Por Bruno Cava, em 24/9/17 | Crítica do filme “Mother” (Darren Aronofsky, 2017)
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O filme pode ser lido como uma versão desvirtuada da Bíblia, repleta de demônios, falsos messias e teodiceias perversas. Ou como uma reinterpretação das escrituras assinada por Richard Dawkins, por um ateu virulento devotado a desmascarar a mensagem religiosa. Se for lido nesse sentido, o filme não passa de uma caricatura com um roteiro entre o grotesco e o ridículo, que não tira sequer lasca do cristianismo. Mas o filme também pode ser lido como um estudo de uma atitude contemporânea, encarnada na personagem principal feminina vivida por Jennifer Lawrence.
A esposa nutre uma utopia João de Barro: construir uma casa delicadamente decorada à altura de sua personalidade, clean e casual, para nela desfrutar a vidinha de um casamento feliz com o marido. No filme, a casa confunde-se com o corpo da atriz, numa zona de indistinção onde sentimentos, sangramentos e pulsações se interpenetram. Dona de casa e esposa diligente, Jennifer transmite uma sexualidade anódina, que desperta pouco interesse no marido apesar dos esforços. Este, interpretado virilmente por Javier Bardem, está mais debruçado na própria obra de criação, em ser reconhecido e conquistar seguidores e fãs. Mas ele precisa dela não só para cuidar da casa, como também para sugar-lhe energia vital e criativa. É movido por um intenso desejo de carreira e vaidade pessoal, de maneira que, a certa altura, ela só consegue arrancar dele atenção mexendo com os seus brios: “você não escreve, não faz nada, e além disso não consegue transar comigo”. O ambiente anuncia uma gangrena conjugal, que começa a preocupar a protagonista e solapar a aparente simbiose que sustenta o microcosmo.
As visitas vão chegando à mansão no campo uma depois da outra, como tietes de rock que surgiam do nada para conhecer a casa de John Lennon e Yoko Ono no período de isolamento do casal. Todas não só querem um pedaço do ídolo, como acham que têm um direito a isso. Enquanto o marido as acolhe efusivamente, ela se ressente por ter de dividir a atenção, estranha-os, sente que seu paraíso particular está sendo ameaçado e invadido. Incapaz de viver a temporalidade acelerada da multidão que entra na sala de jantar, ela vive esse processo intrusivo como se estivesse num pesadelo, que vai se tornando cada vez mais distópico. Perdemos o fôlego quando somos arrastados em cenas desenfreadas em que turbas, legiões de fãs, cultos maníacos, seitas alucinadas, ícones, gurus, guerrilhas, exércitos e linchadores esmagam o espaço vindos de todos os lados.
É nessa parte final do filme que lembra “A casa do espanto” (“House”, 1986), entre o terror e o humor negro, que o sonho vitoriano de Jennifer desmorona. Ela simplesmente não dá conta do mundo quando este se faz presente, nem sequer para entender minimamente do que se trata, diante da avalanche de conflitos, manifestações e questões que lhe arromba as paredes. A história da vida real suplanta absolutamente o mundo metafísico, o tempo vivo dos povos humanos demasiado humanos despedaçam o tempo mítico circular povoado por arquétipos. É preciso desconfiar do ponto de vista da câmera, que acompanha a protagonista em suas percepções, ações e sensações: desse ângulo, a complexidade histórico-política termina achatada numa massa disforme de fatos desligados uns dos outros, avulsos, irracionais, de uma maluquice insuportável de signos e sons, em suma, um bloco de ruído.
Não residiria aí, numa segunda camada de interpretação além da ideia de um filme à clef (criptobíblico), uma perspectiva crítica à própria posição subjetiva da personagem com a qual a instância fílmica se confunde? Uma atitude de distanciamento blasé, de interesse centrípeto na construção da Casa, ao mesmo tempo que vive o exterior como ameaça, intrusão, absurdo. Os dois membros do casal fracassam de maneiras diferentes. Se Bardem, como aprendiz de feiticeiro, fracassa por sua imprudência em lidar com as forças perigosas que ele mesmo ajudou a desencadear, Jennifer fracassa por entender que poderia escapar do mundo fechando-se em sua concha customizada.
Um vai da casa ao cosmo mas é derrubado quando o mundo retorna como caos, a outra fica presa a um microcosmo e se esfacela junto com ele, por falta de conexões. A consequência só poderia ser a autodestruição, quando a incapacidade de traçar linhas de contato com os devires do mundo se resolve numa grande catástrofe. Para além de qualquer interpretação universalista, “Mãe” toca diretamente a nossa atualidade.
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