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Eleições do Rio e o voto dos pobres

“Qual ‘Um Rio?’ de muitos ou dos mesmos?” Artigo à ‘meia distância’ pelo militante e professor Alexandre F. Mendes (UniNômade), que toma a recente reeleição de Eduardo Paes à prefeitura do Rio para pensar o estado das lutas, suas perspectivas e potencialidades, e as estratégias da governança “inclusiva”, definidoras dos impasses da realidade política dessa metrópole.

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ELEIÇÕES DO RIO: O VOTO DOS POBRES, A INCLUSÃO DIFERENCIAL E A CIDADE DO COMUM

No final do livro A miséria da filosofia, o velho Marx nos adverte sobre algo importante: “não digais que o movimento social exclui o movimento político. Não há movimento político que não seja ao mesmo tempo social”. Trata-se de um comentário sobre as greves e as coalizões operárias, no qual ele não só recusa a separação entre o “político” e o “social”, como indica que a “libertação” política dos oprimidos deve caminhar no mesmo passo que as lutas pela “igualdade”, manifestadas por um salário melhor.

O que essa longínqua citação tem a ver com as eleições do Rio, que acaba de terminar dando a vitória, no primeiro turno, para o atual prefeito Eduardo Paes? Fotos do prefeito abraçando centenas de pobres em Madureira, a sua votação nas regiões mais pobres da cidade, o “povo” reaparecendo na primeira página do conservador jornal local, as brigas nas redes sociais entre o conceito de “popular”, militantes ofendendo os eleitores que estragaram a primavera, entre outros episódios, nos indicam que, mais uma vez, a “classe sem nome” – os pobres das grandes cidades – estão no centro do debate político.

Como compreender o apoio “popular” ao governo Paes?

Existem duas explicações majoritárias, com as quais não podemos concordar.

A primeira, dos eleitores de Paes, desde o Globo até o PT, utiliza os dados divulgados para dizer que o governo é “popular”, que ele acaba com as fraturas da “cidade partida”, que ele caminha para a “igualdade”, investindo na cidade como um todo, em especial na zona norte e oeste. A atenção do governo teria sido, pela primeira vez, direcionada para os bairros pobres, que não hesitaram em teclar “15” na urna eletrônica. Finalmente teríamos um “povo” unido que abraça patrioticamente a Cidade Olímpica e festeja a vitória com o bom e tradicional samba da Portela.

A segunda explicação se espalha entre alguns simpatizantes e militantes que apoiaram a também vitoriosa candidatura do Freixo. Adotando diversas tonalidades, do repúdio violento a doce paciência revolucionária, dizem que os pobres ainda não se deram conta do que está acontecendo, que lhes falta um pouco mais de educação e informação, que o problema é o diálogo entre eles e a esquerda (ou o contrário), que foram 100% enganados pela mídia e o programa eleitoral. Alguns deixam até escapar o ódio contra pobres/negros para dizer: “agora vocês merecem as remoções, merecem se f… mesmo!” Constatam que o “povo”, aquele mesmo da capa do Globo, é “burro” e que com ele não dá para alimentar qualquer utopia de transformação da cidade.

Assim, gostaríamos de ensaiar, mesmo que provisoriamente, grosso modo e em linhas gerais, outra forma de compreender os votos “populares” ao atual prefeito. Para isso, precisamos de uma boa e dura dose de “materialismo”: não negar que houve investimentos nos bairros mais pobres, cujo expoente é o Parque Madureira, nem recusar os diversos constrangimentos que atravessam os pobres do Rio. Não negar o fato que há intervenções que beneficiam os mais pobres, nem afirmar que todos possuem o mesmo direito abstrato ao “voto livre” ou a participação efetiva na cidade. Como operar esse deslocamento sem se deixar reduzir pelo (falso) amor ao “povo” ou o seu correlato, o “verdadeiro” ódio aos pobres?

Três eixos podem servir de roteiro para tentarmos evitar a dupla armadilha.

