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O preto e a rosa, uma resposta a Rodrigo Savazoni

Por Bruno Cava e Giuseppe Cocco, da UniNômade

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Os ninjas

Depois do auge das manifestações massivas, quando já haviam se difundido, eles apareceram. Paramentados, velozes, bem equipados, os ninjas marcharam, suaram com os manifestantes e, de dentro da correria, transmitiram episódios memoráveis do levante. Boa parte dos streamings do portal webrealidade foi alimentado pela mídia ninja. Ao longo dos dias e noites de tumulto, os ninjas foram perseguidos, presos, censurados, tiveram o material vasculhado, levaram gás, pimenta, borracha.

Num primeiro momento, pelo menos, a mídia ninja parecia exprimir o tipo de narrativa, liberdade e vibração que os protestos precisavam e queriam. O “futuro presente” incubado na imaginação das ruas parecia ganhar rosto, enquanto o público e a popularidade da nova grande ideia bombavam.

Logo depois do boom, veio a notícia que tinham sido contemplados com uma entrevista exclusiva com Eduardo Paes. Havia meses que centenas de milhares de pessoas nas ruas xingavam o prefeito e o governador, afirmando a irrepresentabilidade dos quereres e demandas. Mas, de repente, o canal alternativo realizaria a mais convencional “exclusiva” em nome do movimento. Foi um balde de água fria. Ainda mais quando o grupo fez uma das mais inofensivas abordagens ao governo das remoções, do choque de ordem e da farra imobiliária e financeira. Eduardo Paes deitou e rolou, sem esboço de resistência do outro lado, num inexplicável silenciamento da carga de revolta por todos os lados. O despreparo invocado como desculpa apenas mascara o preparo do aparelhamento pelas costas do movimento.

Nesse mesmo período, ocorriam reuniões periódicas no campus da Praia Vermelha da UFRJ, onde a aceitação midiática dos ninjas ajudava a atrair cerca de duas centenas de pessoas para ouvir o líder do Fora do Eixo (FdE) Pablo Capilé. Para se tornar um ninja era fácil: bastava trazer equipamento próprio, tempo de trabalho e “espírito colaborativo”, que o FdE faria a integração simbólica do material, reunindo e editando. O lance maior estava por vir.

Em 5 de agosto, o mesmo Capilé e o jornalista Bruno Torturra foram entrevistados pelo programa Roda Viva. Convidados para discutir o fenômeno dos ninjas, falaram bastante do Fora do Eixo, opondo o novo à velhas mídia, representatividade e forma de produzir cultura. A essa altura, já se sabia que a mídia ninja era um braço do próprio FdE, uma ideia engendrada como ponta-de-lança para a sua penetração nos movimentos de ocupação e protesto. O que poderia parecer uma construção desde as bases, produto da ação direta das ruas, se mostrava agora uma ação concatenada de um grupo e um fenômeno de marketing, planejado pela cúpula do coletivo. Para eles, era a grande chance de, finalmente, colar a marca FdE numa agitação de caráter geracional — como já vinham tentando fazer com o ciclo Occupy (2012) e as marchas da liberdade (2011), sem sucesso.

A “nova” representação

Num contexto em que governos e partidos rodopiam como baratas tontas, apressados em rotular a ebulição das ruas, ansiosos por identificar líderes e interlocutores a fim de entender o levante e tentar passar por ele da melhor maneira possível; o FdE só podia estar no lugar e na hora certa. Dirigentes do PT identificaram um protagonista que talvez pudesse tirá-los da desorientação política. Nesse momento, foram vistos como aqueles que poderiam ajudar a pacificar o levante, tornando-o inteligível e, sobretudo, controlável.

