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Laclau e a dialética do social e do político: entre movimentos e hegemonia

Por Toni Negri, em EuroNomade, 13/6/2015 | Trad. UniNômade

Negri-Laclau

O discurso de Laclau representa para mim uma variante neokantiana do que se poderia definir como “socialismo pós-soviético”. Já nos tempos da Segunda Internacional, o neokantismo funcionou como uma abordagem crítica nos debates do marxismo: embora o marxismo não era considerado inimigo, essa abordagem crítica tentava submetê-lo e, de certa maneira, neutralizá-lo. O ataque era conduzido contra o realismo político e a ontologia da luta de classe. A mediação epistemológica consistiu, dessa maneira, nesse uso e abuso do transcendentalismo kantiano. Mutatis mutandis, isso me parece acontecer, também, se situarmos na época pós-soviética a linha de pensamento de Ernesto Laclau, considerada em seu movimento. Esteja claro: aqui não se discute o revisionismo em geral, por vezes útil, por vezes indigesto. Discute-se o esforço teórico e político de Laclau na era pós-soviética em contraste com a contemporaneidade.

Comecemos de um primeiro ponto. A multidão caracteriza a sociedade contemporânea, — nos diz Laclau, — mas a multidão não conhece determinações ontológicas e ainda menos — hoje — regras que possam preceder à própria composição da multidão. Somente de fora (de modo a respeitar-lhe a natureza) será possível recompor a multidão. A operação é como aquela kantiana do intelecto que contrasta com a “coisa em si”, incognoscível a menos que seja com o selo da forma. É a operação da síntese transcendental.

É possível e desejável que subjetividades sociais heterogêneas organizem-se a si próprias espontaneamente, ou será que se faz necessário, em vez disso, que sejam organizadas? A pergunta é usual e está na base do criticismo kantiano. À questão, Laclau responde que hoje não existe nenhum ato social per se, nenhuma “classe universal” (como era definida marxianamente a classe operária), e tampouco algum sujeito simplesmente produzido a partir da espontaneidade social, a partir de uma self-organization — que pudesse aspirar à hegemonia. Ora, o marxismo clássico tinha realizado uma simplificação da luta social de classe sob o capitalismo e tinha construído um sujeito, um ator de emancipação, no qual a autonomia e a centralidade coincidiam. Porém, na contemporaneidade, foi exatamente esse terreno que se decompôs — se impondo, na verdade, um terreno de heterogeneidade: por isso, hoje, somente uma construção política pode mover-se no espaço da não-homogeneidade social (em que a “homogeneidade” é entendida como alguma coisa que deveria ser pressuposta, ou sempre que houver limites à constatação do existente: em ambos os casos, aquela homogeneidade desapareceu). Eis o que a teoria laclauiana da hegemonia se propõe a enfrentar. Ela não nega que haja momentos de autonomia auto-organizados nem subjetividades fortes que surjam na cena histórica. Ela descobre entre essas figuras subjetivas uma “tensão” — e, de qualquer modo, pensa que as figuras precisem ser “postas em tensão”. Laclau considera essa tensão “constitutiva”. É a imaginação transcendental em ação. Laclau — me parece — considera que o contexto político se apresenta como Jano, o deus de duas faces. Ele põe a tensão entre essas duas faces como se tratasse de um espaço e de um lugar, como tecido e trama, em que cada construção de poder deve percorrer e transcender, resolver e determinar. Assim nasce a hegemonia/poder.

Segundo ponto. Deve estar claro que a imanência, a autonomia e a pluralidade constitutiva da multidão não são apenas incapazes de construir poder, mas também representam os impedimentos para que ele seja formado em cada cenário político. Por isso, continua Laclau, se a sociedade fosse inteiramente heterogênea, a ação política solicitaria que a singularidade fosse capaz de acionar um processo de “articulações” no plano de imanência, a fim de estruturar a tensão (a respeito da qual acabei de insistir brevemente), e definir as relações políticas entre as singularidades. Mas são elas capazes disso?

