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O esgotamento kirchnerista

Por Salvador Schavelzon, no La Razón, em 30/11/15 | Trad. UniNômade

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Há eleições que são ganhas porque alguém ganha e há eleições que são ganhas porque alguém perde. Às vezes, um candidato seduz maiorias. Noutras, os eleitores apostam desapaixonadamente num velho relacionamento. Também há eleições em que o voto que desequilibra é crítico e opta pela mudança; ainda que o seu sentido esteja indeterminado. Este último foi decisivo na eleição argentina em que se impôs Mauricio Macri. Há um ano, ele não superava 13% de intenções de voto no país. A usa vitória não significa que os argentinos tenham assumido um neoliberalismo conservador, mas sim que o voto contra o legado do kirchnerismo (2003-15) foi mais forte do que daqueles que acreditavam que estava em jogo a volta aos anos 90.

Ernesto Laclau, politólogo argentino radicado na Inglaterra, meses antes de sua morte, disse sobre Marci numa entrevista: “tem tantas possibilidades de ser presidente constitucional na Argentina como eu de ser imperador do Japão”. E estava certo, se vemos as dificuldades de Macri em metamorfosear-se num líder populista; ainda que Laclau não tenha chegado a ver as mudanças recentes no discurso macrista, que incorporou elementos do kirchnerismo, na linha do venezuelano Capriles. Em que pese o fato, Macri nunca pôde desfazer-se de sua imagem de filho de milionário com um projeto de poder pessoal e magnetizado apenas na cidade de Buenos Aires, cujos bairros mais pobres, entretanto, sempre lhe deram as costas e onde o último triunfo de seu partido tinha sido bastante apertado. Nem mesmo a sua passagem pelo Boca Juniors o tinha dado popularidade, e a isso apontava Laclau. Há eleições que são ganhas com operações discursivas populistas, e há eleições que são ganhas porque o povo decide que seu rival deve sair.

Nesta eleição, não foi Cristina a ser testada nas urnas, mas esse fato já constituía parte da derrota, uma vez que não conseguiu viabilizar uma reforma constitucional que permitisse uma segunda reeleição. O seus homens de confiança foram derrotados nas primárias de várias regiões e instâncias, e Scioli acabou sendo uma decisão desesperada diante da falta de candidato próprio para suceder Cristina. O ex-motociclista, nascido politicamente com Carlos Menem, pontuava melhor do que qualquer kirchnerista, inclusive o filho de Néstor e Cristina, Encabeçando a lista de deputados, ele perderia em seu próprio distrito na província de Santa Cruz. Sem um partido de inserção nacional e em minoria no Congresso, ainda é uma questão aberta se Macri será um nome duradouro na política argentina. A vitória dele é uma derrota do governo dos Kirchner (2003-15), porque parte de sua base social lhe deu as costas.

A ideia de construir “transversalidade” ante as resistências do peronismo conservador, no início do mandato kirchnerista, nunca se desenvolveu. A escolha de Cristina foi apostar numa continuidade negociada que lhe permitisse manter um pedaço de poder, num novo governo encabeçado por um peronismo federal, não kirchnerista, que unificara a todos para formar governo e por meio da adesão generalizada à imagem do papa Francisco. Mas a derrota de Cristina já se via quando a campanha de Scioli optou por não a mostrar, adotando uma publicidade que inclusive distanciava o candidato da Frente para la Victoria da presidente em exercício. Nas urnas, a derrota foi evidente com o triunfo de María Eugenia Vidal na Gobernación da província de Buenos Aires, onde o peronismo estava no poder desde 1987. Foi um voto de classe média e dos pobres contra o chefe de gabinete de ministros de Cristina, Aníbal Fernández, o funcionário kirchnerista com maior presença midiática.

Num momento de crise de continuidade para os governos progressistas, é possível escolher reforçar a narrativa do ajuste contra a inclusão social. Mas talvez seja mais realista abrir uma reflexão sobre os limites que não são somente produto de uma reação conservadora, como de um esgotamento próprio. O consenso em cruciais temas que reúne governos progressistas e os neoliberais é parte do problema.

