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Iugoslávia e Ucrânia: os dilemas da paz

Sob a curadoria de Elisabetta Michielin, conversa entre Gianluca Paciucci e Piero Maestri | Em Storia / Storie, 24/02/2023 | Trad. coletivo de tradutores da UniNômade

Os dois foram redatores da revista “Guerra & Paz” (1993-2015). Gianluca Paciucci, professor e ensaísta, secretário da Rifondazione Comunista de Trieste, e Piero Maestri, redator da Jacobin Italia, dialogam sobre a guerra ucraniana e sobre o pacifismo, a partir das guerras iugoslavas, lembrando as questões que o ambientalista e pacifista Alexander Langer (1946-95) se fazia à época, pontos de partida de dramática atualidade para a conversa.


Gianluca Paciucci

A revista Guerra & Paz (1993-2015) girava ao redor de figuras do marxismo crítico, como o diretor Walter Peruzzi (1937-2014), a revista Lavoro Politico, que no final dos anos 1960 chegou a ter 5.000 assinantes, a universidade, o movimento estudantil, alguns setores de área “trotskista”, com figuras como Antonio Moscato, e setores do catolicismo democrático e de base, com figuras como Giovanni Franzoni.

Os anos de 1989 e de 1991 foram importantes, decisivos, com a derrocada de regimes do Leste Europeu, os protestos da praça Tiannamen, o fim do Partido Comunista Italiano (PCI) e, a seguir, a ideia de uma nova ordem mundial (de Bush pai a Clinton e Bush filho), baseada no livre mercado e na democracia política. Uma ordem mundial que àquela altura parecia ser forte e definitiva (o “fim da história”, como teorizado por Francis Fukuyama), o que rapidamente foi refutado pelos fatos. A revista Guerra & Paz nascera ligada à obra do Comitê [da Guerra] do Golfo e, logo depois, com o drama iugoslavo, que segui pessoalmente (mesmo não sendo orgânico à revista), por que eu pertencia àquele universo de oposição pela esquerda aos regimes do socialismo real; tendo seguido, por ex., toda a atividade da revista Práxis e depois tido a honra de estar junto muitas vezes com Predrag Matvejević. Tais situações nos falavam de uma realidade em que os estados do sul da Iugoslávia não “mereciam” o que lhes estava acontecendo.

A [guerra civil na] Iugoslávia colocou à dura prova os instrumentos de análise. Setores do movimento pacifista da época não conseguimos, a meu ver, entender o que eram dois momentos distintos de reflexão.

Por um lado, a situação macropolítica (hoje se diria geopolítica, em escala planetária): o choque entre potências em um mundo que se tornava unipolar. A Rússia enfrentava enorme dificuldade diante das dinâmicas de privatização selvagem, que levavam à destruição de elementos fundamentais para a vida dos seres humanos. A expectativa de vida da população masculina caiu dramaticamente a 57 anos (como sublinhado várias vezes por Marco d´Eramo). Foi realmente um período dramático. Uma Rússia em que Iéltsin e o seu bando tinham bombardeado o parlamento (eu gostaria que isso não tivesse sido esquecido) para, logo depois, em 1999, ele entregar o poder a Putin, em troca da salvaguarda de sua família e de sua camarilha. Putin é também cria dessa troca de favores. Então, era um mundo unipolar com uma ex-potência quase em ruína definitiva. Certamente, a Iugoslávia era o lugar no qual se experimentava o desastre geopolítico em ação. Eu vivi e trabalhei a seguir na Bósnia Herzegóvina, por cerca de cinco anos (de 2002 a 2006). O que era a Iugoslávia antes? Que era esse país anômalo? Com tudo o que poderíamos dizer de Tito, precisamos reconhecer que fez coisas importantes, como a ruptura com Stálin ou o movimento dos países não-alinhados que, a meu juízo, foram muito importantes. A estabilização do final dos anos 1960/70 não foi uma coisa banal, com este estranho objeto situado entre Ocidente e Oriente, a Iugoslávia.

