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Fragmentos e estilhaços de uma possível história recente

Por Eduardo, em Intus et in cute, em 17/10

redgas

Acordo e sinto novamente o cheiro do gás. Esfrego os olhos turvos. O cheiro vai embora. Tenho dado para alucinar estes instantes. Ontem foi o calor da fogueira em praça pública. Nem todo delírio é de derrota. São três da manhã. Fui dormir às duas. Insônia de novo. Olho para a cama. Lençol revirado. Colchão úmido de suor. Talvez outro pesadelo. No espaço onde deita minha companheira, só a depressão do peso do seu corpo. Perdi-a, temporariamente, anteontem em meio à névoa tóxica. Um amigo falou que a tinham pego. “Acho que a levaram para aquela delegacia perto do banco.”

Vou correndo até lá. Passando entre as duas trincheiras. Ouço gritos vindos dos dois lados. Alguma coisa me acerta na cabeça, mas não paro de correr. Chego com o corpo latejando da corrida, das porradas, do ódios, da tristeza. Sinto algo quente escorrendo pelo meu pescoço. Algo rasgou minha pele perto da orelha. Não ligo. Entro na delegacia e pergunto onde ela está. Um policial olha para mim. Seu rosto muda. Parece espumar de raiva. “Foi esse filho da puta quem tava com aquela vagabunda.” Outro policial tenta me agarrar. O instinto bate mais forte. Saio correndo. Não ia adiantar nada os dois serem presos.

Isso foi anteontem. Ontem descobri onde ela está. Falei com ela pelo telefone. “Estou bem. Deixa de frescura. É isso aí mesmo. Se tu não voltar para a rua, vai se fuder. Te amo.” Voltei. Assim que desliguei o telefone. No centro, já tinham limpado a tudo. Quase tudo. Aqui e ali, ainda algumas marcas, mas todos pareciam ignorar. Era como se nada tivesse acontecido ali a menos de vinte e quatro horas. Homens de terno. Ambulantes. Jovens estudantes universitárias. Todos caminham normalmente. Isto sempre me surpreendeu. A normalidade do cotidiano mesmo sob tempos de exceção. Fico imaginando Berlim em 1940. Buenos Aires, ’70. Paris, 1807. Rio de Janeiro, 1965. Santiago, 1974. Como a calma pode esconder tão facilmente a barbárie.

Até aí, nada de novo. É sempre o sangue da explorada e do oprimido aquilo que move as pás das hidrelétricas dos patrões. Rios e cachoeiras vermelhas. Salgadas pelas lágrimas das mães, pais, irmãos e irmãs daqueles que caem pelo caminho. Não é pouco o que é arrancado de nós para mover esse moinhos. Talvez não seja tão diferente assim, mas eu sinto como se fosse. Lembrei que naquele mesmo lugar, no dia anterior, tínhamos cantado e dançado ao som dos nossos próprios tambores. Antes dos canhões deles tomarem para si a tarefa de emudecer nossa alegria.

Sentei na praça e esperei o tempo passar. Em duas horas, começou a aglomeração de ambos os lados. Um mar negro revolto começou a encher no espaço público. Ao seu redor, se insinuando pelas frestas da cidade, barreiras de farda começaram a ser levantadas para conter as águas. Já vi esta dança muitas vezes antes na vida. Aqui, Rio de Janeiro, Genebra, Seattle, Cairo. Quase parece um balé ensaiado. Tudo parecia calmo antes da tempestade. Sempre parece. Assim como em algumas horas depois outra clareira vai se abrir no meio da explosão.

Deitado na minha cama de olhos fechados relembro estes momentos. Com a lembrança, volta a dor. Uma pontada na altura do pulmão. Lembro que quase quebraram uma costela minha ontem. Depois que o mar cresceu e bateu nas margens algo atingiu o lado direito do meu tronco.  Quando parei, algumas horas depois. Percebi o quanto doía. Enquanto estava no meio da multidão. Correndo. Parando. Fugindo. Voltando. Caindo. Levantando.  Não sentia nada. Só o corpo pulsando e a mente acelerada. Percorrendo os espaços que abrimos no tecido social esgarçado. Preenchendo as lacunas deixadas. Suturando as feridas abertas. Quando parei, a dor lancinante. Encostei a mão e senti o osso solto. Um companheiro, que estava comigo, falou. “Ih, acho que zoaram a tua costela companheiro. Segue aí para o hospital que se não vai ficar ruim pra ti.”