A resposta de Laclau é negativa. Essa negação remete a um motor transcendental. A articulação está, portanto, colocada sobre um terreno formal, sem alternativa possível, e compreendendo bem que “forma” não significa, nesse caso, “alguma coisa de vazio”, mas sim “invólucro constitutivo”. Laclau insiste no fato que, para que seja possível uma articulação da multidão, deva emergir alguma instância hegemônica que esteja por acima do simples plano de imanência — uma instância hegemônica que esteja em condições de dirigir o processo e que atue como centro de identificação para todas as singularidades. “Não há hegemonia sem a construção de uma identidade popular a partir da pluralidade das demandas democráticas.”

Se o contexto social está configurado por uma multidão dis-homogênea, é preciso estabelecer uma força de articulação entre as diferentes partes da heterogeneidade para garantir a sua integração. A insistência sobre a auto-organização, ou o retorno a sujeitos pré-constituídos não devem eliminar nem fazerem esquecer a necessidade de criar temas comuns e linguagens homogeneizadoras, que circulem através das diferentes organizações locais. Tal articulação/mediação não pode em nenhum caso repetir o velho modelo das “fortes” organizações tradicionais (partidos, igrejas, empresas etc). Essa articulação/mediação deve, em vez disso, ser alcançada através da noção de “significante vazio”. Mas tínhamos apenas esboçado que “significante vazio” não significa, aqui, formas vazias de unidade dogmaticamente ligadas a algum significado exato. Ele significa, ao contrário, “invólucro constitutivo”. Com isso, não estamos mais sobre o terreno kantiano da estética ou da analítica, mas sobre o da imaginação transcendental.

Existe um momento, com efeito, em que Laclau repropõe diante da heterogeneidade do social o tema do significante “flutuante” e “vazio”, com uma abordagem diferente, quase um novo tempo musical, em termos bastante potentes — diria, se não fosse exagero, ontologicamente produtivos. Quando, de fato, Laclau enfrenta o tema da “articulação” entre diversas lutas sociais, este momento (já em Hegemonia e estratégia socialista, com Chantal Mouffe, em 1985) representa um modelo de “antagonismo constitutivo” — quase um duplo poder “fraco” que, surgindo do conflito e da desagregação, numa fronteira “radical”, constitui uma síntese dos velhos direitos de soberania e dos direitos democráticos de autogoverno. Sandro Mezzadra e Brett Neilson sublinharam-no bem, em Confini e frontiere (Il Mulino, 2014). É preciso admitir que, ao se aproximar da ideia de uma dialética entre contrapoderes contrastantes, Laclau interpretava então uma primeira passagem, ou melhor, uma primeira aparição de um sentir comum dos militantes socialistas implicados na crise da esquerda a partir dos anos 70, que se recusavam a vê-la precipitar num ritmo imparável.  Naquela condição, apurada a insuficiência dos instrumentos dialéticos, era preciso reconstruir um “povo” e produzir a unidade dele — e isto será reconhecido por Laclau como o ato político “por antonomásia”.

Em 1985, Laclau se pergunta, com grande força e formando um grande consenso, se a abertura do social ao político é, em vez de “estrutura discursiva”, uma “prática de articulação” que constitui e organiza as relações sociais. Mas este ponto de vista será pouco depois sobrepujado por ele próprio. Cito Laclau: “Na sociedade industrial avançada, se define uma assimetria fundamental entre a proliferação crescente das diferenças — um excesso dos significados do ‘social’ — e as dificuldades encontradas por qualquer discurso que tente fixar essas diferenças enquanto momentos de uma estrutura estável de articulação”. É preciso então distanciar-se da própria noção de sociedade como “totalidade autodefinida”, em que o social fixa a si próprio. Ao contrário, é necessário identificar-se “pontos nodais” que produzam sentidos e direções parciais e que permitam a estas ou aquelas formações do social ganharem forma. Trata-se então, cada vez mais, de recusar toda e qualquer solução dialética vinda de conceitos como “mediação” e “determinação.” “A política emerge como o problema das condições transcendentais do jogo entre articulações e equivalências que se constituem no social. A identidade de forças em luta é submetida a mutações constantes e exige um incessante processo de redefinição.”