O discurso dos choques entre potências, ao redor dos velhos objetivos ou alvos russos, desde a época os czares, sempre em busca de uma saída para os mares quentes: o Adriático, o Mediterrâneo, como também o Mar Negro, tudo isso era compreendido como o nosso objeto de estudo.

Menos estudado, no entanto, eram os microimperialismos dentro da Iugoslávia, tal como o microimperialismo sérvio, dotado de uma hegemonia forte no país. A incompreensão quanto às atividades militares e econômicas ligadas ao microimperialismo sérvio dentro da Iugoslávia levou uma parte do movimento contra a guerra, inclusive pacifista, a ficar abertamente do lado de Milošević. Confiava-se no fato que Milošević tinha sido um líder da Liga dos socialistas e expoente do partido socialista sérvio, além de confiar-se em seu discurso antiamericano, não se enxergando, destarte, as várias declinações hipernacionalistas presentes no discurso dele. Todas as partes em disputa na Iugoslávia apresentavam declinações nacionalistas, certamente a tinha o croata Franjo Tudjman, certamente também a tinham outros líderes políticos da região; porém, é evidente que a parte mais forte, a mais armada, com mais tropas, com mais tanques, era a sérvia. O discurso sérvio de Milošević (obviamente, sempre fazendo distinção entre os povos e os seus tiranos ou pseudo-presidentes) era um discurso hipernacionalista já em 1986, quando do discurso por ocasião da comemoração da batalha de Kosovo Polje: “lá onde houver a tumba de um sérvio, é Sérvia” (cito de memória). Isso apenas dois anos depois das Olimpíadas de Inverno de Sarajevo (1984), quando a Iugoslávia exprimia ainda uma face bastante unida, bastante atenta à diversidade e unidade dos povos que a constituíam.

Já tinham ocorrido manifestações nacionalistas na Iugoslávia. Na Croácia, por exemplo, especialmente ao longo dos anos 1970, como também houve alguns confrontos em Kosovo, ainda durante a época titoísta. Apesar disso, certamente as declarações nacionalistas de Milošević desencadearam reações intelectuais e políticas muito fortes.

Quando eclodiram as guerras iugoslavas, nos encontramos incapazes de compreender o que significava, no nível político, a prepotência de um Milošević que, entre outras coisas, trabalhava espelhado com Tujman, da Croácia. É verdadeira a história dos dois (falei com alguém que testemunhou a cena) rabiscando  em um guardanapo a futura divisão da Bósnia Herzegóvina. Eles eram dois cúmplices contra os povos iugoslavos e particularmente contra os povos bósnios. As amigas e os amigos que ainda hoje se definem como iugoslavos, até hoje nos confirmam que a Bósnia era um espaço de convivência e cultura extraordinárias. Muita coisa se concentrava na região bósnia, tão central para a Iugoslávia, e por isso os nacionalistas ambicionavam-na em seu expansionismo. Uns para conquistar a Grande Sérvia, outros a Grande Croácia. Daí nasce a tragédia de Sarajevo. Deixemos aqui de lado a Eslovênia e a Macedônia, que eram interessadas, ainda bem, apenas marginalmente, e deixemos de lado também o Kosovo. Foi uma anomalia, um escândalo (como dizia o título de Guerra & Paz, “O escândalo  Sarajevo”, um artigo meu de 2007), que tirou aquele mundo dos eixos, um desastre dos microimperialismos do mundo iugoslavo, e desastre dos macroimperialismos da Europa pós-1989.

Mas igualmente a existência dos campos de concentração na Bósnia do norte, mantidos sobretudo pelos sérvios (mas não só) foi objeto de negacionismo. Por exemplo, o negacionismo dos marxistas ingleses. Em particular, a revista inglesa Living Marxism mais tarde foi forçada a pagar uma alta indenização, por ter negado a existência dos campos, o que a terminou levando a fechar as portas.

