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Homenagem a Gabriela Leite

Por José Miguel Nieto Olivar, no blogue da Ampocs, em 15/10

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A gente chora o abandono da estrela guia. Daquela que fez no seu corpo o motor cósmico dos desejos e das lutas, de quem teve o talento, a luz, a força, a coragem e a oportunidade de botar o nome pra frente e dizer: sim senhor, sou eu, é comigo. Poucas estrelas guia de tanta força e tanto sonho a gente tem a oportunidade de conhecer na vida. A gente teve a sorte do seu carinho, da sua presença. Chora as tristezas dos afetos, sim, mas choramos também a nossa própria tontura. E agora?- pensamos. E agora, que morreu a quem eu aplaudia e em cujas palavras eu delirava nas preciosas derivas noctívagas… E agora?

Susan Sontag não gostava de metáforas. Mas Gabi não gostava da Sontag, ela gostava dos maluquinhos franceses com quem deve começar daqui a pouco uma farra imemorial de gente sem-órgãos nem territórios. “Foda-se a Sontag”, dirá ela. A morte da Gabi, a forma e tempo da sua doença, não são apenas o enlouquecer da biologia. Ela participou ativa e corporalmente da construção de um mundo que existiu e que nos últimos anos começou a ser sistematicamente desmontado. Ela, aguda e certeira caçadora, viu esse mundo desabar e não parou de encarar e arranhar; nós vimos seu adoecer na tristeza, seu desespero, enquanto o tal desse mundo não parava de doer na garganta e de ocupar seus pulmões.

A Gabi morreu. Imensa como foi. Morreu na cama de um hospital da rede pública, rodeada de muito amor. Um hospital emblemático, importantíssimo, parte desse universo de direitos que ela ajudou a gestar. Morreu depois de uma cruenta luta. Viveu na flor de uma luta intestinal. Como contra muitos podres do mundo, ela lutou brava e inteligentemente; lutou sem preguiça alguma, com a certeza da necessidade da luta e com um prazer enorme no fazer-se exemplar guerreira. Viveu, batalhou e morreu acompanhada pelas suas pessoas mais cúmplices e queridas, e seu universal Flávio. Lutou desde antes de que a luta fosse luta, e sua morte nada mais é que a consistência preciosa das garras afiadas. E lutou tanto, contra o câncer e tantas outras coisas, e lutou com tanta fereza, que levou sua vida para mais longe e para mais alto do que os cálculos da razão e da prudência teriam imaginado. E perdeu batalhas e ganhou o mundo para ela. E para nós.

Nós. Esse nós sem mais nome que o sabê-lo dizer. Nós, putas, que choramos e agradecemos. Quando um fogo atravessa o céu, o mundo treme e agradece a sua presença. Quando um sol brilha na tarde janela do seu quarto, você se ajoelha e o bebe; celebra-o, compartilha e acaricia longamente para que ele volte a brilhar. Mas há um dia, quando você vira a cabeça, ou quando o vidro quebra no seu nariz, em que você entende que o sol deve ser você; que não terá mais janela aberta esperando a nuvem passar nem moleque deitado nas tábuas esperando o calorzinho bom. Um dia sua pele deve ser aquela que brilhou na tarde escura da mãe. E eis a noite em que você chora. Chora da tristeza da amiga, mãe, avô, puta, esposa, política, intelectual e amante morta. Chora de medo pelo agora drummondiano que o José sem festa se pergunta. E então faz a festa, porque chorar não adianta, babaca, diria a Gabi Amada de cravo e canela.

Uma hora antes da sua morte acariciei-lhe a pele, beijei sua fronte, agradeci a vida que teve, a beleza e contundência, a coragem e o tesão que nos ensinou. Ninguém como tu, Gabi, eu disse. Falei do amor que por ela sentimos. Fica tranquila, fizeste o mundo girar em órbita outra. Ela ouvia, tortuosamente respirava, e um leve maremoto borbulhou entre seus dedos e os meus. Afinal, uma inundação no olho que jamais fechou.

E agora? O que eu devo fazer com a memória dessa mulher outrora incêndio de verão, ressaca da primavera, e ontem, ontem à tarde, pedacinho frágil de osso, pele e mel, prosaica morte? Agora és rizoma puro, Gabi, puro samba no pé, puro fluxo desejante, como diriam teus mais novos amantes; agora somos nós que devemos fazer. Tu, descansa.

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