No hospital, fui bem tratado. Perguntaram como tinha acontecido aquilo. Menti. Falei que praticava arte marcial. Do meu lado, um jovem baleado era interrogado pela polícia. Pelo que entendi, ele disse que tinha sido atingido na manifestação. O policial não parecia muito interessado em como tinha acontecido. “Que merda tu tava fazendo lá pra tomar bala? E não adianta falar que num tava fazendo nada que meu colega já disse que tu tava naquele grupo com os menores.”A médica pediu para o policial se retirar. “Aqui não é delegacia. Se quiser pega o nome dele e só, mas me deixa trabalhar em paz.” O policial falou em desacato. A médica olhou para ele. Não falou nada. Só ficou olhando nos olhos. Pareceu que se passou uma eternidade. No final, o policial foi embora xingando todo mundo. Entendi só que faziam duas semanas que ele estava direto na rua por causa “dessas porras”. Fiz alguns exames. Fraturadas duas costelas. Tinha que engessar, mas sai antes. Agora, dá para ver o roxo e o inchaço. Amanhã eu volto lá.

Do hospital, voltei para casa. Precisava ficar um dia isolado. Fazendo nada. A dor incomodou o dia de hoje inteiro. Lembrança do preço que pagamos por tentar trazer vida e alma aos nossos desejos de transformação. Outros amigos e amigas estão muito pior. Dois perderam um olho. Uma menina levou um golpe de cassetete no rosto. Perdeu três dentes e teve que operar o nariz. Afundado pelo golpe. Um colega da faculdade foi preso. Ficou dez horas algemado a uma cadeira na delegacia até desmaiar. Ameaçaram uma mãe que foi detida com seu filho de tirarem a guarda da criança quando descobriram que era divorciada. Três adolescentes já estão internados no Padre Severino. Um deles sofre de depressão e não deixaram sua mãe levar a medicação.

Lembrei daquela passagem d’Os Miseráveis que conta a resistência da barricada. No final, quem decide resistir morre na última trincheira. A taverna onde se reuniam para beber e conversar antes da revolta. Salvam-se os que foram obrigados para se salvar. Contra sua vontade, por terem filhos, filhas, mães idosas. A solidariedade os unia a caírem juntos. Também salva-se um dos protagonistas. Desmaiado, é carregado no ombro pelo pai da mulher que ama. Pai que o odeia, mas o salva mesmo assim. No final, o amor foi que salvou a todos eles. Outro tipo de amor – um desejo pulsante que explode no peito e clama liberade – manteve os demais na barricada. O Estado só cumpria seu dever.

Nos livros funciona melhor. Aqui, amor e desejo, revolucionários ou não, se misturam. Carregamos nossas barricadas nas costas e somos carregados nos ombros por um ser sem nome. Aquilo que aglutina as vontades de transformação e justiça. Impulsiona nossos corpos cansados para frente. Mantem nossa visão nítida, apesar da névoa fétida que tenta nos expulsar das trilhas que nós mesmos abrimos nessa selva de pedras, símbolos e leis.

Amanhã, estarei nas ruas de novo. Sentirei novamente o asfalto quente sob meus pés e o ar carregado da cidade grande. Aos poucos, a maré encherá novamente. Cada homem e mulher será um rio caldaloso desaguando naquela praça. Dançaremos juntos ao sabor do vento. Criaremos nossa própria brisa. O ar movimentado pelos nossos cantos. Deslocado pelos nossos corpos girando em espiral. Seremos redemoinho. Seremos carvão. Faremos de nós argila. Esculpindo o presente na nossa pele e nossa carne. Seremos matéria-prima, mas não para eles. Não de suas fornalhas. Nunca de suas indústrias. Mas de um mundo novo. Onde eu possa acordar novamente e ao meu lado não ver esta depressão no colchão, mas o sorriso daquela que amo e seus olhos refletindo nos meus um mundo melhor. Livre, justo e igualitário.

 

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