A manobra é sintomática de como se tentam reconstruir estruturas e mediações abaladas pela emergência do poder constituinte, quando um governo, nos últimos tempos, vem se distanciando temerariamente das bases materiais, da composição social que é seu próprio fundamento democrático. E denota como o FdE identificou uma oportunidade para ampliar o seu modelo de negócio, colocando-se novamente no papel de atravessador entre o estado e a multidão, entre a força constituinte e a sua captação pela máquina representativa. Organizado explicitamente como um lobby (por um período, chamado Partido da Cultura), o FdE atuou indistintamente em gabinetes, partidos e empresas, vendendo em franco trabalho de publicidade o seu produto: a “integração simbólica” de um longo arco de desejos, produções e interesses — do que seria a “nova geração” da cultura, a juventude antenada e sua “vida alternativa”.

Em cada caso, e agora nas manifestações, a pergunta se impõe: está hackeando o estado/mercado, em favor do movimento? Ou está hackeando o movimento, em favor do estado/mercado? Qual a elasticidade dessa zona cinzenta, onde está traçado o limite? A resposta só pode ser pesquisada na prática, por quem vive as “parcerias”, acordos de gabinete e conexões com o grupo.

A esse respeito, nas últimas semanas, a prática do FdE foi colocada numa lupa por uma sucessão impressionante e inédita de relatos em primeira pessoa. Uma verdadeira lavagem das escadarias do Bonfim, falando das técnicas de organização às condições de trabalho dos integrantes do FdE, das relações com grupos político-partidários e lobistas, até às parcerias, negócios e “camaradagens” na base produtiva.

Sectarismo

Até pouco tempo, as críticas dirigidas ao modelo do FdE eram descartadas como despidas de implicação nos processos, frias demais. Seria preciso visitar as casas, repetiam. Agora, o problema é que as críticas estão implicadas demais. No calor da vivência, as pessoas não conseguiriam descrever objetivamente o que se passa nas casas. E se saíram delas, agora estão rancorosas, e as críticas só podem ser rancorosas (e não que saíram das casas porque têm críticas). Além disso, é explicado que algumas (muitas) pessoas não estariam preparadas para a radicalidade da proposta do FdE, e acabam tendo uma “experiência pessoal ruim”… apenas isso.

A tempestade de relatos que se seguiu ao texto pára-raio de Beatriz Seigner impressionou não só pela quantidade, mas pela qualidade narrativa e analítica de como funcionam as práticas do FdE. Por um lado, os depoimentos vindos de pontos de vistas e lugares os mais diversos convergem na descrição de um fenômeno que parecia se sustentar sobre um pacto de silêncio. Tá junto, tá junto, ou seja, as críticas deveriam ser trazidas para dentro. Mas dentro, — no interior de toda a maquinaria discursiva do novo, colaborativo ou horizontal, — vigora um impermeável sistema de autoridade baseado no “lastro”, que nada mais é do que a verticalíssima antiguidade e o prestígio homologado por uma cúpula. Os relatos dão conta de um medo difuso de opor-se aos lastreados, que se sustenta na própria vontade de pertencimento ao coletivo. O coletivismo, assim, se fecha numa cultura do pertencimento, o oposto do comum, que é a coexistência de singularidades num espaço aberto de partilha: aberto inclusive além do coletivo. Na cultura do pertencimento relatada, quando um membro se sente inadequado ao sistema, é levado por toda uma moral coletivista a achar que é ela quem está falhando. Quando o FdE usa da tática de “choque pesadelo”, aplica sobre essas párias a culpa de não se enquadrar na lógica coletivista, num mecanismo de autodefesa que não está distante das piores (e velhas) práticas de uma esquerda sectária, e pronta a defenestrar moralmente os dissidentes. É irônico, agora, que quando esse funcionamento identitário e moralista é exposto, quem vem defender o FdE são justamente aparelhos político-representativos mais analógicos, com declarações “estratégicas” de apoio.

Mas não é caso aqui de repisar cada uma dessas críticas e depoimentos.

