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O novo astral do Rio: uma estética policial

Versão escrita da fala de Talita Tibola ao colóquio “Desincubando a criatividade da metrópole”, do ciclo co-organizado pela Universidade Nômade “Brasil menor, Brasil vivo”, à Casa de Rui Barbosa, em 4 de outubro de 2012.

“Para mim, a própria ação política é uma atividade “estética” na medida em que faz ver como políticos objetos que não eram reconhecidos como tal, ou faz ouvir objetos não contados” (RANCIÈRE, 2008, p. 179).

Essa afirmação de Jacques Rancière, trecho de uma entrevista dada à revista Anarchist Studies, pode ser tomada como o pano de fundo de minha fala assim como alguns conceitos do mesmo autor, que serão rapidamente trazidos ao longo da conversa.

Por enquanto, darei um passo atrás.

Sempre me sinto fora de lugar e dessa vez não será diferente, afinal o que faz uma doutoranda em psicologia numa mesa sobre arte e cultura, “Des-incubando a criatividade da metrópole”, falando sobre estética e política? Quero trazer pro debate essa relação pensada através de uma metrópole submetida cada vez mais a processos desiguais e violentos de desenvolvimento. Sempre me senti fora de lugar e tenho um incômodo com o que produzo que talvez decorra daí, dessa não localidade que por vezes dificulta a conversa. Isso por um lado dificulta a interlocução, mas por outro pode abrir possibilidades imprevistas de troca. Mas, é também essa inadequação, esse “estar entre”, o que faz com que eu reconheça a minha pesquisa, isso se torna um qualificador, não de valor necessariamente, mas no sentido de dar-lhe uma especificidade.

Continuando ainda a pensar um pouco sobre a pesquisa: semana passada fiz a revisão de um texto em italiano e percebi que a palavra pesquisa, em português, não fica tão próxima de seu uso coloquial, como as palavras ricerca, em italiano, ou mesmo recherche, em francês, que podem ser facilmente trocadas por “busca”.  Falo isso por que, se me sinto sempre fora de lugar, ao mesmo tempo, se existe um lugar mínimo a partir do qual eu possa falar, esse lugar é aquele de pesquisadora. Ao mesmo tempo esse lugar define-se por ser lugar de uma busca, ou seja, ele é bastante aberto, mas não é por isso que ele deixa de ser bem definido ou estar dotado de outra forma de rigor, com uma consistência própria, autorrefletida, de investigar, sentir, perceber, relatar, concluir. Que o próprio campo me ajuda desenvolver e construir.

Todo o movimento nasce da recusa a certos movimentos e afirmação de outros, e cada recusa já está baseada numa experiência alternativa, noutro modo de fazer.

Esta pesquisa se faz de duas recusas principais.

A primeira é a recusa a determinado modo de investigação, um que se arvora de neutralidade ou universalidade, porém expressa um ponto de vista majoritário, alinhado com a ordem, com os regimes de dominação de classe, racial, gênero ou sexualidade, uma ciência que participa de um consenso socialmente desigual, e dos projetos do poder por sua conservação e reprodução, e é exatamente por isso que pode camuflar os pressupostos assimétricos, objetificadores e verticalizados. Gostaria de afirmar, na contramão a essa pesquisa, uma pesquisa que reconheça como seu papel de instauradora de mundos.

A segunda é a recusa a determinadas formas de organização da coletividade e de estar juntos, recusa a situações que se propõem coletivas mas são, dito em português claro, coletivas só “da boca pra fora”, pois são construídas de cima para baixo, onde o consenso é forjado e, quando questionado, gera  acusações de traição, onde todo dissenso é moralizado como falta de espírito coletivo e visto como ameaça ao sistema e onde a unidade do grupo é invocada para centralizar as decisões e os formatos produtivos, ou, para apresentar de outra maneira, usando as palavras de Geo Brito, do Centro de Teatro do Oprimido, que falou antes de mim, “movimentos que se apropriam da mesma lógica do estado”.

Comecei a pensar a relação entre arte e política a partir da vivência num coletivo de arte e produção cultural, o Macondo Coletivo, de Santa Maria-RS. Pude perceber como, nessa atividade coletiva cultural, dinâmicas realmente transversais de constituição do comum acontecem simultaneamente com práticas autoritárias. De modo que, em vez de simplesmente condenar ou denunciar os grupos, valeria a pena distinguir vetores de horizontalidade e de verticalidade ali presentes.

Na verdade, essas duas recusas são a mesma recusa, mas exprimindo-se em campos diferentes. Mas não é por serem recusas que elas são meramente negativas, elas são o que nos permite recortar, dentro de nosso campo de investigação, os parâmetros, os impasses, os bloqueios, os pontos de confronto e de fuga. É desse não que se reafirma o nosso sim, nosso desejo e nossa busca.