1) Primeiro, deixar de lado qualquer paradigma que dissolva a concretude da experiência vivida para favorecer a ideia de uma “consciência” individual, que nasceria de uma correta reflexão da realidade. Chega de vanguardas! Chega de ofensas! Os constrangimentos que fizemos alusão são absolutamente materiais, da ordem das forças sociais, do conjunto de possibilidades e interdições que fazem parte da experiência de vida. A milícia existe mesmo, mas também a necessidade de ter uma rua pavimentada e um parque perto de casa. Aliás, a milícia tem como pressuposto, justamente, a distância entre a necessidade dos serviços e a impossibilidade de obtê-los a partir de uma mínima cidadania (não incluo aqui, de forma alguma, as empresas privadas, que, exasperando o argumento, também apresentariam uma forma-milícia).

Até o marketing é deveras material: mobiliza nossas expectativas, desejos, sonhos, seleciona e produz a forma/conteúdo de informações a nós enviadas. E o sucesso do marqueteiro é envolver o tecido material da vida com laços dourados, transformando-o em outra coisa, talvez mais simples e abstrata, mas não sem uma eficácia que sentimos na pele. Como explicar que Lula venceu, em 2006, contra todo o aparato da mídia corporativa e as tentativas, até hoje empreendidas, de colocá-lo no rol dos culpados da República brasileira? Nesse caso, exatamente, os laços dourados não tinham qualquer aderência ao que se experimentava na experiência da vida. E a campanha não pegou (ao menos eleitoralmente).

Não foi o que aconteceu com Eduardo Paes. Com todas as ferramentas da propaganda profissional, o prefeito conseguiu coagular vida e sonho, intervenções realizadas e promessas futuras, erros cometidos e a (falsa) humildade daquele político que tentou acertar tudo. Com a saúde e a educação ficou difícil convencer, mas logo sua propaganda e a capa do jornal disseram que será a “prioridade” na próxima gestão. No entanto, não é somente aí que reside a operação do poder. No governo Paes, o marketing venceu não somente por dourar e propagandear os feitos, mas – principalmente – por dizer que tudo foi realizado com a participação da população: “quero terminar juntos o que nós começamos”; “Somos um Rio”.

2) Esse é o gancho para o segundo eixo. Ele consiste na necessidade de compreendermos a relação entre autonomia e “inclusão diferencial” no contexto de emergência da “classe sem nome” (os pobres da cidade agora com renda, ou, a neoliberal classificação “classe C”). Na crítica do urbanismo, há algum tempo, se diz que a sociedade radicalmente urbana (assim é a cidade olímpica) só seria possível através de uma “inclusão diferencial” de todos. O urbano (pós-industrial) é o lugar que aproxima e reúne todo mundo, que acelera as relações, que concentra e difunde as criações em vários policentros, que toma cada vida de assalto e a faz girar em uma roda que não tem mais fora.  Ocorre que isso é feito de forma diferencial. Mesmo tão pequeno quanto limitado, o metrô da linha 01 é diferente da linha 02 e, essa diferença, ao que tudo indica, permanecerá na expansão/inclusão de novos territórios. O urbano expande e inclui no mesmo movimento que diferencia e cria novas estratificações e hierarquias.

Se houve uma dimensão no Governo Paes que diferencia pobres e ricos, com certeza trata-se da chamada capacidade de participação social ou a liberdade política de dimensão positiva. Vou aqui dar dois exemplos com base na experiência que tive como defensor público:

(a) Para construir o Parque Madureira, foram removidas centenas de casas (pobres) com a oferta de pífias indenizações e sem qualquer participação dos atingidos no projeto ou nas “soluções” indicadas pela prefeitura. Precisou-se articular uma duríssima luta de 01 ano, com a ajuda dos movimentos urbanos e de moradia, para que as indenizações chegassem perto de algo que qualificamos “aceitável”. Contudo, a maioria das famílias foi expulsa sem conseguir chegar até o final da resistência. Ouvi de um dos moradores que estava na luta a seguinte e curiosa sátira: “quando anunciaram a obra trouxeram o Arlindo Cruz pra cá, o pior de tudo é que eu gostava tanto dele, mas agora só de ouvir “Madureira” já sinto até calafrios”. Essa é a história daqueles que ousaram, com as melhores e justas razões, questionar a forma de implementação do Parque.