Mas também — como disse Elie Wiesel — quantas vidas se teriam podido salvar se as grandes nações não tivessem desviado o olhar, se a Alemanha não tivesse imediatamente reconhecido a Croácia. Voltamos ao problema de macro e micro, pois um e outro se tocam. A Alemanha se sentiu subitamente tão poderosa depois da reunificação de 1989 e da queda da URSS em 1991, enquanto a Rússia passava por grande dificuldade, mas esta aindacontava com a Sérvia para não perder se enfraquecer ainda mais e perder sua ponte na direção ocidental (pelo Mar Adriático).

Isso foi um pouco o desastre daqueles anos. Mas nem tudo o que se dizia na época estava errado. Distingo entre os grupos da área vetero-comunista que, com um campismo fora de lugar já naquele período, diziam que Milošević era um de nós, e os setores do pacifismo “na prática”, que trabalharam tantíssimo para a Bósnia Herzegóvina e junto dela, os setores de oposição pela esquerda, setores provenientes da Lotta Continua. Penso por exemplo em Adriano Sofri, como também em Alexander Langer, que se desgastou tanto pela Bósnia Herzegóvina. Langer além do mais conhecia vários idiomas (esloveno, alemão, inglês), e conseguia manter relacionamentos profundos com o mundo iugoslavo. Eis porque não me agrada quando se lança infâmia sobre os pacifistas daquele tempo. Porque tivemos vítimas e mulheres e homens que realizaram lá um trabalho extraordinário. Penso nos colaboradores, nos jornalistas, penso no que me fala Giacomo Scotti, penso em Guido Puletti, Sergio Lana e Fabio Moreni, assassinados em 29 de maio de 1993 na Bósnia central. Eles que estavam trazendo à Itália, em um ônibus, 62 pessoas, todos para longe da guerra. Penso em tantos outros… De qualquer jeito, foram tecidas relações extraordinárias entre a sociedade civil e os grupos de acolhimento aqui na Itália.

Termino lendo um trecho do livro que Alexander Langer escreveu (“Il viaggiatore leggero”, Palermo: Selleri, 2011), escrito em 6 de julho de 1993, quando Langer se coloca o problema do homem de paz: como se faz para parar as agressões? Tinha acontecido o massacre de Vukovar (1991), o cerco a Sarajevo, e Langer falava da necessidade de uma “autoridade internacional crível que saiba se impor, intervir e empregar força militar, exatamente como ocorre com a polícia no plano interno dos estados, abrindo caminho com as armas para cessar os cercos às cidades, bombardear pontos de acúmulo de de armamentos pesados, cortar o reabastecimento de armas aos assediadores, impedir bombardeios aéreos por meio da imposição de zonas de sobrevoo proibido, e prover segurança em geral, além de fechar os campos de detenção e de tortura”. Eram coisas que Langer dizia e escrevia com o coração arrasado. Para ele, o desastre iugoslavo foi o desastre de um universo que ele experimentava como pessoal. Lembro que Langer se suicidou em Florença logo depois do enésimo massacre, em Tuzla, exatamente no dia da festa da juventude (coincidia com o aniversário de Tito). Era 25 de maio de 1995, quando foram massacrados pelo exército sérvio 72 jovens bósnios na cidade que havia resistido a todos os cantos das sereias nacionalistas. Servos, croatas, muçulmanos, a pequena comunidade judia, a cigana, todos em Tuzla se declaravam simplesmente antifascistas. Durante a guerra, não cederam um único centímetro.

A morte de Langer foi para nós uma derrota terrível, e depois tivemos outra, o assassinato de Moreno Locatelli, após a viagem dos beatos construtores da paz. É evidente quando se tem a paz, se tem a trégua, podem-se criar relações com a sociedade civil, e o trabalho dos pacifistas adquire um sentido. Mas quando não se consegue fazer nem isso, sem paz, quando se é derrotado por mil motivos, quando há o desastre e as bombas, as armas falam mais alto, o pacifista é o primeiro a ser excluído de qualquer intervenção possível. Sua atividade não tem mais sentido, senão na atividade concreta de auxílio às populações civis, de acolhimento e de análise.