O comum e a exploração

Em fevereiro de 2012, a rede Universidade Nômade publicou “O comum e a exploração 2.0“, um texto de caráter teórico, com uma análise do funcionamento do capitalismo cognitivo. Tomando o FdE como estudo de caso, o texto desenvolve como a situação de precariedade empurra os trabalhadores da cultura a aceitar condições quaisquer, envolvendo-se em sucessivos bicos, frilas, contratos de risco e mesmo de pura “camaradagem”. As pessoas são constrangidas a trabalhar em condições desfavoráveis, o que leva à concentração de valor nos grupos enraizados no mercado e no estado. Mas é uma situação paradoxal. A precariedade contrasta com o fato de a cultura passar a ocupar um lugar privilegiado na produção de valor (social, econômico, político). Qualquer empresa hoje sabe como os setores de marketing, publicidade, branding, patrimônio intelectual são vitais, bem como a importância de renovar os profissionais e consultores com as últimas tecnologias sociais. Contudo, ao mesmo tempo em que a produção de imagens, marcas e conteúdos se destaca nos circuitos de valorização, os envolvidos no processo são alijados não só da lucratividade decorrente de sua atividade, como da participação nas instâncias de decisão, onde se formulam as políticas e se dirigem os investimentos. O paradoxo consiste em que a cooperação que produz os valores (as redes de compartilhamento transversal, o arquivo geral da experiência das culturas, numa palavra: o comum) não depende mais das grandes empresas e produtoras, nem mesmo do estado como centralizador, uma vez que já existem ferramentas, espaços colaborativos e redes ativas para que suceda uma intensa produtividade geral e disseminada. É como se a própria lógica da produção de sentidos, valores e afetos ganhasse autonomia em relação aos patrões e burocratas.

Nesse cenário, compete a um governo democrático, portanto, incentivar as condições que já estão presentes nos territórios produtivos e redes autônomas, valorizando-os como núcleos de trabalho/cultura viva, sem integrá-los segundo esquemas “desde o alto”. Essa virada democratizante aconteceu no ministério de Gilberto Gil, durante o governo Lula, com alguns programas tais como o Cultura Viva (Pontos de Cultura, Ação Griô, editais mais abertos etc), sofrendo um refluxo nos últimos anos com Dilma. Um dos maiores rendimentos dessas políticas consiste em mitigar a situação de precariedade, que empurra os produtores ao mercado tradicional da cultura, favorecendo a auto-organização e autovalorização. Essas políticas conduzem a um ciclo virtuoso em que a maior autonomia liberta as energias criativas da necessidade de adaptar-se às exigências de lucratividade e subordinação. Obviamente, a dinâmica autônoma não interessa a quem traduz “sustentabilidade” pela capacidade de produzir valor para o mercado e subserviência aos acordos de gabinete.

Como desdobrado naquele texto, o modelo do FdE caminha na contramão dos Pontos de Cultura. Embora constitua uma estratégia de branding do FdE colar com os PdC, segundo a integração simbólica da “rede de redes”, é uma lógica de funcionamento completamente incompatível. O FdE e seus teóricos orgânicos fazem a crítica do capitalismo cognitivo com o sinal trocado. Em vez de reconhecer a virada cognitiva da economia política a fim de criticar o capital, reencontrando-o em novos circuitos de valorização e exploração, resolvem saudar a virada por si mesma, como se o capitalismo cognitivo fosse uma evolução da era industrial e, assim, melhor. Terminam, deste modo, elogiando o novo capitalismo e suas tecnologias, depurando do discurso das redes, das novas formas de cooperação (o comum) e do digital todo e qualquer conteúdo antagonista ao próprio capitalismo. A riqueza das redes se torna, em consequência, um bem em si mesmo, numa reedição inesperada do mais conservador liberalismo econômico.

