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Libertar-se (d)a África

Por Fabrício Toledo de Souza, advogado de direitos dos refugiados, doutorando em direito da PUC-Rio

“Há poucos meses, quando alguns poucos ganeses (cerca de 300) chegaram à cidade de Caxias do Sul (…) o mesmo tom alarmista usado quando vieram os primeiros grupos de haitianos. Exatamente a mesma palavra: invasão. Quando não é uma invasão, os africanos são uma epidemia. E quando não são uma epidemia, são um crime.”

Ganenses

Não há uma África, assim como não há uma história dos africanos e nem tampouco uma história de libertação dos africanos. A África é isso que (se) escreve sobre as epidemias mortais, os massacres e a exploração. É a história dos que afundaram no Mediterrâneo, dos que morreram sob o sol do deserto do Níger, ou daqueles extorquidos na travessia pela América do Sul, enquanto os homens (brancos) de bem decidiam as cotas de liberdade. É a história das guerras, genocídios e massacres, com todos os inacreditáveis detalhes que a modulação arcaica do capitalismo produz naquela parte contaminada do mundo: homens com facões, crianças soldados, mutilações, canibalismo forçado, estupros em massa, calabouços, perseguições políticas, enfim, histórias e mais histórias de absoluto terror. A África é o que se escreve do holocausto negro, aqui e agora, transmitido por telefones celulares que carregam os minerais extraídos da carne. É o que se diz sobre os trabalhadores imigrantes superexplorados, em tarefas degradantes, dentro de carvoarias ou frigoríficos, para pagar as dívidas com “coiotes”, subornos dos policiais e também para enviar dinheiro às famílias.

E a África é também a história cósmica de um continente cósmico, história das lutas por libertação, das diásporas e da globalização. História dos povos que se espalham pelo mundo, superando tragédias, sobrevivendo, lutando e desejando uma vida melhor para si e para os familiares que restaram na terra natal. A história dos deuses guerreiros e de pessoas que lutam pela sobrevivência e lutam por uma vida maior, mesmo que sejam condenados por isso: por querer. Sincretismo como estratégia, fuga como luta, tradição como resistência, música como tecnologia, dança como guerra, ainda que o mundo tenha acabado. É especialmente pela fuga que conhecemos as histórias: diásporas, ligações telefônicas internacionais, redes sociais, remessa de dinheiro (maior do que a ajuda humanitária internacional), blogs, notícias, enfim, sobre a paz. Está tudo sendo escrito.

A história da libertação dos africanos é a história de sua libertação da própria África, na forma de muitas e variadas diásporas, até que se torne impossível contar uma história de Uma África. Não é uma questão de culturas ou de múltiplas culturas, mas de resistências biopolíticas. Mesmo no Brasil, a libertação dos africanos se escreve sem parar, a todo o momento, uma sobre as outras; ou melhor, uma ao lado das outras, incluindo as que desistiram de se escrever. Mas estão todas por aí. Cotas raciais, quilombos, capoeira, candomblé, João Cândido, samba, Amarildo, haitianos, refugiados, Gilberto Gil. Escreve-se de muitas maneiras, com muitas palavras, ainda que existam sempre aqueles dispostos a expropria-las.

Hoje mesmo tentam falar da África como epidemia e dos imigrantes como vírus da morte. Há poucos meses, quando alguns poucos ganeses (cerca de 300) chegaram à cidade de Caxias do Sul, logo nos primeiros dias após o final da Copa do Mundo, os jornais falavam em “invasão”[1]. Antes dos ganeses, a cidade – pequena, mas economicamente muito forte — já havia seduzido os haitianos e senegaleses, que são agora parte de um contingente de pouco mais de dois mil migrantes. Era o mesmo tom alarmista usado quando vieram os primeiros grupos de haitianos. Exatamente a mesma palavra: invasão[2]. Quando não é uma invasão, os africanos são uma epidemia. E quando não são uma epidemia, são um crime.

Os haitianos, recebidos como vítimas de uma catástrofe natural (por causa do terremoto em 2010, que devastou o país), foram documentados e tratados como migrantes “humanitários”. Logo caíram nas graças da “opinião pública”, com a fama de “bons trabalhadores”. Quanto aos senegaleses, eles também receberam um tratamento especial por parte do governo brasileiro. Atendendo a uma demanda dos empresários de Caxias do Sul (onde agora estão os ganeses), o Conselho Nacional de Imigração (CNIG) regularizou a situação de um número determinado deles. E os migrantes que vieram depois — como solicitantes de refúgio – estão sendo paulatinamente documentados, graças a um acordo entre o Comitê Nacional para os Refugiados (CONARE) e o CNIG.

A mídia corporativista usa a mesma retórica preconceituosa e securitária de sempre, atualizando o racismo estrutural e reproduzindo os discursos conservadores bastante comuns nos países do Norte. Aos ganeses, os jornais não deram a chance de falar, a não ser pelas poucas palavras entre “aspas” ou pela declaração oficial de um político do país. A mídia deu espaço ao Vice Ministro de Informação de Gana, para quem os pedidos de refúgio feito por seus conterrâneos “têm base completamente falsa”[3]. Os ganeses, segundo os jornais, apenas “alegam”: alegam que fogem de perseguição, alegam que fogem da violência, alegam que fogem da miséria… sempre entre aspas, alegam alguma coisa. As expressões das autoridades (brasileiras e ganesa), por sua vez, mesclam-se ao texto dos jornalistas. E todas as suas palavras ganham status de verdade.