Piero Maestri

Me permito duas considerações sobre o que Gialuca disse, que compartilho completamente e, por isso, não são considerações críticas. Em certo sentido, se pode considerá-las autocríticas.

No quadro pintado por Gianluca, por um lado — e foi assim no caso de Guerra & Paz e do circuito antimilitarista que se reunia ao redor do Comitê do Golfo, da LOC, buscando desempenhar um papel já há alguns anos, desde a primeira Guerra do Golfo de 1990/91 — era claro que estava em curso um enfrentamento entre diferentes e especulares nacionalismos, entre os quais não podemos, certamente, tomar partido. Sabíamos que os enfrentamentos tinham sido provocados pela política externa e regional do presidente Milošević.

Nesse sentido, me permito trazer à baila uma pequena anedota. No primeiro congresso milanês da nascente Rifondazione Comunista, uma delegada proveniente da corrente então chamada de “cossuttiana” [n.t.: racha interno dos comunistas da Rifondazione que, em 1998, levou à fundação do PdCI, desaparecido em 2016 e que chegou a ter 3% das cadeiras da Câmara dos Deputados da Itália] classificava os bombardeios sobre Sarajevo como uma “revolta do rural contra a cidade” — provocando reações horrorizadas de boa parte da assembleia, mas, infelizmente, não de toda ela.

Não é para banalizar a discussão — eu mesmo participava daquele congresso — ou o posicionamento de então da Rifondazione, mas para assinalar que existiam tendências, de que falou Gianluca, que habitavam dentro da esquerda e atravessaram todas as guerras iugoslavas até a guerra no Kosovo e que ainda seguem existindo agora com a guerra na Ucrânia.

O elemento autocrítico se refere ao relato de Gianluca sobre as posições de Alex Langer — posições que “nós” contrastávamos, em particular, quanto à ideia de uma “força policial internacional” que nos parecia próxima às pretensões dos Estados Unidos e de seus aliados (sendo exemplar disso o discurso do premiê Giulio Andreotti no parlamento italiano, na noite de 17 de janeiro de 1991), para justificar a guerra ao Iraque — exatamente classificada como “operação de polícia internacional” (como vemos, também a “operação especial” putinista tem antecedentes em toda parte do globo).

É claro que a posição de Langer assumia um outro sentido, ela reclamava a necessidade da presença de instituições supranacionais como a ONU. Mas , na realidade, essas instituições não tinham nenhuma autoridade ou capacidade de intervenção — e nós as considerávamos como quase completamente subalternas aos Estados Unidos e seus aliados. Ainda assim, nos opúnhamos às posições de Langer, sem sopesá-las devidamente em sua complexidade.

Nós adotávamos um outro ponto de vista — que julgo, de qualquer maneira, ainda hoje interessante e importante, e que não era certamente apenas observar ou limitar-se a torcer por uma negociação entre as partes beligerantes.

Todo o universo pacifista — e também sobre isso concordo com Gianluca que seria mesquinho e incorreto reduzi-lo a uma caricatura — e de solidariedade internacional conseguia ver e encontrar — na convergência entre crescentes nacionalismos — forças que se opunham de um lado como do outro. Entre elas, certamente, uma das mais interessantes foi a experiência da ONG Mulheres de Preto, iniciativa de mulheres contra os nacionalismos da Croácia e da Sérvia.

Certamente — e isso certamente vale para mim como pessoa e para as minhas relações políticas na época — não tínhamos desenvolvido até o fim o sentido e a extensão da agressão contra Sarajevo e a Bósnia, considerando o nacionalismo bósnio simplesmente como apenas mais um nacionalismo, que no caso se identificava na figura do líder Izetbegović, confundindo assim qualquer defesa da Bósnia com a posição política dele.