Não admiram os pares macetados do regime discursivo do “campo FdE”: velho x novo, 1.0 x 2.0, rancor x pós-rancor, digital x analógico (ver, a esse respeito, “Não existe amor no Brasil Maior“). Ora, o novo em si mesmo não garante nada. O novo é apenas um novo terreno de luta, novas coordenadas e problemas para um conflito que continua. Por isso, é pouco ou nada contrapor a nova mídia à velha mídia, como insistido na entrevista encomendada. Aliás, a “velha mídia” também está renovada. Do contrário, não teria sobrevivido às transformações do regime comunicacional nas últimas décadas. Se a Rede Globo, a revista Veja ou a BAND News FM ainda existem, é porque conseguiram reestruturar-se diante dos novos cenários. Da mesma maneira, aconteceu com a indústria fonográfica, Hollywood e o showbiz em geral, nada desplugados das “revoluções” do mercado, suas ameaças e oportunidades. O clima de fim de feira rapidamente é substituído por uma nova febre de grandes e lucrativos negócios, em ondas mercadológicas sucessivas.

O raciocínio vale, ainda, para as estruturas e mediações da democracia representativa. O surgimento de outras formas de cooperar, mobilizar e organizar não passa despercebido pelo bloco de poder, que sobredetermina o espaço público e privado do país. O primeiro momento de um levante constitucional certamente é de perplexidade e terror por parte dos grupos dominantes, dos donos da cidade. No instante seguinte, porém, já estão correndo atrás do rato para reestruturar-se, deixando pesos mortos pelo caminho e buscando novos arranjos de governabilidade.

O estado na sociedade de controle

Numa entrevista antes da chuvarada de depoimentos que destroçou a lei do silêncio, Rodrigo Savazoni disse que, hoje, o estado foi deixado pra trás, porque “temos coletivos, grupos, jovens trabalhando com ultraconexão, mundial, global”. Formalmente, Savazoni ocupa um cargo político no governo Haddad. Mas consideremos a fala como a de um articulador do FdE (e da Casa da Cultura Digital). Do ponto de vista do conteúdo, depende do que é chamado de estado. Se é o estado clássico, soberano, vestfaliano, sim. Mas foi deixado para trás por outro estado, outra configuração temporal e espacial do poder constituído. Ou melhor: o estado foi deixado para trás pelo controle (ver Deleuze, G. Post scriptum sobre as sociedades de controle).

É que a sociedade de controle não funciona enclausurando e disciplinando os corpos, como numa fábrica, escola ou hospício tradicionais. Essa lógica não é suficientemente produtiva, aparta demais o desejo de tudo aquilo que ele pode. Mais sofisticado, o regime do controlato confere e executa o movimento e a variação, abre as fronteiras, é liberalizante e inclusivo. A lógica consiste em conferir o grau exato de liberdade que possa ser explorada, sem que o processo entre em colapso e os mecanismos de controle sejam contestados. A própria inclusão social no Brasil, onde todos são levados a trabalhar muito e com um peso enorme de cobranças e expectativas (obter sucesso, construir um futuro, ascender, ser feliz), opera segundo esse dispositivo que joga o controle para dentro da subjetividade. Dá-se, assim, um regime de fluxos e não de confinamentos, mais uma mecânica dos fluidos do que um arquitetura. É um gás, diria Deleuze, que vaza por toda parte, e daí a dificuldade em manter essa sociedade flexível e fluida sob controle. O controlato deixa rolar e modula o rolamento, define-lhe polarizações, escalas de valência, convergências, e por isso é bem mais suscetível a instabilidades. Gasosa, a sociedade vaza em fluxos selvagens que, reunidas certas condições contingentes, ganha alta pressão, como o gás lacrimogênio dirigido aos manifestantes mas que pode tornar irrespirável os apartamentos bem decorados do Leblon.

À sociedade de controle, corresponde também um regime comunicacional (seminal a esse respeito, Cléber Lambert em Sobre o controle ou a Nova Express).A internet é um bom exemplo inicial para esse regime. Nela, abunda a comunicação, generalizada e multidirecional, mas bem menos a resistência. Não há maiores entraves para se navegar por onde se quiser, mas é preciso navegar “através de” determinados aplicativos, com itinerários e relés mais ou menos ocultos. A ultraconexão, com efeito, é permitida, promovida, mas controlada. De fato, os conteúdos da internet estão todos conectados entre si, mas cada vez mais através do Google, uma espécie de novo mediador universal. Uma mediação que define prioridades, campos inteiros de percepção (awareness) e imantação de sentido, registrando as passagens e modulando os níveis de acesso. As pessoas também se conectam individualmente entre si, aos bilhões, mas cada vez mais através do Facebook, quase exclusivamente. Este, por sua vez, cultiva um meio ambiente, uma cultura de uso da rede nos marcos em que essa conectividade ocorre (senhas, dados, formatos de convívio).

