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O NFP mantém a ficção de uma união quando a realidade é a de uma extrema divergência interna

Jean-Yves Pranchère

Tradução: Coletivo UniNômade Brasil

Publicado em 25 de julho de 2024, em Le Nouvel Obs.

 

Muito crítico da linha política defendida por Jean-Luc Mélenchon, o filósofo Jean-Yves Pranchère considera que a esquerda se fechou em uma “quadratura do círculo” da qual só poderá sair rompendo com a “postura antissistema”.

Este é um artigo de opinião, redigido por um autor externo ao jornal e cujo ponto de vista não compromete a redação.

Que o Novo Front Popular tenha conseguido, in extremis, concordar sobre o nome de um possível primeiro-ministro não elimina infelizmente nenhuma das contradições em que a esquerda se fechou ao buscar uma quadratura do círculo impossível e ao pretender governar o país sozinha, como se não fosse minoritária.

Certamente, pode-se reclamar da má vontade de Emmanuel Macron, que manifesta sua falta de iniciativa e sua provável relutância em formar uma coalizão entre a esquerda e o centro. No entanto, continua sendo verdade que magia nenhuma permite que uma aliança das esquerdas, as quais não dispõem de uma maioria absoluta, ajam como se tivessem uma maioria absoluta; ninguém pode fazer com que um segundo turno das eleições legislativas, ocorrido nas condições inéditas de uma frente republicana, signifique uma vitória da esquerda em um duelo contra a direita; ninguém pode tirar dessa situação sem precedentes conclusões sobre supostos deveres  do presidente da República.

Emmanuel Macron apenas devolve à esquerda seus próprios não-ditos e as negações nas quais se debate ao recusar dizer que só poderá governar se não pretender realizar “seu programa”, mas sim propor medidas que escapem às moções de censura. O dilema é implacável: se o NFP considerar que seu programa não é negociável, então deve renunciar a governar; se o NFP quiser governar para obter melhorias políticas (em primeiro lugar, a votação proporcional, verdadeiro guardião contra o poder absoluto de um partido que venceria por padrão), então deve renunciar a aplicar seu programa.

Se esse dilema não for assumido como deveria – mesmo sendo o ordinário das democracias parlamentares europeias -, é porque o NFP mantém a ficção de uma união quando a realidade é a de uma extrema divergência interna. Não apenas os bons resultados do NFP no segundo turno das eleições são devidos à existência de uma frente republicana, à força do repúdio à extrema direita e não à força de mobilização da esquerda; mas o próprio NFP era na realidade apenas uma frente republicana entre partidos de esquerda.

Deveria estar claro que La France Insoumise não quer ser uma componente de uma esquerda governista: basta ouvir as declarações de seus dirigentes assim como de seus intelectuais orgânicos para saber que LFI quer ser, segundo seus próprios termos, uma “esquerda de ruptura com o sistema”, e não uma esquerda de reforma e melhorias. A entrevista mais recente de Jean-Luc Mélenchon ao jornal italiano “La Repubblica” não fez senão confirmar mais uma vez a linha seguida há muito tempo: a estratégia reivindicada por Mélenchon consiste em reduzir o campo político a uma escolha entre ele e Marine Le Pen na próxima eleição presidencial.

Não só essa estratégia impõe que a democracia, feita de negociações, deliberações e compromissos, seja anulada em um combate de chefes e em uma concepção bonapartista do poder; mas ela é propriamente suicida, já que seu desfecho previsível seria um triunfo de Marine Le Pen. Notemos ainda que é absurdo criticar Macron – cuja estratégia tem sido tentar reduzir o espaço político a uma escolha entre ele e Le Pen – se se aceita a estratégia de Mélenchon, que é homóloga a essa.

Mélenchon, que é o político cujo estilo mais se assemelha ao de Jean-Marie Le Pen dos anos 1980 (o jogo com as insinuações antissemitas é bastante similar), cuja matriz política é um soberanismo cripto-nacionalista que considera o eixo internacional do fascismo putinista como um contrapeso desejável à UE, certamente não é “de extrema esquerda”. Ele não é de esquerda “radical”. Ele também não é social-democrata (no sentido autêntico da palavra, que é a promoção da democracia social). Ele é “antissistema”.

O que ele chama de “sistema” é indefinido e nada tem a ver com o que as tradições marxistas e socialistas pensavam sob o registro das relações sociais capitalistas; o “sistema” designa apenas elites predadoras não identificadas das quais bastaria se livrar para que tudo ficasse bem – como se a causa dos males fosse a existência de predadores sobrepostos às relações econômicas (há aqui o princípio da fusão com certos delírios “decoloniais” que chegam a interpretar todas as relações sociais como efeitos de uma “colonialidade” predadora, ou seja, concretamente, de um conjunto de alvos a serem abatidos).

Não apenas essa postura antissistema é de uma consternante pobreza intelectual e política, mas ela obedece à mesma lógica da postura antissistema da extrema direita. Certamente, entre essas duas posturas há diferenças importantes de programa: a LFI combate o racismo da extrema direita (daí seu sucesso nos grupos-alvo do racismo, que estão justamente assustados com a normalização do discurso racista e temem, consequentemente, por sua segurança, e aos quais a LFI promete proteção) e propõe medidas sociais (aliás, não financiáveis tais como estão) que o Rassemblement National não quer. Mas o funcionamento político é o mesmo: submissão ao chefe, ausência de democracia interna, presidencialismo exacerbado, política da agregação dos ódios, conspiracionismo (apoio aos antivax etc.), designação do estrangeiro interno (os “sionistas” para a LFI, os muçulmanos para o RN), retórica soberanista, geopolítica filo-putinista.

A LFI representa o caso de um leninismo “gasoso” que não tem mais nenhum dos lastros de racionalidade do pensamento de Marx: ora, um leninismo desmarxizado, mesmo “decolonial”, é a metapolítica de Carl Schmitt, ou seja, uma prática política reduzida à produção de um antagonismo radical e à identificação de um inimigo a ser erradicado. E, nesse jogo, o RN é muito mais coerente. É hora de a esquerda entender que a LFI está botando tudo a perder, e que qualquer negociação com a LFI, justificada pela necessidade de assegurar a simples sobrevivência da esquerda, tem também como objetivo impedir que a LFI destrua a esquerda. No entanto, a esquerda parece cega a esse problema – o que é um indicativo de uma deficiência política muito profunda e muito preocupante. Manifestamente, à esquerda, as lições da crítica do stalinismo (a crítica de esquerda, conduzida por caminhos diversos por Castoriadis, Lefort, Foucault) foram esquecidas. Este é o caminho não apenas para o fracasso (e a vitória de Le Pen em 2027), mas para a desonra.

BIO EXPRESS

Membro do comitê de redação da revista “Esprit”, Jean-Yves Pranchère pertence ao Centro de Teoria Política da Universidade Livre de Bruxelas, onde leciona. É autor, entre outros, de “Procès des droits de l’Homme” (Seuil, 2016) com Justine Lacroix, e de “l’Autorité contre les Lumières: la philosophie de Joseph de Maistre” (Droz, 2004).

 

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