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Marilena Chauí: a história da filosofia contra o pensamento

Por Rodrigo Guéron

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Tenho notado que Marilena Chauí, cujo ótimo curso recente sobre “Espinosa e a Política” na PUC assisti de caneta e caderninho em punho, há algum tempo tem usado a história da filosofia contra a filosofia e o pensamento em geral.

Estive, estes dias, reunindo anotações para responder a forma como ela desautoriza o uso de alguns conceitos (como o conceito de “multidão” originalmente de Espinosa, mas redefinido por Antonio Negri), ou a articulação e aproximação entre conceitos (como “trabalho vivo” em Marx e “produção de subjetividade” em Deleuze e Guattari), às vezes em nome de uma fidelidade ao sentido puro e imaculado que estes conceitos teriam nos filósofos que os pensaram, às vezes em nome de uma fidelidade historicista à história da filosofia que limitaria a possibilidade de aproximação dos conceitos e seus sentidos numa divisão lógica de contextos e classificações históricas fechadas, e linhagens filosóficas determinadas.

Além disso, a maneira reativa como Chauí tem se referido aos movimentos que tomaram as ruas do país a partir de junho, nos dá a impressão que a professora despreza os acontecimentos nas suas singularidades o que, convenhamos, não é nada materialista. Marilena parece não suportar o incompreensível, o que não é absolutamente assimilável em seus aparatos conceituais prontos, ou seja, o que ela evita é exatamente um dos princípios, um dos agentes provocadores do pensamento: aquilo que nos tira do nosso lugar habitual, do nosso conforto intelectual, que é também físico, demandando novas criações, sejam conceituais, sejam artísticas.

Não é possível reduzir os acontecimentos aos esquemas de pensamento previamente dados. Na filosofia, e antes na política e na vida de uma maneira geral, são os conceitos que devem dizer os acontecimentos, ou seja, os conceitos devem ser criados e recriados a partir dos acontecimentos. E, uma vez criados, os conceitos tornam-se espécies curiosas de ferramentas, que materialmente se constituem mais ou menos na forma como Simondon compreendia a matéria: não “matéria e forma”, mas sim “matéria e força”. Ao que eu acrescentaria: os conceitos são ferramentas que se alteram – tornam-se outras – no seu uso, vivas e vitais como os comandos de games que o cineasta David Cronemberg nos mostra no seu Existenz.

Pois é, como eu ia dizendo, eu estava aqui reunindo anotações para abrir este bom debate, tentando mostrar que o valor do estudo da história de filosofia é que ela nos permite um “pensar com”, como pudemos fazer nas aulas da professora quando ela explicava de maneira esplêndida os sentidos e os caminhos dos pensamentos de Espinosa. Mas a história da filosofia não pode ser uma espécie de espada sobre o pensamento, nem um distintivo de autoridade acadêmica contra a criação de sentido.

Tudo isso era o que eu iria desenvolver em meu texto, passando pela crítica à maneira determinista como acho que Chauí usa a teoria marxista de classe, quase como um transcendente, uma “lei da história” que enquadra as dimensões políticas dos conflitos e da inventividade da produção social de fora para dentro. E aqui eu apontaria os problemas trazidos pela desconsideração que quase todo o marxismo tem pelo ponto mais fundamental e radicalmente materialista do pensamento de Marx: o conceito de “trabalho vivo”. É neste momento que o barbudo identifica o homem como “parte da natureza como força produtiva”, afirmando a nossa dimensão autopoiética: autoinventiva e autoprodutiva. Não compreender as possibilidades desta reflexão de Marx, não compreendendo que o “trabalho” nesse caso passa a ser a própria condição do ser como criador e reinventor de si e do mundo – tudo o que se produz, o que se faz, o que se inventa, é trabalho – é uma limitação dos marxistas que faz com que eles reduzam a compreensão da política a uma disputa pelo Estado. Marx nos mostra, no entanto, uma dimensão política que existe potencial e imediatamente no trabalho, na sua inventividade quando ele é livre, isto é, quando ele consegue escapar às maneiras como o capitalismo organiza a produção e, consequentemente, define as relações sociais e impõe formas de vida. É próprio do capital, no entanto, querer dizer o que é e o que não é trabalho e produção, mudando suas axiomáticas de acordo com suas conveniências. Assim samba, rock-punk, ou funk podem ser coisas de malandros, vagabundos e bandidos, mas, contas refeitas, podem virar um ótimo ativo da indústria musical. No final das contas (literalmente) o capital gosta de dizer que toda a produção só existe graças a ele, tomando-se como um “pressuposto natural e divino” de todo o processo de reinvenção do mundo e da vida.