O capitalismo cognitivo funciona nesse processo. As redes produtivas e colaborativas (não apenas a internet) precisam estar conectadas em extensão e profundidade, é preciso que estejam, mas sem nunca perder o controle sobre as resistências. Conectadas, elas geram um excedente de escala, um mais-rede que supera em muito a produtividade isolada de cada ponto. É preciso todavia controlar a conectividade, conservar parâmetros, impedir que o gás extravase dos circuitos que captam e comandam a pressão. O processo do capital hoje funciona por sínteses conectivas, pela capacidade de definir campos de polarização, acumulação, e assim controlando acessos e senhas, acumulando valor nas mediações, nas integrações de escala. Quanto mais conectados e integrados os mercados, melhor. São mais “livres”, apenas na medida em que explorados em sua liberdade. O free, nesse sentido, tanto favorece a exploração quanto a justifica.

Por isso, ao contrário do que pensa o Rodrigo, a novidade da ultraconexão não garante nada. Não garante e nem é sinal de resistência. Torna-se necessário disputar por dentro da riqueza das redes a capacidade de desestruturar os circuitos de extração de valor, a capacidade de manter as pessoas em regime de precariedade/liberdade exatamente para que trabalhem mais e melhor.  A verdadeira riqueza das redes é o comum, e este é luta contínua, malha de resistências e antagonismo: poder constituinte. Foi esse comum, tão incentivado, inclusive por governos que agora se assustam, que vazou dos confinamentos representativos para afirmar politicamente a sua excedência.

Controle e trabalho

Savazoni ainda afirma – falando da Casa da Cultura Digital – que “o que nós produzimos sempre foi aberto, livre, apropriável, os códigos-fonte disponíveis em sua integralidade.”. Rodrigo realça o caráter distribuído e descentralizado de todos os processos. Novamente, isto significa pouco ou nada se não estiver presente, nessa produção livre e aberta, a capacidade de desestruturar os dispositivos de controle e exploração que passam por dentro das novas formas do comum. A luta está dentro. Também é contra um capitalismo baseado na inclusão num espaço produtivo cuja liberdade é modulada, em função das características e necessidades do controlato. Um capital que inclui a própria exclusão, em diferentes níveis, num gradiente contínuo.

Não adianta se libertar do expediente de trabalho 9-5, se todo o meu tempo de vida é convertido em tempo de trabalho “indireto”, onde apenas finjo estar empreendendo para mim mesmo (ou para o Coletivo).

Isso vale, inclusive, para a mídia ninja. Quando pretende canalizar através de si os múltiplos pontos midialivristas, — “livres” desde que mediados pela integração do FdE, quase como se tivessem sido libertados pelo FdE — reproduz o funcionamento do controlato. Em vez de monopolizar a informação “desde cima”, verticalmente, como fariam os aquários da imprensa; a mídia do controle compõe um sistema livre, veloz, ultraconectado de informação. Nessa composição, nessa modulação de acesso e tráfego, é sequestrada parte da energia e vitalidade da experiência, acumulada em determinada reserva de poder (representativo, político-partidário, lobístico). A multidão de mídias que as manifestações expressam é castrada e canalizada num único branding, e “a” mídia da multidão poderá assim negociar entrevistas exclusivas e rodas mortas. É curioso como Savazoni reconhece a verticalidade (“leninista”) do FdE, chegando a dizer que no mundo ideal eles não existiriam, para depois dizer que são o único mundo possível (provavelmente revelando uma preferência da secretaria municipal que ocupa).