Me pareceu útil retomar o fio do raciocínio proposto por Gianluca — que me remete às discussões de então. O elemento positivo que ainda creio deva ser valorizado a partir da nossa experiência e discussão — muito vívida no âmbito da redação de Guerra & Paz — consistia na tentativa de apreender todos os sinais de contraste, de contratendências aos nacionalismos crescentes — mesmo que fosse com alguma fragilidade em nossa leitura, demasiado achatada, quanto à dinâmica internacional e das grandes (e não tão grandes) potências.

Isto não nos possibilitou desenvolver uma intervenção forte sobre o plano político, ao passo que recusávamos a entrega de armas a qualquer uma das partes do conflito e apoiávamos o acolhimento de refugiados e desertores — posições absolutamente justas e necessárias naquele momento em que carecíamos da capacidade de relacionar-se de maneira mais direta e completa exatamente onde se vivia mais intensamente o drama da guerra, isto é, na Bósnia.

Gianluca Paciucci

Somente um esclarecimento sobre a Iugoslávia. É evidente que dentro dos nacionalismos bósnios, depois do sérvio e do croata, surgira também um forte nacionalismo islamista. Por exemplo, o general bósnio Jovan Divjak, na entrevista que traduzi do francês para a edição Infinito (“Sarajevo mon amour”), general das forças bósnias, mas de origem sérvia, que lutava por uma Sarajevo democrática e antinacionalista, e se batia portanto “contra os seus”. A um certo ponto da guerra, Divjak foi exonerado pelos dirigentes do exército bósnio durante o processo de islamização, que contava com a ajuda de forças islamistas externas à Iugoslávia, que buscavam imiscuir-se no universo iugoslavo. Porque antes o islã iugoslavo era um islã laico, de fé, mas laico e avançado. Entre os maiores intelectuais iugoslavos, vários eram de família muçulmana, sendo que hoje temos uma islamização com sinal negativo. Os meus amigos de Sarajevo falam o seguinte: cuidado com os nacionalismos que estão se desdobrando ainda hoje, em 2023, na Bósnia Herzegóvina. Afinal de contas, é verdade que o acordo de Dayton (dez. 1995) pôs fim à guerra, mas concedeu a vitória a quem havia provocado a guerra em primeiro lugar: os nacionalismos que, no período seguinte, se entenderam perfeitamente entre si. A situação ainda é explosiva, devemos continuar a refletir sobre os Balcãs.

Além disso, lembro de outra coisa que, para mim, é decisiva: no Comitê do Golfo, lutávamos contra o embargo [ao Iraque], e contra quem repetia o discurso da Secretária de Estado dos EUA, Medeleine Albright: “os devolveremos à Idade Média”. Foram milhares e milhares de mortos causados pelo embargo ocidental contra o Iraque. Havia também este fato que não podemos esquecer. Atenção! pois há um Milošević que morreu na prisão em 2006, mas paralelamente há um Tony Blair e outros que recebem milhares de dólares para proferir conferências. Esse Ocidente não é um Ocidente limpo e suscita em mim a repulsa por alguns comportamentos daqueles anos. Então, tudo bem, façamos a autocrítica, mas eu continuo a criticar igualmente uma certa política dos anos 1990, por que podiam acontecer coisas importantes para a convivência pacífica e se elas não aconteceram não foi só por culpa do terrível Milošević.

Piero Maestri

Gostaria de introduzir uma segunda parte referida ao ponto em que nos encontramos hoje, não tanto sobre o plano das políticas internacionais e do choque entre as potências, quanto ao ponto em que nos encontramos nós mesmos, com um ano de distância desde a agressão russa à Ucrânia.

Penso, sim, que se possa retomar de outra forma o raciocínio e as perguntas que Langer nos colocava, como citado por Gianluca.

