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Nomadizar, constituir, fazer multidão

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Editorial – UniNômade

Findos os anos da retórica neoliberal, o “retorno do estado” vem acompanhado da expansão e aprofundamento do capitalismo no Brasil. A hora seria de grandes oportunidades para o país. O desenvolvimento é perpassado por uma vontade geral de modernização, cuja marcha para o futuro imporia a erradicação dos resíduos de subdesenvolvimento. A modernização do estado e da sociedade é situada como o maior desafio do governo, contra o patrimonialismo, a corrupção e a ineficiência. O ‘timing’ brasileiro, na contratendência da crise, significaria aproveitar o robusto mercado interno para pavimentar o caminho em direção ao primeiro mundo. Nesse contexto, o que significaria ser brasileiro? Colocar-se à altura dos tempos e se preparar com as novas qualidades de flexibilidade, inovação e empreendedorismo, demandadas por um “mercado sempre em mutação” e seus novos modelos de negócio e crédito.

O governo Dilma promove uma renovação do desenvolvimentismo, com viés francamente de fechamento. O discurso centrado na gestão prioriza critérios técnicos de eficiência, quantificando-se o crescimento mediante métricas e índices dados pelo mercado mundial. É a vitória da econometria sobre a democracia. Se, antes, no neoliberalismo, lutava-se contra o Consenso de Washington, agora esse Consenso parece nacionalizado segundo uma lógica desenvolvimentista que supervaloriza a economia (de capitais) em detrimento da política democrática.  O fechamento se manifesta, por exemplo, na neutralização da relação entre governo e lutas sociais, no bloqueio das pautas das minorias ou no reforço das políticas de “pacificação”. Isso quando não se omite abertamente, quando de violentos ataques policiais contra ocupações e movimentos, como nos casos de Pinheirinho e Aldeia Maracanã. As medidas de “pacificação”, sob o guarda-chuva dos megaeventos de década, caracterizam-se por um conjunto de processos de gentrificação, militarização de territórios, recolhimentos compulsórios e “tratamento de choque” contra pobres. A paz do estado, isto é, paz do medo, serve perfeitamente ao avanço dos novos mercados, negócios e oportunidades, formais e informais, que sempre dependem do controle social e do trabalho subordinado. Nesse aspecto, o governo Dilma tem se mostrado madrasta, deixando um rastro de descontentes e deserdados, na sem-cerimônia de seu discurso vertical, cego para a alteridade.

O que não se pode deixar de reconhecer, no entanto, é que o “fortalecimento do mercado interno” é outro nome para a enorme mobilização produtiva dos pobres. É uma de suas faces. A mobilização vem ocorrendo desde o primeiro governo Lula, em parte sustentada pela massificação das políticas sociais, o aumento sucessivo do salário mínimo e a abertura de microcrédito. O paradoxo do desenvolvimento está nesse outro lado, que traz a alegria de viver melhor, de produzir e ingressar nos circuitos de criação do próprio mundo. Não se trata, assim, de um fortalecimento apenas do “mercado”. O acesso a renda e consumo não só acelerou o capitalismo no Brasil, como também espessou elementos de autonomia, “dentro e contra” o mundo de trabalho, “dentro e contra” as tentativas de forjar um brasileiro talhado para o mercado do século 21.

A dinamização se deu, sobremaneira, graças a essa qualificação “desde baixo”, na cauda longa de arranjos produtivos e formas de auto-organização produtiva. Aumentaram os lucros do capital, sem dúvida, mas aumentaram também as capacidades políticas daqueles que produzem. A maior produtividade não é inteiramente capturada pelo mercado de trabalho e consumo, significando melhores condições para demandar, construir e propor alternativas, lutar, reapropriar espaços e recriar a vida. Dentro do “viver melhor”, que milhões de pessoas experimentam nos últimos anos, existe um querer que é expansivo e se autovaloriza no processo.

