Por Bruno Cava, sobre a passagem de Michael Hardt no Rio de Janeiro, entre 25 e 29/2
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O professor americano veio ao Rio e deu palestras, participou de oficinas e lançamento de livros, travou conversas, conheceu o OcupaAlemão, visitou o Hotel da Loucura no instituto Nise da Silveira, deu entrevista para o coletivo cultural Norte Comum num trem do subúrbio, participou de assembleia de chão na Cinelândia, citou Lênin e pôs peruca pra pular carnaval. Compartilhou parte de seu trabalho de pesquisa implicada em ocupações, movimentos e lutas pelos EUA, Espanha, Turquia, norte da África. Coautor, com o filósofo Antonio Negri, da trilogia Império (2000), Multidão (2004) e Commonwealth (2009), ele veio falar disso. Para Michael, estamos num ciclo global de lutas. Disparado com as revoluções árabes da virada para 2011, ramificado nas acampadas do 15-M e no Occupy norte-americano, percorreu um longo arco até chegar com força, em 2013, na Turquia e no Brasil.
O ciclo em que estamos tece uma teia de ocupas onde ruas e redes são a mesma coisa: sistema de vasos comunicantes repassando afetos, mídias e um grande desejo de refundar a democracia diretamente, desde suas bases materiais, desde a vida da multidão. Se o ciclo anterior, aquele altermundista de Seattle (1999), Gênova (2001), dos Dias de Ação Global (2003-04) e dos Fóruns Sociais Mundiais (2001- ), pautava-se pelo conceito de que outro mundo era possível além do capitalismo globalizado; este, de Tahrir à Gezi Park, da Puerta del Sol à Batalha da Alerj, problematiza a democracia representativa como um todo, para exigir sua reinvenção aqui e agora, para fabricar uma democracia real já. Uma democracia que tem pressa, e que não se perde em intermináveis deliberações, adotando a ocupação efetiva, fincando pé nos territórios para relacionar-se com as dinâmicas vivas da cidade, suas resistências, seus grumos de auto-organização e colaboração espalhados pelos bairros, nós de encontro e culturas de resistência.
Não se trata mais de um movimento de militantes ou especialistas formulando alternativas viáveis para um mundo em estado de desintegração. É um movimento de singularidades, uma composição radicalmente heterogênea onde muda o conceito de política, democracia, militância: não necessariamente o “novo”, mas uma nova disposição para viver junto e relacionar-se na alegria da ação coletiva, da política que atravessa os corpos. As coordenadas e circunstâncias deste novo problema, o de recriar a democracia a partir da realidade vívida da cidade, e resistir nesse processo certamente antagônico, de fato podem ser colocadas de muitos modos.
Michael prefere adotar a linha da produção do comum. O comum é um conceito-chave, e muito prático em termos de ação e organização, para escapar das eternas armadilhas entre público e privado. Entre a propriedade do estado e das empresas — propriedade todavia. O comum é uma segunda via à alternativa insuficiente e muitas vezes inexistente entre um e outro. Como o próprio Michael explicou num texto já clássico, o público está para o estado e o socialismo como o privado está para o mercado e o capitalismo, coisa qualitativamente diversa é o comum, que está para a construção de relações sociais e instituições sem a mediação do estado ou do capital, um commonismo ou comunismo sem estado. O comum não é nenhum estado primordial antes da apropriação privada ou estatal dos bens, não é sequer um conjunto de bens, nada a defender!, — o comum é, sim, uma produção, condição e resultado da cooperação que, graças à própria força e insistência na autonomia de seus processos, consegue destacar-se das estruturas e mediações estatais-capitalistas para viver vida livre, potenciando a todos no conjunto e a cada um, nas suas diferenças e singularidades. O comum é, portanto, o terreno de uma luta democrática não como deliberação, procedimento ou distribuição de bens e poderes, mas como produção. É material e materializador. É o que pode propiciar, se puder afirmar-se e resistir, o desenvolvimento pleno das capacidades, o que desbloqueia as forças produtivas da experiência com intensidade afetiva, potência gerativa e multiplicação de relações e transformações — tudo isso que atrai tanta gente para o ciclo de lutas em suas mil manifestações, mais ou menos quentes. O atual ciclo global de lutas definitivamente não se coloca no terreno de uma disputa pelo estado ou pelo mercado, não almeja por socialismo nem por um capitalismo melhor, mais humano e menos corrupto. É, sim, a aposta radical noutra maneira de organizar as relações e efetuar as potencialidades: o comum, a produção do comum.
Este êxodo em relação ao estado e às demais estruturas e mediações do capitalismo contemporâneo não significa, no entanto, incorrer no vício do espontaneísmo. Se, por um lado, sucede uma rejeição qualificada das instâncias representativas — e aqui podemos incluir não só governos, partidos, sindicatos, como também a forma-empresa, o mercado mundial e a “opinião pública” representada pela mídia corporativa —, isto não significa, por outro lado, cair no erro simétrico, que seria uma espécie de movimentismo sem foco em construir instituições e dar consistência às alternativas. Nem a criação de um partido ainda que de novo tipo, nem processismo! Nem Zizek, nem Graeber!
Michael diz que o problema, ainda outra vez, consiste em organização, muita organização. É preciso concentrar-se nas tarefas da organização para continuar construindo todas as instituições que precisamos para o movimento se generalizar e ser efetivo, durável, capaz: de decisão, de mídia e comunicação, capacidades políticas e jurídicas plenas, culturais e artísticas etc. Noutras palavras, o comum precisa de institucionalidades, embora bem diferentes daquelas da forma-estado ocidental. Instituições do comum. Estas estão matizadas por duas qualidades: gestão democrática e acesso livre aos espaços, com ação afirmativa em prol de minorias e grupos vulnerabilizados, uma vez que a horizontalidade é sempre linha de chegada e não ponto de partida. Isso depende também de algum tipo de liderança, liderança distribuída sem líderes, que produza os “efeitos da liderança”.
Finalmente, citando por alto um novo work in progress com Negri (um quarto livro?), Michael explica que o grande desafio dos movimentos no ciclo de lutas hoje é conseguir atuar também no nível estratégico. É preciso avançar para além do nível tático e engendrar ações de maior prazo, mais estruturantes, mais ancoradas local e globalmente, para disputar mais eficazmente com grandes aglomerados histórico-políticos de acúmulo de poder, exploração e desigualdade. Porque os partidos, tradicionais detentores da expertise estratégica, no atual contexto, se limitam a agir taticamente. Ou agem quase no susto, reagindo às crises, estados de necessidade econômica, comoções e efemérides eleitorais; ou foram completamente aparelhados por grandes players empresariais e financeiros — ou ambos os casos em distintas proporções.
Não existe mais partido de esquerda algum com a capacidade de elaborar estratégias, senão nalguma ilusão programática que, no fundo, não passa da gestão mais ou menos eficiente dos negócios estatais, aliada a muito marketing e uma obsessão com o planejamento eleitoral. É porque a forma de produzir e cooperar mudou, que essas formas não funcionam, e não por razões morais, por alguma traição ou falta de vontade política. A representação degringolou nos últimos anos numa escolha anódina entre melhores gestores a serviço do capital: os mais à esquerda dão alguns passinhos para o lado do estado, os outros para o mercado, mas o fato é que a distância entre esses dois polos da democracia representativa está cada vez menor, — quando não insignificante, sob a perspectiva do comum. Coisa bem diferente dessa dialética pode ser organizada e construída a partir dos movimentos do comum, quando se concatenam para pensar e agir estrategicamente.
Michael está otimista e está alegre, mas tem pressa. A revolta não dorme nunca.