Poderíamos, nesse sentido, nos colocarmos três perguntas — que pessoalmente eu já me colocava há um ano e às quais talvez antes eu desse respostas diferentes do que hoje lhes darei:

1) Como manter uma posição “pacifista” — isto é, de repúdio à guerra — e ao mesmo tempo ser rigorosa e generosamente internacionalista? Para mim, ser internacionalista significa também relacionar-se com quem, em um dado momento, representa a “vítima” concreta (na realidade, “vítima” é um conceito errado, mas uso aqui por simplicidade), o sujeito agredido, que se defende da agressão. De um ano para cá, o pior dos “erros” — devido a uma falta estrutural de grande parte do que resta do movimento pacifista — consiste na incapacidade de conhecer e reconhecer a parte (majoritária) da sociedade ucraniana que decidiu resistir, seja militar, seja civilmente. Que exatamente decidiu resistir, não como uma outra parte do “movimento não-violento ucraniano”, a qual, do exterior, nos relata o quão equivocados estariam ambos os lados e que seria errado responder militarmente à agressão (isso quando reconhecem que é uma agressão). Esta posição nós nunca a exprimimos nem nunca a exprimiríamos sobre qualquer país ou sociedade agredida. Os movimentos não-violentos na Palestina — para dar um exemplo — lutavam e ainda lutam contra a ocupação israelense e nem por isso deslegitimam o conjunto das resistências dos palestinos, mesmo quando armadas.

Esta é a primeira questão: a necessidade de reconhecer — sobretudo depois de um ano de agressão — que na Ucrânia há uma sociedade que decidiu resistir, e que do interior dessa sociedade ucraniana existem aqueles como nós: uma esquerda nova, feminista, antiliberal e antiestalinista, que constrói iniciativas para defender os direitos dos trabalhadores, das minorias (como dos ciganos, parte dos quais decidiram também combater militarmente a agressão), das pessoas LGBTI+, e que estão engajados há um ano em uma resistência popular, civil e armada.

2) A segunda pergunta que me coloco — ainda hoje sem ter uma resposta definitiva ou realmente convincente — como se reage a uma agressão?

Langer pensava que fosse necessária uma força de intervenção supranacional. Que ainda hoje inexiste, sobretudo por responsabilidade dos Estados Unidos e de seus aliados ocidentais, que por quinze anos vêm exercendo uma relação de hegemonia, humilhando as Nações Unidas, até hoje dobradas pelo conflito entre interesses e por quem detém o poder de veto [no Conselho de Segurança].

Como se para uma agressão? Há um ano eu escrevia — então, eu exprimi essa posição publicamente — que era preciso respeitar a legítima resistência, inclusive armada, do povo e do governo ucranianos, mas ao mesmo tempo eu era contrário ao envio de armas. Há um ano de distância, não me vejo mais defendendo essa posição. Não acredito, evidentemente, que o movimento pacifista devesse e deva pedir e apoiar o envio das armas, mas acredito que deva colocar-se sobre um outro terreno, não colocando no centro das questões o envio de armas, tal como vem fazendo de um ano para cá.

3) A terceira pergunta retoma o raciocínio feito anteriormente com relação a Milošević. Que representava certamente uma posição autoritária e “de direita”, do ponto de vista das políticas sociais e internacionais — mas com riscos quase nulos para o conjunto do continente europeu, à parte obviamente das populações iugoslavas envolvidas nas guerras causadas também pelas suas políticas. Mas não havia um risco de difusão da experiência da Sérvia de Milošević em nível continental ou mundial.