(b) Para construir a Transoeste, operou-se, de forma espantosamente violenta e dramática, a remoção de três comunidades pobres, que até hoje vivem em situação profundamente inferior à situação anterior. Descobrimos, recentemente, que as famílias saíram para dar lugar a pistas de automóvel e não de ônibus e, onde diziam que haveria uma estação BRT, foi feito um retorno para carros, que poderia estar perfeitamente em outro lugar. Os projetos nunca foram discutidos com as comunidades, mas, quando a obra chegou ao Jardim Oceânico (área nobre), a construção de 08 estações foi suspensa, em razão das reclamações dos moradores e comerciantes, que preferem estender o metrô até a Alvorada (perto do posto do Detran), ao invés de receber a nova pista transoeste. Nenhuma casa foi destruída, nenhum morador removido. Daí as seguintes conclusões: os moradores saíram sem discutir o projeto e para dar espaço a automóveis; os moradores de alta renda do Jardim Oceânico conseguiram intervir no rumo das obras; Para que alguns pobres tivessem o novo transporte, supostamente mais rápido (porém ainda desconfortável), outros pobres foram removidos de suas casas, dando lugar, sem prévio conhecimento, aos carros dos moradores da Barra, e não ao BRT.

Façamos agora, insistindo nesse tema, um exemplo “fictício” para esclarecer o que acontece realmente em dezenas de pontos da cidade. Vamos supor que a Prefeitura decida pavimentar uma rua de barro e cheia de buracos. Depois de anos de omissão, os moradores serão diretamente beneficiados, não há dúvida. Mas vamos também supor que vem à tona o fato de que a obra pode ser realizada de outra maneira, sem atingir os direitos de outros moradores, de forma mais econômica, de um modo que os beneficiários prefiram ou tenham historicamente sugerido aos prefeitos. Imediatamente, o grupo de moradores pobres que reivindicar o direito à participação, será, tenho certeza, classificado de “encrenqueiro”, “demagogo”, “ignorante”, e por aí vai. E não pensem que o trator deixará de passar por cima desse grupo se ele argumentar que tem o direito de fazer parte da cidade. Para tal objeção, existe o Minha Casa, Minha Vida, que funciona como uma espécie de “lastro” para qualquer tipo de remoção municipal, não permitindo, ao mesmo tempo, a “exclusão” total do grupo recalcitrante.

Percebemos, então, que a tal “inclusão diferencial”, relembrando o comentário de Marx, produz o “social” sem produzir o “político”, isto é, gera efeitos de igualdade, de oportunidade, de inclusão e de melhora nas condições de vida, sem associá-los necessariamente à liberdade ou emancipação. A cidade “partida” dá lugar a um território mil-folhas, atravessado por uma gama infinita de diferentes estratificações. A grande interdição do muro (chamávamos de apartheid) se dissolve em várias e modulares formas de integrar diferencialmente. O tráfico devém milícia operada por servidores públicos, o “gato” devém carta de cobrança de empresas de serviço; as UPPs afiançam novas oportunidades de “bons negócios” em áreas faveladas.

A moradia da favela sai do antigo dilema legal/ilegal para adentrar no terreno biopolítico e flexível das “áreas de risco”, permitindo uma contínua e modular governança dos pobres. A regularização fundiária, antiga luta de inclusão social, tende a ser reduzida somente à expansão do mercado imobiliário ou à retórica do acesso ao crédito. Todas as moradias estão incluídas e, ao mesmo tempo, são tomadas por uma nova “arte de governar”, que se revela na normalização aparentemente técnica do risco (o sem-número de “laudos” produzidos no Governo Paes), ou nos fluxos de valorização do mercado. “Somos um Rio”, não há mais fora, não há mais exclusão, todos, até 2016, estarão “integrados” nas complicadas, e não menos violentas, redes e fluxos da cidade-empresa olímpica.