Há, no entanto, um desejo produtivo, gerador e gerado pela abundância dos meios de produção, tecnologias e bens do capitalismo, que nos impulsiona para muito além da forma mercadoria e de suas mensurações de valor quantificadoras e redutoras. O “trabalho vivo” é a própria operação da vida, a sua ação produtiva que se dá como uma mobilização social e que é por isso política, e que tem a sua dimensão anticapitalista quando produz formas de vida múltiplas para além das limitadas formas de vida dos “padrões de mercado”. E aqui sim “trabalho vivo” pode ser articulado com “produção de subjetividade”, para além de qualquer cânone filosófico. O erro recorrente nas análises políticas de Marilena Chauí e da maioria dos marxistas brasileiros (embora Chauí esteja num nível muito mais alto do que uma vulgata marxista que parece que simplesmente parou de estudar e pensar) é o de não entender a dimensão política do trabalho vivo – da produção de subjetividade – nas últimas décadas, e de como o capitalismo se reestruturou, como forma de poder e de extração de mais-valor, partir destas; ou seja, o próprio processo do neoliberalismo. Ao excluir de suas análises políticas toda esta vitalidade, os marxistas são sistematicamente derrotados pelo capitalismo que se apresenta falaciosamente como a única forma de organização produtiva capaz de responder aos desejos. O capitalismo aprendeu muito melhor que as esquerdas que toda a operação produtiva pode ser considerado trabalho e disseminou as formas de exploração a partir das resistências e das linhas de fuga construídas a ele mesmo, como se tivesse entendido de acordo com seus interesses a tal sociedade onde o homem poderia “pescar de manhã e ler à tarde” descrita por Marx, descobrindo que daí poderia extrair mais-valor à vontade.
Sim, eu sei, este seria o trecho do texto mais difícil e que mereceria mais desenvolvimento. Mas isso é o que eu iria tentar fazer até que a professora fez uma fala na academia da PM chamando os black blocs de fascistas. Foi algo que me deixou tão triste, tão decepcionado e perplexo, que comecei a achar que qualquer debate mais aprofundado, neste caso, seria inútil. Senti, de fato, uma sensação de impotência, como se tivesse levado uma rasteira de alguém que sempre tive, politicamente falando, como uma aliada e uma referência: uma “companheira”, com o perdão do jargão. E é por isso que meu texto a partir daqui muda de tom e torna-se quase outro.

Na verdade, já em meio às suas ótimas aulas, algumas das vezes que a Professora Marilena saia do esclarecimento dos pensamentos de Espinosa para comentar algum fato recente, todo o seu rigor histórico desaparecia. Ela chegou a falar, por exemplo, que o fenômeno eleitoral do comediante Beppe Grillo na Itália não tinha importância nenhuma e era a mesma coisa que o caso de Tiririca no Brasil. Demonstrou assim um desconhecimento completo do “movimento cinco estrelas” que Beppe liderou e que, com todas as contradições que pode ter, levou ao parlamento italiano dezenas de lideranças de novos movimentos sociais, arrombando a porta dos esquemas de poder que fecham cada vez mais as estruturas da representação política para a democracia.

