Por Cornelia Koppetsch inicialmente publicado no jornal semanal Der Freitag.
Tradução de Astrid Kusser para Uninômade/Brasil, em 11 de outubro de 2017
A cada vez que Angela Merkel aparecia em um evento da campanha para as eleições do parlamento, sua fala era interrompida por gritos e vaias. Membros do partido AfD (Alternativa para Alemanha) e outros grupos organizavam essas manifestações. Dessa forma os manifestantes organizaram sua própria mobilização em torno da campanha do atual governo como modo de atrair atenção. Agora, pela primeira teremos um partido no parlamento que fica à direita de CDU (União Democrática Cristã, o partido de Angela Merkel que governa o país desde 2005, nota da trad.) e CSU (União Democrática Social). Mas o que realmente sabemos sobre os motivos e razões desse tipo de protesto? O que sabemos sobre a sensação de impotência e as causas do ódio aos imigrantes e refugiados? Enquanto muitos reagem ao resultado das eleições com medo porque interpretam o resultado como uma recaída na barbárie do fascismo e explicam a virada à direita do campo político como emergência de extremismo, outros – como a filosofa norte-americana Nancy Fraser – vêem na ascendência de partidos populistas de direita um primeiro signo do fim próximo da supremacia do neoliberalismo [progressista¹]. Resta, todavia, a dúvida: por que os manifestantes protestam contra imigrados, refugiados e o Islã, e não contra as relações de exploração no capitalismo? Por que não se juntam aos partidos de esquerda?
A condescendência nas mídias
Por muito tempo, a Alemanha ocidental – mesmo após a reunificação – parecia imune ao avanço de partidos populistas da direita. Parecia um resultado da relativa prosperidade econômica ou também do debate intenso sobre o legado nazista e dos esforços de conhecimento da própria historia. Muitas pessoas então ficaram surpresas com o sucesso do AfD, sobretudo porque esperavam que também nos outros países europeus tudo isso permaneceria como um fenômeno transitório destinado a logo desaparecer. Pelo menos desde a eleição de Donald Trump para presidente dos Estados Unidos, em novembro de 2016, essa visão não tem mais plausibilidade. A Alemanha estava apenas defasada com relação a um processo que em outros países ocidentais já está mais avançado. É provável que o AfD tenha chegado para ficar, e isso na medida em que a crise do Euro continua, a dívida imensa dos países do Sul da União Européia está se tornando cada vez mais explícita e a pressão por parte dos migrantes que querem entrar no território da União Européia permanece. Desde os anos 1980, em quase todos os países europeus, o voto para partidos populistas da direita aumentou de 5,1% a 13,2 %.
Inicialmente, depois do crescimento fulminante do AfD e da eleição de Trump nos Estados Unidos, a mídia e a opinião pública reagiram com prognósticos apocalípticos. Passada a primeira hora, entretanto, já podemos ver um tom mais condescendente, revelando, assim, o que parece ser um tipo de estratégia para lidar com o medo e a ameaça que esses avanços da direita constituem. Quem ler as colunas de opinião na imprensa terá a impressão de que os apoiadores desse novo partido e aqueles que se manifestam com eles nas ruas são apenas crianças mal criadas e torturadas por medos e sensações de impotência irracionais, que eles estão se sentindo desfavorecidos por qualquer coisa, como uma falta de otimismo ou um descontentamento que se manifesta como uma espécie de pirraça. Assim, esses comentários não só negam a parte de responsabilidade que a mídia tem com o sucesso do populismo², ao mesmo tempo em que se desresponsabilizam quando tentam localizar o problema, realizando um procedimento da antropologia de Edward Said conhecido como “othering”. Enfatizam a si mesmos e à sua imagem social quando classificam as atitudes populistas e da direita como estranhas. Esse procedimento produz uma distinção nítida e coloca uma distância confortável entre mídia e populistas de direita, como se o problema desses últimos fosse moral, meramente falta de caráter. Contudo para aqueles que realmente querem entender melhor porque o Islã, a política de refugiados e imigração se tornaram temas chave no presente e, ainda, como foram possíveis as mobilizações dos partidos populistas de direita por toda parte na Europa, é preciso dar um passo atrás e questionar sua própria posição social, tomando consciência de sua própria perspectiva.
