(Managua – Nicaragua e Santiago – Chile – nas fotos)
Por Silvio Pedrosa
Uma questão crucial a ser levantada pelo levante chileno das últimas semanas é bastante familiar para nós, brasileiros, e tem a ver menos com os problemas objetivos da sociedade e da economia do país (como seu sistema previdenciário e de proteção social, problemas tão evidentes que mesmo órgãos internacionais como o FMI os reconhecem) do que com a percepção, a subjetividade desses problemas e de outros. Porque, por mais que seja tentador seguir as cartilhas, a situação chilena é complexa. Um país redemocratizado há décadas, que puniu agentes da ditadura e que apresenta uma alternância de poder entre direita e esquerda sem maiores crises políticas.
Assim, se no Brasil o quê de mais concreto e evidente restou da ditadura foi o controle militar sobre a sociedade, no Chile, o modelo econômico nunca parece ter sido posto em causa, mesmo com diversos governos de esquerda tendo passado por La Moneda. É inegável que os governos democráticos no Chile se deram, até hoje, contra o pano de fundo da estrutura institucional econômica neoliberal forjada pelo pinochetismo. O grande problema é que isso não explica muita coisa. Porque ao longo dos últimos trinta anos esse dado do problema sempre esteve colocado. Então a questão a ser feita me parece mais parecida com o enigma de junho de 2013. Por que nos levantamos naquele mês, abrindo uma crise prolongada colossal, que colocou em xeque o sistema político e sua capacidade de corresponder aos desejos e expectativas da sociedade?
Essa me parece uma questão mais importante a se fazer também sobre o Chile (não à toa, um aumento de passagens e a violência da repressão desencadearam o processo, apesar das diferenças entre essa violência — no Chile de Piñera a repressão foi muito mais brutal, apesar de geralmente excluirmos da contabilidade das vítimas de junho de 2013 os mortos das favelas, valendo lembrar que um dos episódios mais simbólicos daqueles dias foi uma manifestação na Maré contra uma chacina do BOPE em que houve pessoas simplesmente degoladas). Pois enquanto outros levantes recentes são quase que imediatamente compreensíveis seja pela situação geral do país, seja por um acontecimento específico (penso, respectivamente, em Venezuela e Equador ou Hong Kong), no Brasil e no Chile essas razões não parecem tão óbvias assim (a não ser que você precise reduzir os fenômenos para fins de capital simbólico nas redes).
É no encontro de acontecimentos contra seus panos de fundo, na pintura desse quadro complexo em que a dialética entre acontecimentos, conjunturas e estruturas que é possível pensar as condições de possibilidade dos eventos. E quando olhamos para as semelhanças entre o Brasil de 2013 e o Chile de 2019 isso me parece claro. Por que agora? Por que em junho? E sem uma análise das subjetividades sociais do Chile contemporâneo, seu outubro me parece tão ininteligível quanto nosso junho. Pois lá, como aqui, as imagens são de uma multidão que se levanta sem muitas mediações (as bandeiras são mapuches ou em sua maioria do próprio país), aparentemente esgotadas por um sistema político que percebem como impermeável às suas demandas (e o fato dos recuos de Piñera terem sido ignorados reforça isso) e uma situação econômica que lhes parece intolerável (“atrás dos acontecimentos, as estatísticas claudicam”, escreveu o filho de um rico industrial alemão do século XIX).
O que acontece no Chile (e que aconteceu por aqui) me parece um acontecimento subjetivo radicalmente novo. Na civilização (“neoliberal” se quiserem, apesar dessa razão do mundo ser bem mais complexa do que simplesmente um modelo) onde não há futuro (onde o futuro equivale a uma atualização incessante do presente), forças sociais parecem querem fundar um futuro passando ao largo das mediações que elas creem interditarem seus caminhos. E desse desejo nasce um turbilhão social onde na sequência tudo pode acontecer (inclusive o pior, como bem sabemos). Não por determinação desses levantes, mas porque eles recolocam suas sociedades em um novo patamar de exigências e demandas, rompem o tecido da monotonia histórica e abrem possibilidades.
Para solucionar o enigma desses acontecimentos novos, é preciso se deter sobre eles, mergulhando neles. Até agora praticamente só temos tentado extrair dividendos políticos e ideológicos; mais segurança e conforto, quando possível, para nossas próprias narrativas — como se um mal-estar dessas proporções fosse apenas um ativo para ser usado quando as situações permitem; ou vituperar contra eles quando sua emergência atrapalha nosso governo de predileção. Minha aposta é que eles continuarão surgindo e pregar sermões contra esses terremotos vai se provar tão inútil quanto era fazê-lo quando as fundações do mundo que vamos vendo sumir começaram a ser lançadas.