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Lula e a Bolsa de Valores de…Kiev !

Giuseppe Cocco

Depois de enfrentar ameaças de todo tipo que culminaram na invasão dos palácios da “Praça dos Três Poderes” projetada por Oscar Niemeyer, o governo Lula finalmente começou a funcionar. No início de fevereiro de 2023, já podemos ver a implementação de vários projetos decisivos: as articulações políticas com os novos presidentes do Parlamento e do Senado; o socorro aos Yanomani e o início da expulsão dos garimpeiros de ouro; a retomada do protagonismo na política externa (com a visita a Buenos Aires, Montevidéu, a participação no Celac[1], a visita de Scholz a Brasília e agora  a viagem a Washington para encontrar Joe Biden).

Para cada um desses eixos, pode-se indicar uma nova determinação e ao mesmo tempo uma mistura já preocupante de inércias e profundas contradições. Lula deve estar satisfeito com a eleição dos dois presidentes do parlamento, mas deve-se notar que são as mesmas pessoas que trabalharam com Bolsonaro nos últimos dois anos de seu governo; a expulsão de 20.000 garimpeiros de ouro do território Yanomani é tão complexa quanto a superação da inércia criada pela expansão da fronteira amazônica ao longo de muito mais tempo que os quatro anos trágicos do governo Bolsonaro; o incrível sucesso internacional de Lula torna algumas de suas declarações ainda mais paradoxais: em Montevidéu, ele definiu o impeachment de Dilma (em 2016) como se fosse um “golpe de Estado”; na coletiva de imprensa com Scholz, quando perguntado sobre a invasão russa da Ucrânia, ele igualou o agressor e ao agredido (“Se um não quer, dois não brigam”) e propôs a constituição de um “grupo de paz”, como se as Nações Unidas não existissem.

Mas é em torno da política econômica que tanto a atenção quanto a tensão estão concentradas. Enquanto no nível da representação parlamentar Lula mostra um pragmatismo que beira o cinismo, em questões de política econômica ele exibe uma narrativa muito polarizada: o Estado versus o Mercado. Esta radicalização também foi amplificada por uma nova descrição da invasão de Brasília como uma “revolta dos ricos”[2]. Enfim, Lula adere às teses que consideram as taxas de juros como a causa dos problemas e não como um dos sintomas.

O Estado contra o mercado?

A luta contra “o” mercado está ocorrendo ao longo de duas trincheiras: por um lado, para ocupar os principais cargos gerenciais da economia foram indicados políticos do PT (sem nenhum critério técnico): o Ministério da Economia foi entregue a Fernando Haddad (candidato presidencial derrotado em 2018 e 2022 quando ele concorria ao Estado de São Paulo); a presidência da Petrobras a um senador do PT (Jean-Paul Prates) e a presidência do Banco Nacional de Desenvolvimento (BNDES) a Aloízio Mercadante, uma das figuras históricas do PT. Conforme estas nomeações foram anunciadas, os preços da bolsa de valores flutuaram e a polêmica de Lula (e do PT) contra “o” mercado subiu. E aqui está uma segunda frente: na cerimônia de posse do presidente do BNDES, depois de afirmar que o banco assumiria seus empréstimos a Cuba e Venezuela, apesar da inadimplência desses países com o próprio BNDES – Lula atacou o presidente do Banco Central, único cargo que ele não pode mudar por causa da lei – recentemente aprovada – que garante sua autonomia. O ataque ao Presidente do Banco Central é duplo: por causa de seu “bolsonarismo” e, sobretudo, por causa das elevadas taxas de juros cobradas. Para que a economia volte a crescer, as taxas de juros devem cair; para que as taxas de juros caiam, o Banco Central deve perder sua autonomia.

É um jogo arriscado, embora possa levar a alguma mediação. O objetivo seria de acelerar uma flexibilização da política monetária, com um possível aumento da meta de inflação. O risco é que isso tenha efeitos opostos (retardando a queda das taxas e amplificando o aumento da inflação). Em qualquer caso, a pressão de Lula é atravessada por uma urgência material – enfrentar o bolsonarismo através do crescimento e da luta contra o desemprego – e por uma dimensão ideológica. O dinheiro é visto como todo-poderoso, enquanto “o” mercado é percebido como o comitê central do “partido dos ricos” organizado contra os “pobres”.