Desigualdade das chances
A razão pela qual os leitores esclarecidos e as elites liberais não se irritam com a presença dos migrantes é muito simples: eles não os percebem como competidores de bens desejados, de posições de poder social, de emprego, de lugares de moradia, de acesso a benefícios sociais ou apoio do Estado. Isso fica muito claro nos grandes centros urbanos, onde houve muito apoio para os refugiados por parte da população que, contudo, não tem muito contato com eles. Em bairros como Prenzlauer Berg ou Kreuzberg em Berlim moram hoje pessoas de renda mais alta, com estilos de vida sofisticados e isso através de mecanismos de exclusão invisíveis, mas muito efetivos. Essa vida cotidiana não produz o mesmo receio em relação aos refugiados. Há muitos migrantes nesse mundo, mas eles o habitam como garçons, vendedores, seguranças, entregadores, em suma, trabalhadores pouco qualificados – ou como refugiados que precisam de ajuda. Desde essa posição privilegiada muitos também não percebem que os conflitos sociais se transformaram significativamente desde os anos 1970 e não aparecem mais sob a forma de conflitos relativos a desigualdade social e a alocação de bens.
Nessa perspectiva, não surpreende que estamos lidando com o tema dos refugiados. Ele é um ponto de cristalização de uma nova configuração social do conflito. Enquanto na segunda metade do século XX, o conflito político ainda girava em torno da demanda de distribuição da riqueza produzida no território nacional de uma forma mais justa e do combate às desigualdades de chances para as diferentes classes sociais, hoje – no início do século XXI – temos que lidar agora com a questão mais profunda, sobre quais conjuntos de identidades podem ou devem ser representados no espaço político do Estado nacional. É uma questão urgente porque a produção de valor, as trocas mercantis e a redistribuição de riqueza no Estado de bem-estar social fazem agora parte de cadeias de produção de valor transnacionais e independentes do funcionamento social do Estado nacional. Essas cadeias de produção separam o mundo em zonas globais, nacionais e locais. Isso foi possível através dessas cadeias de produção e distribuição, mas também através da implementação de novas tecnologias de comunicação. A questão de classe, hoje em dia, se decide então na questão sobre qual zona se habita e assim se formam novas classes sociais transnacionais. Não se trata mais somente de migração em si, mas do fato que no espaço social de um mesmo Estado nacional existem diferentes condições transnacionais.
O transnacional desde baixo
Os trabalhadores assalariados bem qualificados da classe média alta formam o “andar de cima” transnacional. Eles têm capital cultural aplicável em situações transnacionais, educação e qualificações valorizadas em diferentes contextos internacionais, ficando apenas ligeiramente ligados ao espaço nacional, econômico e social da sua origem e isso na medida em que as conexões transnacionais entre as metrópoles globais estão aumentando. O que decide sobre a condição deles é determinado não só no próprio país. Uma consultora de gestão em Frankfurt, um bancário financista em Londres e uma arquiteta em Taiwan vivem no mesmo espaço de trânsito e transação, mesmo se nunca se encontram ou nunca saiam de seu próprio país. Muitas vezes, esses especialistas transnacionais, que se concentram sobretudo nas áreas de consultoria, finanças e na indústria cultural, compartilham uma identidade profissional e um estilo de vida cosmopolita. Isso é também resultado de uma convergência de estilos de vida nas metrópoles globais que hoje tem infra-estruturas e culturas de consumo muito parecidas, como mostrou a socióloga Saskia Sassen. Alem disso, entre esses territórios geograficamente distantes há uma forte interligação através da internet. Assim, num futuro próximo, esses estilos de vida vão se aproximar ainda mais. O sentimento de pertencimento da classe média alta e cosmopolita à nação de origem vai enfraquecer tanto que vão aumentar essas interligações entre as cidades globais.
Do outro lado, simultaneamente, está surgindo uma outra classe, o “andar de baixo” transnacional. Aqui se encontram os assalariados que ganham pouco, vindos de diferentes regiões do mundo, ou seja: os desqualificados locais e os migrantes do segundo e do terceiro mundo. Juntos, eles formam um novo proletariado transnacional de serviços. Para os trabalhadores locais, isso tem efeitos negativos imediatos porque seus salários vão ficar ainda mais baixos. Mesmo tendo todos os direitos políticos de “cidadãos”, a escada rolante social do regime anterior não funciona mais para os que agora passam a ganhar seus salários num espaço econômico transnacional. Dois processos complementares alimentam essa emergência do “andar de abaixo” transnacional: a fuga das indústrias para países com salários mais baixos e a imigração de trabalhadores de países mais pobres, que depois vão oferecer seu trabalho por valores mais baixos. Uma cuidadora de idosos da Polônia, um segurança de Sri Lanka e uma empregada mexicana competem com os trabalhadores locais.