O equilíbrio da articulação é, no entanto, difícil de determinar, e está exposto a dois perigos. Chamarei o primeiro de “deriva da demanda”, ou melhor: deriva da inconclusividade do encontro entre as equivalências. Veja-se sobre o assunto, vinte anos depois da Hegemonia…, o livro A razão populista (2005). Aqui o discurso novamente começa numa imersão no plano do social, construindo-se junto aos estímulos, ao conatus multitudinário que conduz ao político. Ora, escreve aí Laclau, “a menor unidade de que partiremos corresponde à categoria da demanda social”. Naturalmente, essa demanda, se um lado conduz ao aprofundamento das lógicas de formação de identidade, do outro abre o antagonismo. O problema então vira: como transformar a competição, o antagonismo deslocado e em contínua proliferação, num antagonismo visível e dualista? Mas a “cadeia de equivalências” não se resolve aqui, ao contrário, numa proliferação que não aspira à nenhuma conclusão? O mesmo Laclau parece tomar consciência disso: “a especificidade da equivalência é a destruição de significado através de sua própria proliferação”. Esse indefinido da potência da imanência se arrisca a impedir (ou pelo menos ameaça) a  construção transcendental do significante.

A segunda dificuldade está diretamente ligada à consolidação definitiva do equilíbrio tal e qual se apresenta no conceito de “hegemonia”.

Um pequeno parêntese sobre isso. O conceito de hegemonia em Laclau se constrói com referência a Gramsci. Mas as coisas não são assim tão simples. Peter D. Thomas nota que Ernesto Laclau e Chantal Mouffe, em Hegemonia e estratégia socialista, substituem o dispositivo político da hegemonia — assim como era definido pela tradição leninista — por um conceito discursivo — totalmente formal. Estamos, segundo Thomas, numa fase da reflexão teórica do “eurocomunismo” que se desenvolve na forma de um gramscismo “fraco” e que marca a passagem a uma política radical-democrática pós-marxista. Independente que se esteja de acordo ou não com o ponto de vista de Peter D. Thomas, me parece que seja preciso lembrar aqui que o pensamento de Gramsci transita numa posição marxista e leninista na qual a ditadura se apresenta não como comando totalitário mas, exatamente, como hegemonia, i.e., como construção orgânica de um poder constituinte revolucionário. Não se pode negar que a referência gramsciana de Laclau seja, em vez disso, fraca a esse propósito — é antes busca retórica de uma suposta herança do que filiação ontológica. O conceito de hegemonia de Gramsci (da prática turinesa dos Conselhos até a teoria do novo Príncipe) se constrói sobre a luta de classe, mantém uma “solidez” materialista e produz um dispositivo de poder dos trabalhadores em sentido comunista. O conceito de hegemonia gramsciano não pode ser, em hipótese alguma, ser reinterpretado na modalidade teorizada por Norberto Bobbio — isto é, como produto super-estrutural da “sociedade civil”, em que sociedade civil seja um conceito atrelado à acepção hegeliana.

Além disso, o que resulta aqui estranho é como, em Laclau, o conceito de hegemonia — do qual a potência gramsciana já foi extraída — possa ser referido às políticas do Partido comunista togliattiano [1]: nesse ponto, o equilíbrio entre autonomia de base dos movimentos e Partido, como significante por vezes “flutuante” — mas certamente nunca “vazio” — podia ainda orientar-se à esquerda, porque o Partido era ancorado nas políticas soviéticas. Dessa maneira, o eixo das abcissas hegemonia/sociedade e o eixo das ordenadas direita/esquerda podia ser sustentado em equilíbrio, por causa da incapacidade do “significante” de fazer-se Estado — a Conferência de Ialta o impedia. Repito: em Togliatti, no comunismo italiano, o “nacional-popular” pôde ser interpretado à esquerda (com limites da ação opostos à luta de classe que, de qualquer modo, se realizava), somente porque o Partido comunista não podia chegar ao poder e até o momento em que se transformou de tal maneira que passou a podê-lo. Aqui, paradoxalmente, o conceito de hegemonia se torna conceito de “centralidade” política.