Na verdade, temos aqui três linhas de reflexão. Em primeiro lugar, a vitória eleitoral de Lula é muito mais contraditória do que parece: enquanto ele é corretamente aclamado como um baluarte da defesa da democracia, Lula mantém alianças com governos que a ameaçam: Cuba, Venezuela e, é claro, a Rússia de Putin[3]. Em segundo lugar, as variações nos preços do mercado de ações, quando não vão na direção desejada, são estigmatizadas como uma manifestação ideológica do “mercado”. Finalmente, as taxas de juros são vistas como independentes do dinheiro, como se o dinheiro tivesse um valor intrínseco. Estes são três fetiches ideológicos que se alimentam um do outro:  a miséria de Cuba, a catástrofe da Venezuela e a guerra de Putin seriam, respectivamente, os frutos do bloqueio americano a Cuba, o imperialismo contra a Venezuela de Maduro e a expansão da OTAN; o “mercado” seria algo como a propaganda do “Ocidente Coletivo” de Putin e seria impulsionado por interesses homogêneos; as taxas de juros seriam decididas em nome do capitalismo financeiro (rentista) e enfim a inflação não importaria muito. Desnecessário dizer que esta narrativa é vista como uma mudança positiva pela “esquerda” que vê o mercado e os ricos como os obstáculos ao “crescimento”.

O primeiro grande problema é que essa abordagem não funciona, ou pior, pode piorar as coisas, tanto econômica quanto politicamente. Uma maneira de desmistificar este debate é de tentar reunir suas três dimensões.

Mercado e coordenação

Vamos começar com a noção de mercado. Uma economista brasileira que trabalha nos Estados Unidos definiu as críticas aos ataques de Lula ao Banco Central como sendo sem nuances, como se fossem produzidas por cérebros sem dobras, exatamente como as respostas sem sal oferecidas pelo ChatGPT questionado por ela mesma[4]. No entanto, Yann Le Cun, um dos pioneiros do Deep Learning, explica que a inspiração para desenvolver redes neurais que imitam as do nosso cérebro foi, desde o início, a convicção de que a única maneira de construir um dispositivo inteligente é que ele seja capaz de se auto-organizar[5]. Não é por acaso que Hayek participou desses esforços adotando a noção smithiana de “mão invisível”[6]. O mercado, neste sentido, seria uma forma de auto-organização – ou seja, de coordenação – que permite que as decisões sobre o futuro (sobre o risco que qualquer futuro implica por definição) sejam atualizadas em tempo real. Neste sentido, o mercado não é um problema e ainda menos o problema, pelo contrário. O problema é que o mercado é atravessado por diferentes graus de verticalidade produzidos pelas concentrações de capital e pela centralização das decisões que disso derivam ou o atravessam. Quanto mais os mercados evoluem segunda linhas horizontais, mais eles participam da dinâmica democrática. Quanto mais verticais, menos democráticos são. Mas a pressão política “contra” os mercados simplesmente não funciona, porque centraliza as decisões ainda mais e de forma ainda menos democrática e destrói a dinâmica de coordenação (o que é evidente na corrupção e nas economias mafiosas: onde há milicias, não há mercado nenhum). É por isso que países sem “mercados” nunca aumentaram a riqueza social e sempre acabaram introduzindo formas coercivas de coordenação: como o trabalho forçado na URSS (ou Covid Zero na deriva autoritária da China contemporânea). A questão é: como tornar o mercado o mais horizontal e democrático possível, com a dinâmica de coordenação mais livre possível.

Passemos à moeda. As críticas à autonomia do Banco Central e sua política de combate à inflação (através de taxas de juros muito altas) derivam de um duplo equívoco. O primeiro é até mesmo uma questão de política econômica: quanto mais Lula ataca esta autonomia, mais difícil será baixar os juros. O segundo é mais teórico: paradoxalmente, Lula e seus assessores estão mobilizando a mesma noção de moeda que levou Milton Friedman a dizer que ela “é importante demais para que se mexa nela”. A diferença é que Lula quer tocá-la precisamente porque ele acredita que ela tenha um valor em si mesma. Mas a moeda é, por um lado, uma criação ex nihilo (é uma decisão) e, por outro lado, uma pura relação: estas duas dimensões convergem em uma terceira, que é a informação que permite armazenar (acumular) no tempo (dívida) e “fazer as contas” (as que permitem de ver que as Americanas estavam quebradas). Este enigma trinitário é mantido no tempo somente se estiver ancorado em algum lugar: o material que o suporta; o selo de autoridade que o atinge (quando é de metal) ou o assina (quando é de papel) ou a senha (quando é digital); o sistema fiscal, a contabilidade etc. Agora, todas essas normas (ou âncoras) precisam alimentar – notadamente através da imitação – a confiança sem a qual o dinheiro simplesmente deixa de existir: confiança é aquela dimensão que nos faz aceitar uma moeda como meio de liquidação (pagamento) porque temos certeza de que podemos passá-la para qualquer outro agente no mercado[7]. No entanto, a confiança é a coisa mais difícil de criar, enquanto é muito fácil de se destruir. É aqui que entra a questão da democracia: a confiança não pode ser imposta, ela deve proliferar, como a democracia.