Temos, portanto, dois fenômenos que, possivelmente, induzem a uma nova forma de governança no território dos pobres. O primeiro consistiria na difusão de infinitos “atravessadores” e “gestores” que realizam o que poderíamos chamar de “a mediação na modulação”, ou seja, ocupam os fios e as franjas da inclusão diferencial, veiculando mensagens do poder ou impedindo a divulgação da candidatura de oposição, solicitando ou exigindo os votos, prometendo melhorias ou impondo intervenções, protegendo os aliados ou ameaçando os opositores, premiando os simpatizantes ou vigiando os insatisfeitos: garantindo – em suma – os votos necessários para o candidato beneficiado.

Isso explica também a dificuldade dos movimentos sociais, sindicais, mandatos e partidos de esquerda em trabalhar nesse novo terreno. As velhas formas de representação política, que disputavam, organizavam e canalizavam as “demandas populares” dos “excluídos” vis-à-vis o Estado, perdem quase toda a eficácia no horizonte da inclusão diferencial. A crise da esquerda ou o chamado “problema de diálogo” com os mais pobres não é apenas uma questão de “vocabulário”, de “falta de informação e educação” ou de “consciência de classe”. Ela possui um traço que é absolutamente material, isto é, ligado diretamente às forças que definem as novas modalidades de poder e, também, de resistência.

Se o PT do Rio compreendeu a crise (o que é improvável), o fez apenas pelo lado do Poder, aderindo, não sem resistências internas, à nova governança do território, no mesmo contexto em que abandona as lutas da cidade. Ao dissociar o movimento político do social e o social do político, esquecendo a advertência marxiana que inaugurou o nosso texto, o partido se apresenta hoje como uma burocracia reacionária e servil. É o “P” sem o “T”, a política sem o trabalho dos movimentos, a “instância” sem o instituinte. Em resumo: o Poder que trabalha contra as novas coalizões e arranjos dos trabalhadores metropolitanos. Se existe ainda algum caminho possível ao partido no Rio, que seja estilhaçar a chamada “autonomia do político” na direção do reencontro com as mobilizações sociais da cidade.

O segundo fenômeno, nem sempre fácil de reconhecer, é que, em sua inteligência e sensibilidade, os pobres desejam, com razão, superar o terreno da exclusão da cidadania, da “cidade-partida”, e garantir novas formas, mesmo que sob novos controles, de acesso à cidade. Digamos da seguinte forma: se não podem conseguir, na primeira tacada, inclusão e liberdade, escolhem a inclusão diferencial, que está mais perto e mais tangível, e deixam para depois os outros problemas.  Isso não é “falsa esperteza”, “burrice”, ou falta de “firmeza ideológica”. Pelo contrário, consiste em uma forma muito conhecida e tradicional de “luta de classes”. Reconhecer, primeiro, o novo terreno para, por dentro dele, tentar extrair um resultado positivo. Abraçar a oportunidade que aparece e fazer avançar o terreno da apropriação das riquezas, conquistando vitórias imediatas e sempre provisórias. Notem que, nesse ponto, a inclusão diferencial sai do terreno fechado da modulação violenta e é vista, num aparente paradoxo, como novo terreno de luta.

Marx, no livro já citado, enfrentou o mesmo problema para definir as possibilidades revolucionárias da luta salarial e da coalizão de operários. Ele teve que criticar duramente os “economistas” e os “socialistas utópicos” que, por motivos diferentes, desacreditavam esta forma de luta. Os primeiros, diz Marx, queriam que a “classe” permanecesse tal como ela se apresentava, sob pena de ocorrerem drásticas mudanças nos preços e no próprio capitalismo. Os segundos, por sua vez, não vislumbravam qualquer vantagem política na coalizão entre operários, que sairia mais cara do que qualquer ganho salarial, além de não resolver o problema do controle autoritário dos “mestres” na fábrica. Restava aos operários esperar para “melhor poderem entrar na nova sociedade que eles [os utópicos] lhes prepararam com tanta previdência” (Marx, 1847).