Em suma: a figura e a função da hegemonia em Laclau nos parecem equívocas: em vez de analisarem como funciona o capitalismo, estabelecem como nós quereríamos que funcionasse uma sociedade política que não conhece o capitalismo — ou então o confundem com uma necessidade. Creio que se poderia dizer a mesmíssima coisa para o “povo”: brecha no bloco hegemônico que Laclau chama de “significante vazio”, o povo representa a ocupação por parte de um grupo capaz de determinar uma nova universalidade — mas isto não é de todo claro. Parece, ao contrário, que, de um lado, o povo seja uma deriva provocada pelas lutas de diversas frações e, de outro, termine por representar-se como uma nova cristalização das identidades políticas.

Disso decorre que, na filosofia de Laclau, o significante vazio representa uma abstração estruturalista que perde de vista um fato, além do mais, central: que isto que é considerado “vazio” seja produto de um “êxodo” e não de uma modificação estrutural (percebeu-o corretamente Bruno Cava, um militante brasileiro que estudou bem Laclau). “Se há uma coisa hoje de todo evidente, quando se consideram as atuais formas da política, é a separação do ‘povo’ das funções de participação a que tinha sido consignado pelo direito público moderno. O significante vazio se esvazia ainda mais, na situação atual — ele não morde a multidão, mas é fagocitado pelos poderes fortes que não têm nada que ver com o povo, a nação, e todas as belas palavras da política da modernidade. Quanto aos movimentos, eles vivem dentro da consistência de uma ‘universalidade concreta’ que tem a função de suturar e articular os significantes: mas a potência reside na multidão, que é conceito de classe.”

Outra consequência. É para mim claro que o pensamento de Laclau se situa num tipo de era pós-ideológica, em que a luta de classe cede o lugar central a diversas e múltiplas identidades (que podem agir segundo diversas declinações). Mas a mim parece que esse pensamento não pode levar a nada de preciso, ou melhor, ele conduz a um êxito nulo quando é feito atuar no contexto das coordenadas a que fizemos referência: um eixo de abcissas hegemonia/sociedade e outro de ordenadas direita/esquerda. Essa mutação que de-ontologiza os sujeitos nesse sistema de coordenadas, poderia muito bem reger-se por singularidades que colaboram de maneira transversal e assim construir, sobre um plano maquínico (para dizê-lo com Deleuze-Guattari), máquinas de guerra sociais variadas. “Máquinas de guerra” que não seriam em nenhum caso efeitos da urgência de consolidar os contornos de uma “hegemonia” ou de uma “nação”. A mutação pode, portanto, representar-se aqui como uma ilusão. Devemos de novo perguntar-nos se o “significante vazio” sobreposto a todas essas tensões, além de ser reduzido a uma mera figura “centrista” da organização do poder, não é submetido a ainda outra deriva: imobilizar o processo político porque o seu dinamismo, dirigido ao centro, é neste ponto incapaz de produzir potência. A síntese transcendental, no caso, é completamente privada de movimento.

Eis que assim chegamos a um último e crucial ponto: a concretização historicamente determinada da forma transcendental.

O significado vazio opera sobre o terreno nacional. Para Laclau, não se admite um discurso cosmopolítico, nem mesmo enquanto horizonte. O poder precisa, para ter uma real consistência uma vez que se tenha eliminado cada outro ponto de apoio, da identidade nacional. Também na era da globalização, quando o poder do estado-nação declina, ainda assim o conceito de estado-nação não pode ser abandonado. Abandoná-lo não significa apenas colocar-se sobre um terreno pouco realista, como também diretamente perigoso. Sem a unidade nacional, a expansão horizontal dos protestos sociais e a verticalidade de uma relação com o sistema político seriam impossíveis. E, insiste Laclau, a experiência da América Latina nos últimos anos ’90-2000 demonstra amplamente essa condição.