América do Sul. Enquanto no Brasil não foi necessário mais do que algumas semanas para que a austeridade começasse a ser aplicada (depois de uma campanha em que a candidata vencedora também se apresentava contra o ajuste estrutural), na Argentina, as políticas de mercado chegaram “atendidas pelos donos”, com um candidato antipopular cujo triunfo horrorizaria Laclau, próximo do kirchnerismo nos últimos anos de sua vida. O novo presidente é filho da “pátria clientelista” cuja conformação remete à ditadura. É, além disso, expressão de uma Argentina que se imagina capital europeia e alienada da América Latina, ou o Canadá do Brasil. E o novo presidente argentino já disse que se aproximará do Brasil.

Um tema na agenda será o acordo de livre comércio do Pacífico em que, tanto Macri quanto setores de governo do Brasil, estão interessados. No que se refere ao novo mandatário argentino e a hoje empoderada direita brasileira de dentro e fora do governo, se o bloco econômico do Mercosul fosse um obstáculo, ele seria extinto sem nenhum puder. Por outro lado, como já mostrou o Equador, a oposição a tratados de livre comércio já não é uma linha vermelha inegociável para os governos progressistas.

Na Bolívia, o triunfo de Macri não pode deixar de abrir uma interrogação sobre um possível triunfo de candidatos hoje inimagináveis do ponto de vista do hegemonismo populista. O retrocesso eleitoral em lugares onde historicamente se tinha apoiado o kirchnerismo permitiu o triunfo a Macri, o que também se constata na Bolívia. Mas seria um erro atribuir a vitória a uma espécie de magia eleitoral que faria que uma proposta de inserção escassa possa construir desde as mídias um discurso populista, disponível para qualquer um como simples técnica eleitoral. Trata-se da capacidade de conexão autêntica com o que se passa nas ruas.

Depois da derrota, o kirchnerismo se encontra hoje em plena caça às bruxas para apontar os pais da derrota, perdendo de vista a responsabilidade coletiva do que se alcançou em termos de construção e das batalhas que se preferiram não ser abordadas. A discussão teria sido produtiva como fonte de reflexão e reformulação com o rumo do processo em marcha. Mas para isso é necessário sair dos relatos polarizadores, que reduzem toda crítica formulada a partir das novas lutas, ou a partir de setores sociais que veem o seu salário depreciado, num e noutro caso como “discursos de oposição”, quando não “romantismo antiestatal” e “esquerdista” e efeito dos meios onipotentes de comunicação, como se governos como o kirchnerista não tivessem entrado de cabeça no controle dos meios.

O problema é a capacidade que tenha um processo de mudança de nutrir-se de visadas críticas, mantendo-se aberto e conectado com as indignações e movimentos que o impulsionaram. Por sua origem desde cima, não cabe dúvida de que Cambiemos, a coalizão que levou Macri ao poder com o apoio de socialistas e da velha Unión Cívica Radical (UCR), rapidamente se isolará do movimento crítico que pôde representar ns ruas.

O destino do progressismo na América do Sul depende também de quanta abertura possa conseguir para conectar-se, e o quanto ele bloqueia tudo o que não se consegue tutelar, entender e controlar. Sem capacidade de acompanhar o movimento desde baixo e de fora, que é de onde provêm os momentos mais transformadores e ousados desses governos, o destino é um cemitério político que endurece e se sustenta com a repressão. O cenário que a chegada de Macri e a crise da narrativa progressista nos repõem é o dos estalos e movimentações de começo de século. É aí que tudo volta  a ser discutido e as lutas se reorganizam, agora com argumentos que surgem da experiência desses anos.

Salvador Schavelzon, argentino radicado no Brasil, é antropólogo social e professor da Unifesp, autor de Plurinacionalidad y vivir bien/buen (2015) e participa da rede Universidade Nômade.

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