Em ambos os casos de recusa, tratava-se de uma crise da política, ou melhor, de falta de política, tanto no âmbito da metodologia de pesquisa, quanto no âmbito das práticas coletivas. Vale esclarecer que, por política, estou usando o conceito de política de Jacques Rancière,  para retomar então a citação com a qual abri esta fala. Da política implicando o dissenso.

Para Rancière, o conceito de “sensível” exprime a síntese da realidade social, mediante a ordem dos sentidos: o regime do visível, audível e dizível. A desigualdade na sociedade se reflete mediante uma distribuição injusta do sensível. Essa distribuição gera um contingente de pessoas que não tomam parte nessa partilha, que não são apenas aqueles segregados da riqueza ou bem sociais, mas da própria possibilidade de dizer e ter nome, de ser ouvidos, vistos, pensados. A ordem de conservação e reprodução dessa distribuição desigual, uma ordem dos corpos, define a posição deles na comunidade, os espaços que podem ser ocupados, os discursos que podem ser elaborados, a concepção de público e privado, a configuração das propriedades e ocupações do espaço, isso é chamado por Rancière, de polícia. Ou seja, a polícia não é apenas o aparelho repressor do estado, mas a configuração sensível na qual se inscrevem os corpos “e em que cada parte é compelida a manter-se fiel a seu lugar, a sua função e a sua identidade” (RANCIÈRE, 2011, p.7).

O político é  o que rompe com essa ordem estabelecida, que desfaz as partilhas sensíveis da ordem policial. A dimensão estética intrínseca à política decorre do embaralhamento dos tempos e dos espaços, a partir da existência de um excesso que supera a contagem das partes, lugares e identidades. A política revela a injustiça originária da divisão social, atualizando a parcela dos sem parcela, a parte dos pobres. Político é quando aquilo que não faz parte aparece no plano do sensível e coloca em xeque essa partilha.

A ruptura com a ordem policial tem uma dimensão estética. A estética passa pela construção coletiva de um sensível, sua base comum com a política está nessa experiência comum alternativa, que “permite o desenvolvimento e lança os fundamentos para uma forma de comunidade sensível que transcende aquela determinada pela lei e pelo estado.” (Ibid., p. 9).

Mas,  se o que era o motor de nossa busca era a procura do político, onde então poderia estar o político? Fui procurá-lo nas praças e na rua, em ações dispersas de coletivos de arte ou ativistas, ou mesmo em ações cotidianas no trânsito da cidade. Mas para falar também da cidade, achei melhor fazer referência a um recente manifesto que explicita claramente a partilha do sensível a qual estamos submetidos, vejamos:

“Acima de tudo, o astral do Rio mudou. Radicalmente. A cidade voltou a ocupar as manchetes por suas virtudes. A população recuperou o orgulho de viver no Rio. A cidade partida começou a se unir. Trata-se de um momento especial, compartilhado por muitos.”

Este foi um trecho do manifesto assinado por  profissionais da área da cultura e intelectuais em apoio à reeleição de Eduardo Paes, da coligação “somos um rio”, manifesto “Por um Rio mais justo, humano e feliz para todos” (http://www.eduardopaes15.com.br/manifesto/).

Me pegunto, e acredito que muitos junto de mim, quantos Rios precisam ser silenciados e invisibilzados não ditos, não ouvidos, para sustentar UM RIO?

Trazendo esses conceitos para a metrópole hoje, fica claro como o “sensível” construído pela ordem policial vem sendo reforçado em todos os níveis. O contexto hoje é de um consenso governamental marcado pelas remoções de favelas e pobres, a militarização dos territórios sob a roupagem da “pacificação”, as ações do choque de ordem contra moradores de rua e camelôs, o recolhimento compulsório de pessoas suspeitas do uso de crack, o encarecimento generalizado da moradia e transporte público, a sucessiva remodelação urbanística, da geografia, da própria imagem do Rio de Janeiro, sede principal dos megaeventos da década e, portanto, cartão de visitas do “Brasil Maior”. Está em curso um projeto do poder baseado num regime do dizível e visível que é higienizador, elitizado e discriminatório. Um “ethos”, uma nova “cultura” carioca, que se vende como “acima de tudo um novo astral”, reordena seus habitantes segundo uma nova configuração espacial e da paisagem. Essa ordem do “novo Rio” inscreve nos corpos a violência do progresso, que se apresenta como a estética dominante da publicidade governamental, dos candidatos nas eleições e da grande imprensa em geral. E é justamente a rua e a praça que essa ordem silencia, as passagens, os bairros, as moradias, os morros, os cantos, os becos, as nossas casas, as nossas vidas (aquelas construídas, pouco a pouco, ao longo de uma vida, de verdade).

Mas esqueçamos os manifestos – com todas as aspas que usar essa palavra nesse caso merece – e vamos as praças, o que elas falam? Nem sempre estamos prontos para escutar.