Ao contrário de Laclau, nos parece que o movimento progressista que chacoalhou fortemente a América Latina no último vintênio tenha se caracterizado por um empenho de superação, “para fora” de um âmbito nacional em que, um a um, os estados sozinhos eram curvados à dominação norte-americana e suas valências imperialistas; “para dentro” da América Latina, do mesmo modo, a horizontalidade dos movimentos foi experimentada em larga escala, às vezes antecipando, noutras vezes seguindo um espírito continental novo que animou alguns governos populares e permitiu a eles superar cada chauvinismo — reacionário na tradição latino-americana, assim como na europeia. Mas o nacionalismo de Laclau, é preciso dizê-lo, não consegue ficar quieto. Remonta ao início de seu trabalho. Em Política e ideologia na teoria marxista, de 1977, contra Althusser, já se  sustenta que a classe operária tem uma irredutível especificidade nacional. E exalta a experiência do peronismo que “teve um sucesso inegável ao constituir uma linguagem democrático-popular unificada em nível nacional”.

Não bastasse essa opção nacionalista, segundo Stuart Hall, a posição discursiva de Laclau corre de novo o risco de perder qualquer referência à prática material e às condições históricas da luta de classe: elas são por assim dizer neutralizadas em suas potências próprias em nome do contexto nacional. Não se pode considerar a sociedade como um campo discursivo totalmente aberto sobre o que a fixação da hegemonia política se dá num horizonte nacional-popular: essa operação não pode senão produzir um assalto ao Forte Apache da parte de outras forças sociais em jogo — como, de outra parte, aconteceu na Argentina. Consequência: o esquema laclauiano mostra também aqui que só pode reger-se enquanto figura “centrista” de  governo. Esta não pode evitar de oferecer-se — como de fato fez — a um positivismo da soberania exercido a partir de uma autoridade centralmente eficaz. É ainda uma transcendência formal que, com efeito, materialmente põe o poder e o justifica.

Pode-se notar, no entanto, que pouco a pouco, no último Laclau, a transcendência do comando cessará de representar-se em termos rigidamente nacionais segundo um centralismo estatal pesado demais. Entrevê-se além disso, certo distanciamento daquela concepção originariamente hobbesiana que enxergava o poder formar o povo. E, entretanto, de súbito surge um paradoxo: se de fato a transcendência do mando e a tentação hobbesiana se atenuam — porque existiriam sempre, na contemporaneidade, crescentes irregularidades de poder nas relações sociais —, também essa “impossível transcendência” novamente se concretiza na obra de Laclau, não buscada mas encontrada, não construída mas imposta pela própria mecânica do transcendentalismo. No lugar da síntese da multidão, a abordagem transcendental cada vez mais vai compactar, na emergência do “povo”, um significante “pleno” — que passa a fundar o político. Passagem do criticismo a uma concepção decididamente ligada ao idealismo objetivo? Pode-se concluir que, se Laclau mostra de maneira brilhante que o povo não é uma formação espontânea ou natural, mas é constituído por mecanismos representativos que traduzem a pluralidade e a heterogeneidade das singularidades em unidade, e se essa unidade, por meio da identificação com um leader, um grupo dominante e, em certos casos, com um ideal, se torna realidade; essa visão parece malgrado tudo tributária de uma ideia “aristocrática”, em vez de democrática, que repete as declinações mais profundas da história moderna do Estado, continuando-a. Talvez aqui haja verdadeiramente a confirmação de uma passagem do criticismo ao idealismo objetivo. A centralidade, para Laclau, das funções dos intelectuais e da comunicação na organização política é significativa dessa passagem. Aqui estaria completamente superado o conceito gramsciano de “intelectual orgânico”, ao passo que é assumida a função autônoma do intelectual como força auxiliar na construção da hegemonia — ou da leadership? É exatamente o que Laclau recusou fazer em toda a sua vida de militante democrático e socialista — pelo que se lhe deve dar caloroso reconhecimento. Então, por que essa unidade da “autonomia do político” e da leadership intelectual?