O que economistas e utópicos não percebiam é que a razão da coalizão e da luta salarial não residia na crença, pelos operários, de que outra sociedade, livre e igual, seria imediatamente alcançada ou que haveria um grande tumulto nos preços estabelecidos. Comenta Marx, que vários industriais ingleses se assustavam com as altíssimas contribuições dadas à coalizão operária, que atingiam boa parte do salário auferido. Os industriais iriam depois entender que o que interessava aos trabalhadores, naquele momento, era a sua constituição política como sujeito capaz de lutar: a relação entre autovalorização, coalizão operária e salário. Ao atacar a premente questão salarial, mesmo sabendo não resolvê-la, os trabalhadores puderam se constituir como movimento político e social.

Chegamos, com a leitura do passado, ao epicentro das lutas urbanas atuais (a nova “fábrica social”). Todo o funcionamento do poder, toda a atividade dos atravessadores da modulação autoritária do território, tem como objetivo evitar essa passagem: da inclusão diferencial autoritária à inclusão diferencial emancipatória. Da “classe C” consumidora ao movimento político, social e antagonista dos pobres. Da milícia estatal ao “povo em armas” maquiaveliano, aqui entendido como uma multidão autônoma e potente. Da “cidadania do aplauso”, para citar o nosso candidato, à cidadania radicalmente democrática. Da igualdade sem liberdade, a uma igualdade econômica que é emancipação política e uma igualdade política que é emancipação econômica.

As figuras do morador removido ou despejado, do camelô que apanhou e teve sua mercadoria apreendida, do jovem que não quer o seu futuro decidido e vendido por derivativos financeiros, do carioca que quer participar das decisões sobre sua cidade, do usuário revoltado do nosso sistema de transporte abusivo e desconfortável, do morador que vê o preço de sua moradia ir para as alturas em nome do sonho olímpico, entre tantas outras, compõem definitivamente a nova “coalizão” de trabalhadores, a qual fazia referência Marx no século XIX. Por mais surreal que possa parecer, essa coalizão também é composta pela multidão de pobres que votaram em Paes, não somente por pressão alheia, mas enxergando algo que possa ser apropriado, uma inclusão precária, uma efêmera participação no momento de valorização da cidade, uma possibilidade de autovalorização, um ganho visível ou uma oportunidade de melhorar de vida.

Vejam que no mundo da inclusão diferencial as lutas dificilmente ocorrem a partir de uma meta e uma composição “homogênea”, como no caso do aumento salarial de um determinado grupo de operários. Assim, nunca poderíamos concluir que o pobre que votou em Paes é automaticamente “reacionário”, “desinformado”, “ludibriado” ou “egoísta”, estando fora das lutas por outra cidade. Nos votos de Paes (mas não nele), podemos perceber, por outras vias, distintos métodos de luta e afirmação dos pobres que partem de uma base heterogênea e móvel, nem sempre apreendida pelos dados eleitorais. Os anéis da serpente são ainda mais complexos que os buracos da representação política, parafraseando o filósofo.

Assim, tanto não é verdade que os pobres não votaram no Freixo, como não é certo que aqueles que votaram em Paes estariam “fora” da luta política. Entre os dois votos há uma série infinita de situações e modulações, inclusive a imensa quantidade de votos brancos e nulos. Conheço pessoalmente vários moradores pobres removidos que fizeram campanha para o Freixo (inclusive na televisão) e esperavam ansiosamente o segundo turno. Eles sofreram, como ninguém, o dissabor de viver em uma cidade sem liberdade e não viram qualquer vantagem em votar no Paes, verdadeiro algoz de várias famílias pobres cariocas. No entanto, esse cálculo não é o mesmo de muitas famílias que encontraram algum motivo, já comentados, de votar em Paes. Mais do que nunca é preciso admitir que o desejo de liberdade e igualdade não cabe em um voto, ele faz parte de um movimento.