A Bolsa de Valores está em Kiev

O que caracteriza a América do Sul é que a confiança é muito precária. Em alguns países ela não existe e a moeda é o dólar: oficialmente no Equador e de fato na Venezuela. Mas o caso mais emblemático é o da Argentina: após a multiplicação dos planos heterodoxo e ortodoxo (especialmente com vários episódios de sequestro da poupança – os “corralitos” – ao longo das últimas décadas), a Argentina está novamente no marasmo. O país opera agora com um sistema tri-monetário: o peso, o dólar oficial, o dólar Blue (mercado negro). O meio de pagamento e liquidação das operações é o peso. O dólar oficial é utilizado para exportações e algumas transações com o comércio exterior. O dólar azul é usado como unidade de conta e como reserva de valor por boa parte dos argentinos de todas as classes sociais. O detalhe é que o dólar blue vale o dobro do valor do dólar oficial[8]. O que isso significa? Muito simplesmente que os argentinos não têm confiança na moeda soberana e muito menos nas taxas de câmbio oficiais, por isso resolveram a questão das taxas de juros, que não são mais de muito interesse.

Finalmente, chegamos ao cenário global. Desde a crise de 2008 e o episódio da dívida soberana européia, os bancos centrais do mundo implementaram uma gigantesca política de flexibilização monetária (Quantitative Easing). Na pandemia, esta inflexão tomou um rumo ainda mais radical, com a criação de volumes colossais de dinheiro para manter em circulação o que a luta contra o vírus estava confinando. Com Biden, o que parecia ser uma política relacionada à emergência está tentando se tornar a base de um novo paradigma articulado em torno de uma gama significativa de investimentos sociais e de infraestrutura (distribuição de renda, assistência médica, infraestrutura para a transição energética). Este novo paradigma parecia se chocar com o retorno da inflação, como se fosse a consequência de uma emissão monetária exagerada. Na realidade, as medidas para conter a inflação mostraram que, nos EUA e na Europa, ela é principalmente o resultado de choques externos, em ordem: a estratégia chinesa de covid zero e a agressão russa na Ucrânia. Nos EUA, a inflação está começando a cair (ainda é cedo para saber se esta é uma tendência consistente), o emprego está em seus níveis mais altos por 40 anos e os democratas têm tido os melhores resultados nas eleições de mid term desde Ronald Reagan.

Há, portanto, uma dupla brecha para construir a confiança: em primeiro lugar, Lula deve compreender que o maior trunfo que tem para baixar as taxas não é a quebra da autonomia do Banco Central, mas ele mesmo e sua vitória em nome da defesa da democracia: Lula é o maior ativo para a confiança, a não ser que ele decida mesmo de jogá-la no lixo, como já fez a Dilma. Mas, a outra brecha, a mais potente, é a democracia está vibrando nas políticas sociais de Biden e especialmente na resistência ucraniana: a bolsa de valores da democracia hoje está em Kiev.

Existem ligações entre moeda e política externa que Lula não suspeita, mas que são fundamentais.

 

[1] Communauté des États Latino-Américains et du Caribe.

[2] 6 de fevereiro de 2023, disponível em: https://www1.folha.uol.com.br/poder/2023/02/lula-diz-que-tentativa-de-golpe-foi-revolta-dos-ricos-que-perderam-a-eleicao.shtml

[3] Podemos destacar a presença assídua de Lula no canal russo (RT), ver https://www.rt.com/tags/lula-da-silva-news/

[4] Mônica De Bolle, “Cérebro sem sulcos: o ChatGPT e o debate público brasileiro; 4 de fevereiro de 2023, disponível em https://bolle.substack.com/p/cerebros-sem-sulcos?utm_source=post-email-title&publication_id=904670&post_id=100855998&isFreemail=true&utm_medium=email

[5] Quand la machine apprend, Odile Jacob, 2019.

[6] Cf. Philippe Nemo, “La théorie Hayékienne de l’ordre autoorganisé du marché”, Cahiers d’économie politique, n. 43, 2002.

[7] Michel Aglietta et André Orléan, La monnaie entre violence et confiance, Odile Jacob, 2002, p. 282.

[8] Roberto Troster, “O trilema argentino”, Valor, 10 de agosto de 2022.

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