Essa lógica representativa não se aplicaria, ainda, para o próprio FdE como um todo? Ao contrário dos PdC, onde se aposta na imanência das culturas vivas e sua capacidade de auto-organização, na fusão de tempo de trabalho e tempo de vida como autonomia imediata; o FdE tenta fazer passar a rede de coletivos e pontos por uma mediação necessária (seja ela “sustentável”, profissional, social-tecnológica), para filtrar os fluxos cognitivos, a produção cultural viva, com seus protocolos, formatos e circuitos de representação e valorização difusa. Precisa, para isso, apresentar-se por um lado como “movimento social da cultura”, e por outro como agentes privilegiados do poder estatal. A multiplicidade é assim identificada para sofrer “integração simbólica” na mão dos gestores de branding do próprio Fora do Eixo. Essa mediação ao ser capitalizada é, afinal, valor, capital, enquanto condensação do trabalho/cultura viva, que trafega a rede. Com isso, o FdE pode se apresentar como “rede das redes”, o mediador universal de um mercado em mutação, e assim usar desse valor capitalizado para auferir verbas de publicidade e/ou alianças político-partidárias. Em vez de vírus parasitando o estado, como gostaria de ser conhecido, acaba servindo ao estado/mercado de “aplicativo eleitoral” (a sugestão é de Bárbara Szaniecki). O que não deixa de parecer muito atraente num contexto de perplexidade geral do poder constituído, diante da carga selvagem do constituinte.

Savazoni contemporiza as contradições e impasses dos processos do que ele classifica como “novo”, em nome da vida alternativa levada nas casas. Essa vida alternativa é o fundamento último da argumentação. As casas do FdE seriam laboratórios para alternativas de sociedade, mais do que “sociedades alternativas”. A julgar por alguns dos relatos pessoais, em especial de mulheres, essa vivência imersiva estaria mais para gulag pós-moderno, do que para um espaço inovador de libertação do trabalho. Lemos narrativas que falam em regime de internação de fato, com separação disciplinar (e machista) dos sexos e regulação quase monástica das atividades, — o que sugeriria uma situação regressiva em relação até aos mecanismos da sociedade de controle. Uma empresa que seleciona cuidadosamente perfis empreendedores, criativos e descolados para aderir à sua moral integral de trabalho, onde se espera enfaticamente de cada que encarne a própria empresa, seus valores, sua missão, seu caráter visionário. Um leninismo sem Lênin, sem luta de classe.

Mas não queremos marcar pontos fáceis. Savazoni fala do amor e do rosa-choque. Onde está o soviete do século 21? O comum é experiência real e arrebatadora. É uma condição de luta que arrasta a imaginação a recriar-se continuamente, inclusive nas derrotas. O comunismo não é nosso programa mínimo porque dogma. É atualidade da resistência, como uma positividade de amor e pobreza.

Não sejamos demasiado românticos. Viver na contingência do capitalismo significa esfriar necessariamente a existência em algum momento e em algum grau. Este é o grau de nossa servidão voluntária, a medida do conluio entre desejo e lei. O que nos lança no plano da estratégia. Precisamos de um duplo amortecido, um “gêmeo bonzinho” que nos permita continuar lutando e pensando. Como os marranos ibéricos: concediam a liturgia e seus ídolos aos senhores, mas não largavam a práxis de sua religião clandestina. O trabalho não passa de uma alucinação consensual, que a paranoia da sociedade nos inculca nos cérebros. Porque não somos super-homens.  É triste a inevitabilidade do contato com a doxa e suas instâncias de controle, que nenhum discurso redentor ou exclamativo pode eliminar por completo. Daí nenhum profeta anunciando o futuro contra o passado nos convença de que não seja preciso resistir ao presente. Daí o nosso pessimismo alegre. O otimismo, a festa e a alegria não são revolucionários por si. O desejo é que é. A fusão da vida com o comum se dá a quente. O preto não é menos amoroso que a rosa.

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