O declínio da classe média
Entre o andar de cima transnacional das elites e da classe média alta e o andar de baixo transnacional há uma classe média ainda integrada fortemente num espaço econômico e social nacional, cujo nível de bem-estar depende em grande parte das instituições estatais e cujo pertencimento a um Estado forte de bem-estar nacional representa um privilégio considerável. É essa parte da população, porém, que está perdendo influência sobre o futuro do país. São cada vez menos organizações como sindicatos, associações profissionais ou partidos que determinam chances de vida e alocação de recursos, mas interdependências econômicas globais, organizações transnacionais e estruturas de governança supranacionais. Porém, quando se fala de classe média no debate público e na mídia, geralmente essas linhas de conflitos ficam invisíveis. Há algum tempo que o Estado nacional não se constitui mais como espaço através do qual essa classe média consegue ver representados os seus interesses através de grandes partidos e sindicatos. Dentro da classe média há várias frações que se dividem seguindo os níveis de integração econômica em classes regionais, nacionais e transnacionais. A linha de separação entre regiões metropolitanas crescentes e regiões periféricas decrescentes também muda a estrutura de desigualdade quando infra-estruturas sociais estão sendo desmontadas e a vida das pessoas fica mais limitada.
A lógica profunda dos partidos populistas da direita consiste na promessa de resgatar uma simbiose perdida entre classe média (o povo) e Estado nacional. Fazem isso quando estabelecem uma nova linha de conflito: entre os habitantes de longa data e os imigrantes; entre cultura da maioria e aqueles que querem se separar; entre cidadãos cosmopolitas e suas províncias. Na medida em que os sindicatos perdem membros, os partidos populistas de direita mudam o quadro do conflito político: quem deve então fazer parte da sociedade? Por isso os privilégios e efeitos protetores dos Estados fortes do Ocidente estão no centro da mobilização populista. E isso não é de modo algum irracional, considerando o fato de que para a maioria dos cidadãos dos países em desenvolvimento a migração é o caminho mais realista para uma vida melhor, e não a educação, a progressão profissional ou a dedicação individual. Outro aspecto importante: O AfD e outros partidos de direita conseguem constituir um sujeito político viável quando se referem ao “povo” e assim conseguem se distinguir da lógica individualista, pós-democrática e neoliberal de outros partidos. Diferentemente da esquerda que perdeu seu sujeito político original, a classe trabalhadora, os partidos da direita revitalizam uma idéia de coletividade comunitária contra a tendência da individualização e da falta de solidariedade na sociedade. Isso não significa que essa construção seja racional. Muito pelo contrário, sabemos que os migrantes contribuem mais com o Estado de bem-estar social do que eles recebem em serviços e recursos sociais do Estado.
Homogeneidade cultural
Em parte isso tem a ver com o fato que os imigrantes são mais jovens que a população em geral. Muitas pessoas tem uma visão torta do processo de migração e dos migrantes por que uma parte dos migrantes fica muito visível em alguns espaços urbanos, destacando-se através da cor da sua pele, pelo estilo de roupas, os jeitos de falar ou seu comportamento cultural. O estereótipo do imigrante sanguessuga é falso, mas temos que lembrar que na época da instalação do Estado de bem-estar social na Alemanha e em outros países europeus se imaginava uma população etnicamente e culturalmente homogênea. De acordo com a visão daquela época, a homogeneidade cultural ia proteger a solidariedade entre segmentos diferentes da sociedade, uma certa confiança na justiça do Estado de bem-estar social – que também foi chamado justiça entre as gerações – e junto com isso a aderência a normas sociais e assim uma proteção contra fraude no sistema. Ou seja: os que se opõem hoje globalização, imigração e refugiados têm a visão que não só o seu estilo de vida, mas também o funcionamento do Estado de bem-estar social em si está sendo ameaçado. Essa percepção parece ainda mais justificada depois da experiência dos inúmeros ataques a esse sistema nos últimos anos – as cortes no sistema de saúde público e na educação pública, os custos altos para serviços públicos, infra-estruturas dilapidadas, aumento da idade de aposentadoria, flexibilização do mercado de trabalho. Esses são todos ataques à classe média, beneficiária principal desses serviços.
Resultado: os refugiados não são a causa, mas o símbolo de uma nova configuração de conflitos sociais no século XXI, caracterizada por desigualdades transnacionais e conflitos globais sobre o bem-estar.
Tradução de Astrid Kusser para Rede Universidade Nômade.
Notas:
- N. da T.
- A mídia deu bastante espaço para suas pautas e acusou reiteradamente os outros partidos de fazerem uma “campanha chata”, como se a política fosse uma espécie de entretenimento. N. da T.