Hoje assistimos a alguma coisa de muito diferente. O governo Putin representa uma forma de novo fascismo (como o define corretamente Ilya Budraitskis do Movimento Socialista Russo), com grande força de expansão. Não apenas no plano militar, como tentou fazer da Ucrânia (felizmente sem sucesso, à parte dos danos humanos e sociais que está causando), como também força de expansão no plano político, como vimos nos últimos anos com a construção de um ambiente político-ideológico homogêneo à visão de mundo de Putin, com retalhos em cada país europeu, Itália inclusa. Devemos então dizer que a defesa da Ucrânia hoje não é, sem dúvida que não, a defesa da “civilização ocidental”, como nos contam expoentes políticos, de primeiro relevo, da OTAN e Europa — mas representa sim, certamente, a defesa da possibilidade de todo povo e toda “nação” de escolher o próprio destino sem estar subordinado forçosamente às dinâmicas de poder geopolítico, sem estar preso a um ou outro “campo” ou — como gostaria Putin — dentro de uma “zona de influência” definida pelo “direito” russo de ser um “estado forte”.

É a defesa da possibilidade de sustentar uma dialética democrática — a qual se a Ucrânia tivesse sido invadida e/ou derrotada no último ano não seria mais possível. Hoje, não está em jogo somente o direito e a possibilidade de resistir a uma agressão militar, como também a defesa da democracia e da participação popular. Não pode ser suficiente um “não” à guerra, devemos também encontrar as formas mais úteis e concretas para nos opormos ao crescimento das formas de fascismo representadas pela agressão russa e por seu governo.

Evidentemente, dei a minha resposta às questões, ou ao menos um aceno de raciocínio. Mas são perguntas complexas, não estamos diante de um mundo em preto e branco, em que se pode tomar partido com certeza. Nestes doze meses, se exprimiram tantas nuances nos movimentos contra a guerra e de solidariedade internacionalista.

Gianluca Paciucci

Me parece que as perguntas colocadas por Piero sejam perguntas de todo verdadeiras e concretas, às quais se deve tentar dar uma resposta a partir da principal: como intervir em coisas da política quando esta se torna guerra, por que sinto que nos escapou das mãos e não apenas no último ano, mas nos últimos vinte… Se, em 2003, na praça, havia milhões de pessoas protestando, hoje, aqui em Trieste, fizemos três manifestações pacifistas separadas entre si, por motivos internos ao movimento pacifista e, em certos aspectos, nos arriscando ao ridículo. Eu me sinto privado de instrumentos, não sei responder à pergunta sobre o envio de armas, você tem razão, Piero, talvez não me caiba responder, não sei, não sei, não sei! Seriam úteis? Servirão a alguma coisa? A derrotar o fascismo de Putin? Não sei, temo que estejamos em um conflito internacional potentíssimo, que está se desdobrando também às costas dos povos ucranianos com os quais — tem razão sobre isto, Piero — não conseguimos entrar em contato, não conseguimos simpatizar com quem é a vítima do momento. E isto deve ser feito, pode ser feito. Mas não sei como intervir, me foram tiradas e nos foram tiradas as “armas” da paz, a praça agora é um lugar infestado de bandidos e quando se está em três ou quatro gatos pingados numa praça enorme não faz sentido estar lá. Me convence, porém, o que dizia Francesco Vignarca, neste estágio, o pacifismo alguma coisa fez: a oposição às armas nucleares em 2017, por exemplo. A Itália e os países da OTAN não assinaram, mas nem mesmo a Rússia assinou. Uma grande corrida na direção da ruína, neste momento, sobre o lombo do povo ucraniano, que tem o direito de defender-se, que tem o direito à resistência.

Mas me perturbam muito as classes dirigentes ucranianas, porque as conhecia em ação ao menos em um caso específico. Lembro aqui em Triste quando, com a Anistia Internacional, estávamos mutíssimo alinhados por Andrea Rocchelli e Andrei Mironov, os dois jornalistas assassinados por bandos de soldados ucranianos. O perpetrador, absolvido por vício processual formal, foi acolhido na Ucrânia como um herói. Lembremos de Mironov, dissidente dos tempos da URSS, que se ocupava com grande inteligência no respeito aos direitos humanos. Não tenho nenhuma confiança nas classes dirigentes ucranianas de ontem e de hoje. Isso é algo que digo. Pelo que me encontro em grande dificuldade hoje como nos anos 1990, quando igualmente eu era em dificuldade, porque não sou um dualista, porque não consigo raciocinar quando há um duopólio.