A Polícia logo decidiu investigar o fluxo “anormal” de migrantes ganeses chegando ao Brasil. O delegado federal responsável pela investigação, atendendo aos jornalistas, culpou a embaixada brasileira em Acra (capital de Gana) pelo “erro grave” de conceder vistos sem adotar os cuidados “rotineiros”. A chegada dos ganeses, segundo o delegado, é parte de um “movimento organizado” e a concessão indiscriminada de vistos trouxe “consequências nefastas”[4]. A culpa também da Lei da Copa, que “flexibilizou” as regras para os vistos, geralmente negados aos ganeses (mais pobres).

A “flexibilização” da regra (da “normalidade”) aparece como problema somente agora quando os migrantes africanos negam-se a voltar ao seu país (exceção) de origem e pedem refúgio. E se isso não é suficiente para explicar o “erro”, é preciso então encontrar as “redes criminosas”, as “organizações”, os “coiotes”, as atividades escusas. E os jornais, afinal, fazem esquecer que solicitar refúgio é um direito acessível a qualquer estrangeiro, mesmo para os que entraram com visto de turista ou que entraram irregularmente. E que, eventualmente, migrar pode ser uma necessidade. Talvez até um direito, quem sabe?

Mesmo como vítimas, os africanos estão em categoria inferior. São vítimas de segunda categoria. Enquanto os sírios e palestinos conseguem a solidariedade quase unânime e ganham destaques na imprensa em todo o globo, os africanos que vivem as mais selvagens guerras de todos os tempos sobrevivem somente enquanto missões humanitárias são capazes de ajuda-los ou na medida em que são capazes de fugir com vida. Não se trata de medir a vida pela dor, nem a dor pelo número de vítimas, mas 200 mil mortos sírios valem mais do que os seis milhões de congoleses trucidados. E as mulheres congolesas valem menos ainda: a cada hora, naquele país africano, 48 mulheres são estupradas e tudo acontece como se fosse normal. E realmente se tornou normal, impune e aceitável.

Somente o sofrimento máximo pode expia-los da culpa e apenas a condescendência os libertará. Se são vítimas da guerra, como os congoleses, vítimas da miséria, como os haitianos e senegaleses, ou se são vítimas dos coiotes ou de falsos sonhos, os imigrantes africanos estão corrompidos pelo crime de migrar; isto é, por terem enfrentado obstáculos que normalmente muitos de nós não conseguiríamos superar. Se desejam mais do que sobreviver, serão acusados de (nos) enganar e de nos roubar. E, sobretudo, serão culpados por desejarem mais do que condescendência. São culpados por desejar uma vida melhor.

PS. Em julho de 2014, pela primeira vez, um refugiado participou de uma Plenária do Comitê Nacional para os Refugiados, desde sua fundação, em 1998. O congolês Charly Kongo falou longamente – mas menos do que gostaria – sobre o que acontece em seu país. Falou sobre os grupos rebeldes, sobre a tirania do atual governo, sobre a violência generalizada, sobre as infâncias destruídas e sobre o massacre das mulheres. Tudo parecia inacreditável, mas nada era realmente novidade. Todos já tínhamos lido sobre isso. Mas era a primeira vez que um refugiado falava e havia um enorme e doloroso silêncio. Era a primeira vez que um refugiado africano entrava naquela sala. E a primeira vez que um negro se sentava naquela mesa. Um dia histórico, graças à luta dos refugiados e à luta de Charly Kongo.

 

NOTAS

[1] “PF investiga ação de ‘coiotes’ em invasão de ganeses no Sul”. O Globo. 09/07/2014. http://oglobo.globo.com/brasil/pf-investiga-acao-de-coiotes-em-invasao-de-ganeses-no-sul-13201334

[2] “Acre sobre com invasão de imigrantes do Haiti”, O Globo, 01/01/2012. Disponível em http://oglobo.globo.com/brasil/acre-sofre-com-invasao-de-imigrantes-do-haiti-3549381.

[3] “Vice Ministro de Gana diz que pedidos de refúgio no RS têm base falsa”. Portal G1, 11/07/2014, disponível em http://g1.globo.com/mundo/noticia/2014/07/ministro-de-gana-diz-que-pedidos-de-asilo-no-rs-nao-tem-fundamento.html.

[4] As declarações do delegado foram publicadas, sem nenhum pudor, no jornal O Globo. “PF atribui a ‘erro grave’ do Itamaraty ingresso de ganeses no Brasil”. 10/07/2014. Disponível em http://oglobo.globo.com/brasil/pf-atribui-erro-grave-do-itamaraty-ingresso-de-ganeses-no-brasil-13213887#ixzz37HXF9nU1].

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