Analisar a partir do duplo rendimento do desenvolvimento capitalista — sua crise intrínseca, suas tensões e incandescências — é o primeiro passo para evitar diagnósticos catastrofistas. As teorias afetadas do tom apocalíptico costumam jogar a toalha, sem previsão de resistência significativa. Opondo uma cosmovisão privada contra o “entusiasmo das massas”, refugiando-se em especulações bizantinas ou vereditos inapeláveis, na construção de utopias sem premência. O diagnóstico do fracasso não passa do fracasso do diagnóstico. Frequentemente, por trás de sofisticadas radicalidades teóricas se camufla o velho estigma de classe, que rapidamente converge para generalizações sentenciosas: o pobre é conservador, o evangélico é homofóbico, o brasileiro não tem educação…

Outra posição ambígua e tendencialmente conservadora consiste em simplesmente elogiar a nova fase da acumulação capitalista, festejando a maior cognitivização e mobilização do trabalho. Esta vertente aparece em diagnósticos poliânicos sobre as novas mídias e tecnologias sociais de rede. Nela, aponta-se a necessidade de as lutas, os pobres e a esquerda darem um “upgrade” em suas concepções, deixando para trás dualidades baseadas em classe, raça ou gênero, para opor a cultura 2.0 ao anacronismo. O fato, porém, é que não há capital bom: esse trabalho cognitivo ainda é trabalho explorado, e o patrão ainda subsiste, ainda que escamoteado. Esse escamoteamento por vezes ganha contornos sectários. É curioso como, na esteira do crescimento, por um lado, emergentes igrejas se apropriam dos novos modelos de negócios e ingressam em circuitos de valorização (e organização política); por outro, os novos modelos de negócios aprendem com as igrejas como prescrever a subjetividade dos integrantes, tudo para convertê-los para a “moral integral” que as suas práticas exigem diariamente.

Além desses erros “a mais” ou “a menos”, a urgência das lutas continua impelindo outra “história” por dentro da narrativa oficial. Na última década, adensaram importantes lutas no Brasil e na América do Sul: operários, estudantes, índios, sem terras, negros, mulheres. As minorias dão corpo às lutas e transformações. É preciso situar-se nesse corpo, uma força vivente e contra-habitual. Contudo, sem um trabalho sustentado de auto-organização, as forças vivas tendem a continuar dispersas, incapazes de radicalizar a crise no coração do avanço modernizador capitalista. A ilusão do capitalismo no Brasil não ruirá por si só. Só a luta ensina, nas suas perplexidades e impasses. É preciso estar na zona incerta entre o fechamento, que o poder constituído realiza à base de consensos econômicos e ordem policial, amparados por um renovado compromisso histórico de esquerda e direita desenvolvimentistas; e a abertura constituinte dos movimentos, que recria na práxis os próprios conceitos de esquerda, lutas e política.

Obviamente, ninguém nutre a esperança de tirar as respostas de um poço mágico. As perguntas só podem ser colocadas radicando-se na constituição política do presente, no que de vivo pulsa e extrapola os discursos do poder. Está em jogo a elaboração de territórios produtivos antes inacessíveis. As respostas são apostas contínuas. É uma tarefa de copesquisa, diretamente implicada em estratégias de auto-organização, transversal, difusamente criativa. Dessa sintonia, se pode e se faz a construção de noções comuns. Elas nos dão acesso à alteridade e podem deslocar o nosso amor, levar-nos a explorar novos territórios afetivos. Produzir o comum é uma ciência do amor.

Uma amorosa ciência nômade, enfim, não prescinde da variação permanente de rotas, da capacidade de confluir sínteses precárias, arrastadas na contingência e na conjuntura. Ousar trilhar as zonas inóspitas, contornando axiomas e teorias congeladas pelo pessimismo ou pelo otimismo excessivos. Não só fazer pesquisa de dentro da multidão, mas fazer multidão, cortar os campos sem fim de seus sonhos e sonhar com ela.

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