Por Ariel Pennisi, em Cosecha Roja, 21/12/17 | Trad. UniNômade
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Santiago Maldonado e o exército dos tranquilos
Um cadáver pode ser matéria para a verdade na medicina e no poder judicial, mas a verdade na política é mais complexa. Que os cadáveres falem é uma obsessão dos fanáticos de séries protagonizadas por peritos forenses. Não é, precisamente, o cadáver de Santiago Maldonado quem tem de dar explicações nem dizer mais do que o que já foi dito nos seus gestos em vida. Os acusados por um crime de Estado são os que nos devem, no mínimo, a palavra e a disponibilidade perante o poder judicial: a polícia, os funcionários do Ministério da Seguridade, começando por Patricia Bullrich e mesmo o presidente da nação.
A ficção midiática e o imaginário social imediato preparam o prestígio inflamado de que goza o saber médico. Vocês quereriam, então, pôr em dúvida as competências enunciativas de uma autópsia tão fiscalizada? De modo algum, não queremos. O que colocamos em questão é a redução de um caso complexo como esse, que toca nervos sensíveis da nossa vida coletiva e da nossa história recente, a um terreno asséptico e despolitizado. Pois o que um determinado terreno deixa brotar ou não constituem questões fundamentais.
As perguntas próprias de um perito põem de escanteio as perguntas do pesquisador social, cuja vocação holística avança em todas as direções, mas isto atemoriza tanto os funcionários em exercício de suas funções quanto as forças de segurança. Mas o faz não sem antes pôr a descoberto as maquinarias de encobrimento, feitas à base de grandes tiragens, panos quentes e trolls virtuais.
É doloroso o modo como essa madeixa ingressa na trituradora de um senso comum que passa da indolência ao gozo da fofoca fácil, proporcionada pelo programa de televisão favorito ou pela cloaca virtual. Tão impressionável na hora de consumir os teatros morais roteirizados pelos novos teólogos da anticorrupção, não se impressiona contudo ante um corpo boiando num rio tornado vala sepulcral, uma vida convertida em exemplo mortuário do gesto disciplinador do Estado empresário. Pablo Nocetti, o funcionário pró-ditadura, comandou a caçada a partir das terras arrebatadas do povo Mapuche Tehuelche, hoje nas mãos da Benetton.
Se pretendemos uma visada holística sobre o modo de desaparecimento forçado e morte de Santiago Maldonado, não podemos poupar registros (histórico, político, econômico, libidinal). Quem nos acusa de politizar o caso e põe o foco apenas na referência técnica, como único terreno de discussão, está jogando pelo encobrimento.
O deslocamento dramático consiste em pretender resolver um fato político numa convocação de peritos, quer dizer, um fato não periciável ou, no mínimo, entretecido de outras habilidades e visadas, mais atentas à complexidade em questão. Pretende-se dessa maneira totalizar a discussão por meio de um todo que, na realidade, deveria participar de outro todo, desta vez, um todo não totalizante: o político social.
Ouve-se nas ruas: “quero ficar tranquilo”. Numa propaganda da campanha de Cambiemos, uma garota explicava: “Voto no Cambiemos porque quero ficar tranquila”. Estará a nova peritocracia oferecendo boa consciência a baixo preço para os anseios imaginários do bom vizinho? O exército dos tranquilos encontra na assepsia política do perito um novo aliado, outro saber prestigioso onde encostar-se. Na linguagem dos vizinhos, “ficar tranquilo” significa crer por um momento, o mais possível, que algum agente da ordem se encarregue dos conflitos… Ainda que preferisse mesmo era pensar que não deveriam existir maiores conflitos se cada um apenas fizesse “o que tem que ser feito” (como recita um dos slogans do Pro na Cidade de Buenos Aires: “fazendo o que tem que ser feito”). Dessa maneira, são rotulados aqueles envolvidos num conflito como os “conflitivos”, para ao fim abonar a teoria geral da ordem: não existe conflito, mas conflitivos.
“O que esse hippie tinha que fazer lá?” Um taxista se referiu a Santiago Maldonado com desprezo, ao questionar a passeata pelo terceiro mês de seu desaparecimento seguido de morte. “Por que se manifestam se já aconteceu, se já o encontraram?” Tomava como informação de primeira mão as revelações que alguns meios de comunicação faziam circular, em relação de cumplicidade com o governo, ao redor das causas da morte de Maldonado. Todo um fluxo anímico se compõe assim com sedimentos históricos macabros e certa ilusão despertada por um novo governo, que organiza o afã normalizador do momento.
O taxista prossegue: “quando fiquei sem trabalho eu não fui fechar uma rua”. Trabalhar e perder o trabalho sem criar caso, velar pela lei e pela ordem como um qualquer a mais… salvo é claro nas exceções, isto é, em momentos quando a exceção o possui por completo e o bom vizinho, o trabalhador honesto participa de um linchamento, isto é, quando agride gravemente ou mata. Triste exceção para confirmar a regra: “às vezes me dá vontade de pisoteá-los…”, diz sereno ante o seu totem de três luzes. O que o impede?
Ariel Pennisi é ensaísta, professor (Undav, Upaz, Fuc) e editor (Autonomía, Quadrata, Ignorantes).
Nota do autor: O texto contou com a valiosa interlocução de Juan Manuel Solo.