Encontrei Sara, Filipe e Rafael umas semanas antes deles formarem, junto com Bruno Duarte, o Museu de Colagens Urbanas. Estávamos numa praça, no dia 12 de maio, momento em que vários grupos como o Ocupario, Laboratório TupiNagô de Arte e Ciência, Dia do do Basta, Grupos de hip-hop, Universidade Nômade, Brecha Coletivo, e outros organizaram a mobilização global do 12M, que aconteceu, aqui no Rio, entre outros lugares, na Praça Agripino Grieco, no Méier. Quando encontrei-os e perguntei o que estavam fazendo, lembro que me responderam que, na verdade estavam ouvindo a praça. E aquilo pra mim soou tão simples, sincero, mas tão difícil. Nas palavras deles, se me lembro bem: “se fala tanto em dar voz mas não se fala em escutar”.

Procurei (e nossa conversa seguiu por aí) tomar esse escutar da maneira mais ampla possível, não ligado somente a um de nossos sentidos, mas a um perceber. E ao mesmo tempo também de maneira simples, ao puro fato de saber que se está numa praça que nos preexiste, que é feita de processos de resistência que já estão ali e são feitos de dinâmicas, violências, assimetrias, fluxos cotidianos. Escutá-los é condição do coletivo. A violência carrega consigo uma surdez. Desde a surdez daquele que se nega a ouvir o que o outro lhe diz por considerar-se superior, até a violência dos grandes projetos urbanos que não escutam os fluxos da cidade e seus habitantes, e tratoram tudo que encontram pelo caminho

Naquela mesma ocasião, o Brecha Coletivo produziu um bingo que satirizava as remoções da cidade do Rio de Janeiro. Eles conseguiram com essa ação se relacionar com aquela praça de modo que, ao mesmo tempo proporcionavam um questionamento e convocavam para um espaço de produção coletiva, para um “estar-juntos”, novas formas de partilha do sensível.

O Museu de Colagens Urbanas esteve junto intervindo tanto na praça quanto no material trazido pelo Brecha, superposições, colagens urbanas.

Quando a violência é surda é necessário fazer-se ouvir. Então, sim, além de ouvir, gritar, fazer barulho nos ouvidos, Como faz o Bloco Livre Reciclato que, sempre ligado a lutas concretas, junta latas e o que na rua estiver largado e escancara a rua que carrega consigo, no barulho que tira das latas, a rua como afirmação de outro modo de viver a liberdade. O barulho que se faz quando se passa não é só das latas, mas de marcas, as marcas na pele do pobre e mais do que isso, escancaram as letras do Anarcofunk, marcas que devem ser limpas de toda cidade maravilhosa. Limpa de que afinal? De toda essa poéticas dilaceradas, sujas, truncadas, tensas.

Ranciére diz: “As coisas seriam simples demais se houvesse apenas a infelicidade da luta que opõe os ricos e os pobres. A solução do problema foi encontrada cedo. Basta suprimir a causa da dissensão, quer dizer, a desigualdade das riquezas, dando-se a cada um uma parcela de terra igual. O mal é mais profundo. Da mesma forma que o povo não é realmente o povo, mas os pobres, os próprios pobres não são verdadeiramente os pobres. O partido dos pobres não encarna nada mais que a própria política como instituição de uma parcela dos sem-parcela.” (RANCIÈRE, 1996, p.28,29)

Se a letra do Anarcofunk diz que “o estado dá a ordem e o choque quem toma é o pobre”, em sua ação, performance musical,  quem dá o choque é o pobre, o único capaz de remover o estado de ordem, de desfazer qualquer estado. Não é só com suas letras que afirmam o pobre, o negro, a mulher, mas é com toda a sua estética de enfrentamento dos lugares impostos pela ordem policial.

 

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REFERÊNCIAS:

RANCIÈRE, Jacques. O desentendimento – política e filosofia. Trad. Ângela Leite Lopes. São Paulo: ed. 34, 1996.

_______________. A partilha do sensível – estética e política. Trad. Mônica Costa Netto. São Paulo: ed. 34, 2005.

______________. Democracy, anarchism and radical politics today: an interview with Jacques Ranciere. Entrevista à Anarchist Studies, vol. 16, n.º 2, 2008.

______________. O que significa estética. Trad. R.P. Cabral. 2011. Disponível online em http://cargocollective.com/ymago/Ranciere-Txt-2

SOIFER, Rafael. Memórias sujas da Lapa. in Caderno de comunicações do Seminário “Vômitos e não: Práticas Antropoêmicas na arte e na cultura”. Rio de Janeiro. PPGArtes/UERJ, 2012.

Música:

ANARCOFUNK. A guarda toma e choque mata. Rio, 2009. Disponível em: http://www.myspace.com/anarcofunk/music/songs/a-guarda-toma-e-o-choque-mata-62012645

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