3) Podemos chegar agora ao terceiro eixo. Ele consiste, exatamente, em perceber as possibilidades que emergem dessa gama infinita de situações, das várias formas de luta e afirmação da vida, de algo que já foi definido como “o movimento real que abole o estado das coisas”. Acredito que elas tem como base um comum, que não é dado a priori, mas é produzido nas infinitas cores, potencialidades e no antagonismo expressado na riqueza social (dos pobres). É, justamente, a produção do comum, a meu ver, que pode fazer (e já faz) implodir as novas hierarquias e expropriações da inclusão diferencial.

Para compreendermos esse terreno é preciso, curiosamente, repetir o esforço feito por Marx para demonstrar as possibilidades revolucionárias da luta salarial. Afastemos os economistas (neoliberais ou não) que desejam reduzir a produção do comum à figura estática da “classe C”, homologando-a no reino do consumo individual, da dívida e da captura empresarial. Mas também é preciso afastar todas as formas de “utopismo”, que acabam por conduzir o comum a um “não-lugar” do futuro e que, por conseguinte, desejam que os pobres sejam logo empurrados para essa sociedade imaginada avant-garde.  Se eles não se movem, são condenados ao descrédito e à ignorância, ou pior, ao trabalho de “conscientização”.

O mesmo se diz das tentações “purificadoras” e utópicas relacionadas à moralização da sociedade. Agora que acabou a campanha podemos dizer: o Caetano é um músico genial, mas está do nosso lado pelo motivo errado, pronto! A corrupção é sempre do comum e da democracia. O denuncismo será sempre pauta da direita e é gerido perfeitamente pelas corporações de mídia. Aliás, isso acabou por atrapalhar a campanha do Freixo, já que a mídia, com facilidade e como era previsível, inverteu as denúncias do candidato e as direcionou contra ele próprio, como no caso das milícias.

Recusar o comum com utopia não significa que estamos nos movendo no terreno da apatia e da falta de esperança. Afinal, somos a primavera carioca! Só que a primavera está sendo produzida a partir de um comum que já existe e que devemos continuar fabricando. O que seria o território ocupado das redes sociais, que se constituiu como espaço autônomo de mídia e de interação social? O que seriam os comitês urbanos pulverizados por toda a cidade, que conseguiram articular “rede e rua”, tecnologia e território? E os militantes que engajaram suas vidas em um movimento que irá além do período eleitoral? O que foi o encontro dos corpos e afetos no comício que reuniu milhares de pessoas sob forte chuva? O que dizer da emocionante panfletagem que vi moradores removidos realizando no Recreio? Ou do apoio da Vila Autódromo, dos trabalhadores precários da cultura e de muitos funkeiros, rappers e MCs?

Aliás, quem não conseguiu relacionar a militância de boa parte dos jovens universitários ao apoio de comunidades removidas não entendeu nada do movimento que alimentou a campanha. Não haveria nada de semelhante entre os deslocamentos causados nos jovens pelo aumento dos aluguéis e os despejos de favelados e pobres? Não seria parecida a imposição do constrangimento para que a juventude seja a “Classe Criativa”, explorada e precarizada nas empresas, bancos, museus e universidades da cidade olímpica, e ao realizado para que os pobres sejam a “Classe C”, nova jazida das empresas e concessionárias de serviços? Assim como muitos fios de cor cinza tecem a exploração na cidade-empresa, outros, muito mais coloridos, ligam os diferentes sujeitos que lutam contra a captura e a exploração na cidade.

É, portanto, no campo da produção contínua do comum, da relação entre as diversas figuras de uma resistência que se dá em múltiplos pontos, que o movimento político pode se tornar social e vice-versa. É nele que não precisamos ser instados a escolher entre uma vantagem social e a emancipação política. É na cidade como direito do comum que as milícias do Estado se tornam impossíveis e todos os “atravessadores” calados; que a ficção do “povo” se dissolve em uma multidão de diferentes subjetividades e que a “base popular” se descola do poder e devém força de transformação.

Enfim, é na relação entre os pobres e o comum que o “Um Rio” pode se dividir em dois: o Rio dos muitos (as coalizões da fábrica social) e o Rio dos mesmos. Dos efeitos desse antagonismo, dependerá o rumo da cidade na era da inclusão diferencial.

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