Para concluir. Este meu corpo a corpo com o pensamento de Laclau frequentemente se repetiu nos últimos vinte anos. Digo-o francamente, como disse-lhe diretamente: creio que o seu pensamento e a sua própria concepção do populismo sejam o produto de uma reflexão, mais do que sobre o poder, uma reflexão sobre o conceito de transição, e do poder da transição entre épocas diversas de sua organização. O populismo de Laclau é a invenção de uma forma móvel de mediação, da e na transição de regimes políticos — sobretudo, mas não somente, daqueles sul-americanos. Uma forma que eu continuo a considerar fraca, não conceitualmente, mas pela realidade que registra, porque aquele “vazio” que ela assume como problema frequentemente não é um vazio a preencher, mas um abismo em que se arrisca de precipitar. E essa fraqueza é acentuada por Laclau no fato que, recusando abrir-se a uma interrogação ontológica e, portanto, de conferir sentido à emergência do novo, e admitindo que a governance de uma transição não pode ser senão constituinte; essa constituição incerta termina paradoxalmente repetindo os modelos da modernidade. Em particular, recusa toda tensão emancipadora. Aceitando colocar-se dentro da tensão entre espontaneidade e organização, mas cancelando as dimensões materiais da luta de classe, Laclau termina retomando alguns aspectos bastante problemáticos do direito público europeu. Por exemplo: investindo de sua parte sobre o tema dos movimentos sociais, Carl Schmitt definia-lhes a figura através do reconhecimento de que eles constituem a trama da composição popular do Estado — um reconhecimento do alto para baixo que politiza a sociedade, a fim de construir uma identidade nacional.

Ou, de outra forma, noutra direção, a definição schmittiana do lugar da representação política como “presença de uma ausência”, — ausência a preencher-se se quisermos que o Estado exista, presença a esvaziar-se se quisermos que o Estado esteja acima das partes, super partes. Até que ponto o “significante vazio” repete o modelo schmittiano de representação? Mas as que sublinhamos são interferências impróprias — seguramente, para Laclau, simples instrumentos recuperáveis do arquivo do direito público europeu. Porque — eis enfim a minha opinião  — a importância, ou melhor, a grandeza do pensamento de Laclau não consiste tanto em resolver a questão do significante político vazio ou, ao contrário (visto da direita), na recusa de comprometer-se à luta de classe e ao conflito social para preenchê-lo. Consiste, ao contrário, em ter vivido a partir de dentro o problema. A coisa flutuante que ele percebia diante de si — aquele truc, machin — não era o velho modelo do Estado — o Estado moderno — mas uma coisa nova. Há uma tensão constituinte que se estende, e age, sobre o terreno da crise do Estado democrático da modernidade. Não se trata de descobrir o Estado que tivemos até aqui, mas de construir a partir dele um outro. Inventar um novo significante para uma transição radicalmente democrática. Aqui, o criticismo se inflama em seu significado originário — não enquanto eixo de construção transcendental do Estado, mas como inserção problemática na crise.

Me permito aqui concluir com um pequeno apêndice, a respeito de algumas distorções brutais do ensinamento de Laclau. Quando, por exemplo, se impõe um chapéu aos movimentos reais como se o problema fosse o seu tamanho e não o próprio chapéu: como frequentemente acontece no atual debate espanhol. Ou quando, em nome de Laclau, se retoma — para purificar a suja vitalidade dos movimentos — a imagem do velho Partido Comunista italiano como modelo de escuta e direção da palavra do povo — como cada vez mais frequentemente acontece hoje um pouco em toda parte, na esquerda europeia ou sul-americana. E em milhares de outros casos, incluídas as distorções que lhe são impostas, todos significantes da extraordinária vitalidade de pensamento de Ernesto.

 

Conferência apresentada pelo filósofo Antonio Negri na Maison de l’Amerique Latine, em Paris, 27/5/2015. Transcrição pelo próprio autor, traduzida do original italiano oferecido em 13/6/2015.

Nota da tradução:

[1] – Negri se refere a Palmiro Togliatti, secretário-geral do Partido Comunista Italiano entre 1927 e 1964, um dos maiores fiadores da aliança entre o PCI e a União Soviética.

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