Tudo bem, todos nós professores falamos de vez em quando as nossas besteiras em meio as nossas aulas: não é possível estar bem informado sobre tudo o tempo todo. Mas ao acusar os “blocs” de fascistas na academia da PM a professora Marilena chegou não só a um ponto de irresponsabilidade política como de cumplicidade com a violência sistemática da PM do Rio, não só na repressão às manifestações, como no trato da população em geral.

Eu deveria começar aqui todo um grande trecho explicando quem são os blocs e esclarecendo que as manifestações e os movimentos em curso hoje no Rio vão muito além desse grupo político. Poderia dizer que muitos dos militantes blocs são da periferia, que o máximo de violência a que chegam é quebrar as vidraças de símbolos da opressão, como os bancos, virar algumas lixeiras e coisas do tipo. Deveria contar para a professora Marilena Chauí toda a estratégia de infiltração dos policiais militares nas manifestações do Rio, que foram muitas vezes policiais infiltrados que lançaram molotoves, que pessoas foram feridas com balas de borracha, manifestantes imobilizados no chão tomaram choques elétricos, que bombas de gás foram lançadas dentro de bares e restaurantes e até de hospitais. Poderia contar para ela que os blocs protegeram, numa luta defensiva, os manifestantes diante da repressão e permitiram, com sua resistência, que eles se retirassem com alguma segurança na manifestação dos 300 mil onde a ação da polícia quase provocou uma tragédia. Deveria lembrar à professora que o governo Cabral criou por decreto uma comissão inconstitucional para investigar as pessoas e que muitos cidadãos estão sendo processados no Rio de Janeiro apenas por participarem de manifestações. E sobre a polêmica das máscaras, bastaria eu dizer uma coisa: os black blocs andam mascarados, entre outros motivos, porque a polícia do Rio tortura e mata; é simples assim.

Mas como uma tão rigorosa guardiã do cânone da história da filosofia não se deu a um mínimo rigor de pesquisar tudo isso? Marilena Chauí de fato não sabia de nada quando aceitou dar uma palestra na PM e dizer nesta que os blocs são fascistas? Ela desconhece o que está em sendo colocado em questão pelos movimentos onde os blocs aparecem de forma importante? Não sabe que vivemos numa cidade, e num estado, totalmente privatizados pelo poder que deveria ser público, onde uma política arbitrária e violenta de remoções se proliferou, onde a especulação imobiliária aumentou o preço dos imóveis em até quinhentos por cento, onde um empresário, um grupo empresarial e um cartel dominam os ônibus, os metrôs, os trens e as barcas, recebem licenças, e até dinheiro público, para construir prédios imensos sem qualquer critério, controlando e elitizando até mesmo um dos maiores símbolos da cultura popular da cidade: o seu estádio de futebol, o Maracanã? Ela não sabe quanto ganham os professores da cidade e, pior, os do estado, em greve e mobilizados nas ruas no exato momento em que ela proferia sua palestra na PM?
A professora Marilena Chauí deve desculpas aos cidadãos do Rio de Janeiro, ela precisa retirar o que disse visto que isso pode custar ataques ainda maiores aos manifestantes em geral, inclusive aos corajosos e criativos meninos dos black blocs. Eu teria até críticas a fazer a eles eventualmente. Eu me preocupo, por exemplo, que os movimentos de uma forma geral não se isolem e não caiam numa lógica de auto-martirização. Não digo que isso esteja necessariamente acontecendo, mas às vezes acho que se insinua esta tendência. Mas a fala da Professora Marilena Chauí fez com que eu me sentisse impelido a escrever em defesa dos blocs e dos movimentos que tem acontecido no Rio sobre os quais, insisto, vão bem além desse original grupo político.

Se a professora não quer nos prestar solidariedade porque nossos atos não seguem as “leis” que imagina que a história deveria ter, se ela insiste em se apresentar como a guardiã da doutrina espinosista e da doutrina marxista, esta última, aliás, negada pelo historicismo que tem professado, que nos deixe lutar e pensar em paz, isto é, sem medo.
Nem da PM, nem da USP.

Rodrigo Guéron é professor no instituto de artes da UERJ e cineasta.

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