nada sobrevenha: o sentido mais verdadeiro da política é a liberdade, na exata medida em que, por meio da política, nós próprios construímos –“auto-instituímos”– o mundo que está ao nosso redor; um mundo cujo sentido não é estabelecido previamente, que não existe independentemente de nós, nem está pronto, dado, acabado. Pelo contrário, ele está — e sempre estará– por fazer, como bem lembrou Zizek aos “desocupados” de Wall Street, ” nossa mensagem básica é: o tabu já foi rompido, não vivemos no melhor mundo possível, temos a permissão e a obrigação de pensar em alternativas”. O nosso horizonte, para todos os efeitos, não está à venda.

 

Maria Eduarda, bacharel em direito, é mestranda em ciência política pela UnB

Referências:
ARENDT, Hannah. Qu’est-ce que la politique? Paris: Seuil, 1995.
________. Considérations morales. Paris: Éditions Payot & Rivages, 1996.
________. A condição humana. Rio de Janeiro: Forense Universitária, 2008.
ZIZEK, Slavoj. A tinta vermelha. <http://blogdaboitempo.com.br/2011/10/11/a-tinta-vermelha-discurso-de-slavoj-zizek-aos-manifestantes-do-movimento-occupy-wall-street/>

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