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Homens sem qualidades

Por Jason Read, no Unemployed negativity, em 1/7/14 | Trad. Silvio Pedrosa

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Estou interessado, particularmente, em duas teses. A primeira é a definição de desejo desenvolvida na Ética de Spinoza. Na Ética Spinoza escreve que “desejo é a essência mesma do homem na medida em que é concebida como determinada para qualquer ação por qualquer afeto de si mesma” (E,III,D1). O opúsculo de Balibar, Spinoza: from individuality to transindividuality é, de alguma forma, uma exegese dessa definição e de suas correspondentes proposições e escólio. Balibar argumenta que a definição de Spinoza deve ser pensada, em primeiro lugar e principalmente, como uma redefinição da própria ideia de essência. Como Balibar escreve “a noção metafísica de essência foi, assim, submetida a uma profunda mudança; ao contrário de se referir a uma classe ou a um gênero, ela agora se refere a uma singularidade de indivíduos”. Os diferentes desejos que definem o homem não têm um objeto ou estrutura comum. Para parafrasear Spinoza, há tantos desejos quantos objetos de desejo e diferentes formas de desejar. A essência não é uma abstração inerente a cada indivíduo, mas se atualiza nas diversas formas do fluxo. Essas diversas formas do fluxo não é uma pura multiplicidade, não um milhar de flores diferentes, mas são definidas e determinadas por suas interseções e relações, mais notavelmente em termos de afeto.

Isso nos leva a nossa segunda tese, que é sexta das teses de Marx sobre Feuerbach. O trecho a ressaltar é aquele que diz que “… a essência humana não é uma abstração inerente em cada indivíduo singular. Em sua realidade, ela é o conjunto das relações sociais”. Balibar dedica algumas páginas a esse trecho no seu The philosophy of Marx, salientando que o texto de Marx usa a forma francesa ‘ensemble’ como forma de evitar ‘das Ganz’, o todo ou totalidade. O conjunto das relações, assim, é não totalizável, constituindo-se dos múltiplos efeitos entre as relações, sem um princípio transcendente ou causa. Embora, para sermos estritamente althusserianos, devêssemos dizer alguma coisa sobre a última instância da economia atuando sobre esse conjunto.

Tomadas conjuntamente, as duas proposições constituem a base para uma antropologia filosófica pós-humanista, uma antropologia para depois da morte do homem, para pegarmos emprestados os termos de Negri e Hardt. Essência e unidade são substituídas por singularidade e relação. A humanidade não é outra coisa senão a história das suas relações e essa história é feita por não outra coisa senão por instâncias singulares. Uma tal antropologia é fundamentalmente diferente da tendência dominante, que poderíamos chamar de antropologias negativas. Essas antropologias tomam duas formas diferentes. A primeira, e também primária, é aquela derivada de Heidegger na qual a finitude, o fato da morte, se torna o único universal possível para a existência humana. É um estranho universal, desaparecendo, ou fazendo a humanidade desaparecer, no exato momento em que ela surge, enquanto simultaneamente é evitado ao longo da vida. É um universal que emerge apenas e através da sua errância e anulação. É, assim, perfeitamente consistente com uma era pós-metafísica. A segunda forma pela qual se manifesta a “antropologia negativa” aparece nos trabalhos de Agamben, Stiegler e Virno. Podemos defini-la como afirmando a falta de determinação como característica definidora da humanidade. Versões dessa tese podem ser encontradas nos trabalhos de pensadores como Arnold Gehlen, que argumenta que a humanidade tem uma falta constitutiva de determinações instintivas. Essa falta, então, se torna uma ausência constitutiva, ausência essa que a cultura, as instituições e a tecnologia mais ou menos compensam à falta de instintos e aptidões naturais.

Essa última perspectiva parece mais próxima a Balibar, para quem em cada caso há uma genérica definição de humanidade que apenas forma a base de sua articulação histórica específica. Todavia, parece haver uma diferença particular: para Spinoza e Marx a “essência humana” é sempre atualizada. Não há reserva latente, nenhuma transcendência, nem mesmo uma transcendência de potencialidade. A humanidade existe como a produção das relações existentes. É claro que é aí que Spinoza e Marx divergem: Spinoza focaliza os afetos enquanto Marx define as relações sociais através da produção. Apesar de muito trabalho já ter sido feito para aproximar essas duas perspectivas, arrisco dizer que esse trabalho deve começar por especificar não apenas como essas diferentes relações se interseccionam, como os afetos se relacionam com a economia, mas como, em última análise, elas se determinam reciprocamente. Essa seria a base para uma antropologia pós-humanista materialista.

Jason Read é professor universitário nos EUA, autor de The micropolitics of Capital

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