Devemos, entretanto, apoiar as mulheres e os homens que neste momento estão sofrendo de modo espantoso, quando vi os tanques circundarem Kyiv, quando vi 40 km de tanques se dirigindo à capital ucraniana, quando vejo hospitais, escolas, teatros explodidos.

O discurso de Putin é estranhíssimo, reli o seu discurso ao desencadear a agressão de 24 de fevereiro de 2022, publicado na Itália por editoras de extrema-direita, a editora de Franco Freda, que publica discursos putinistas. São casas editoriais de extrema-direita: como a Insígnia do Galgo, no caso de Zjuganov, máximo líder do Partido Comunista Russo. Eis o grande trauma em que nos encontramos.

Nesse sentido, repito o meu próprio trauma sob o signo de Langer. O que está havendo na Rússia? O que dizia Piero, um neofascismo baseado na aliança com a igreja ortodoxa, setores mais retrógrados da oligarquia russa, mas também os mais avançados são um desastre, enquanto a sociedade civil e a cultura têm dificuldade em exprimir-se, sob o cassetete. E é um mundo de dimensões enormes em relação ao de Milošević.

No entanto, nos anos 1990 houve ocasiões extraordinárias para parar o ciclo das guerras. Langer podia ter razão na época, como deveria ter razão também hoje, porque queria trabalhar com uma força internacional que, de fato, fosse super partes. Somente no fim de sua vida chegou a falar da OTAN, por que estava desesperado ante o massacre de milhares de cidadãos na Bósnia. É o que sinto ter sido a nossa maior derrota, porque é evidente que — hoje mais do que nunca — nos seria útil um organismo acima das partes que permita encarar e desarticular o discurso dos belicistas em toda raça e todo país. Mas tal organismo falta também na Palestina, não existe em Israel, não existiu na Síria em que a Rússia exerceu o papel de uma intervenção da mesma maneira brutal. Foi algo de terrível. Não é que, porque havia islamistas que podemos aceitar o que fizeram certos generais de Assad ou russos em Aleppo. Ou as brutalidades das coalizões ocidentais na Líbia…

Somos filhos e filhas de um desastre macropolítico de que não se sabe como sair. Talvez não o saiba nenhum. Estamos sempre revendo as mesmas dinâmicas em ação, sem querer equiparar situações históricas, que torna a minha geração sem mais armas, quase em desespero. Ainda que não eu não vive com bombas caindo na minha cabeça, é um desespero que arriscar de ser, para mim, muito muito duro. Não digo nem que eu reproduza a derrota de Langer, mas eu o compreendo. Compreendo a sua derrota e a entendia ainda em 1995.

Talvez o pacifismo na prática seja uma solução, como o de Rada Žarković (comunista de Mostar, ativa com as Mulheres de Preto em Belgrado, no começo dos anos 1990, e com quem lembramos em Sarajevo dez anos da morte de Langer) e da cooperativa Juntos, para realizar a paz nos fatos, em Bratunac, a poucos km de Srebrenica. De resto, não sei o que fazer. Caminhamos sempre com mais dificuldade na praça. O que fazer com as manifestações? As grandes organizações populares estão foragidas e titubeantes, e além do mais nos achamos entre posições igualmente repelentes (belicistas e “campistas”, falsos inimigos).

É evidente que ou conseguimos criar laços e relações com a sociedade civil quando vigora a paz, a trégua, de modo que o trabalho dos pacifistas tenha um sentido, ou, quando não se consegue fazê-lo, quando se é vencido, por mil motivos, quando vigora o desastre, falam as bombas, as armas, aí o pacifista é o primeiro a ser colocado de fora de qualquer possibilidade de intervenção. Não existe mais quase sentido senão, como eu dizia, nas atividades concretas de ajuda para as populações civis, de acolhimento e das análises.

Sob a curadoria de Elisabeth Michielin.

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