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O que se perdeu de Junho

Por Renan Porto, UniNômade

holoturia

Daquele evento talvez ainda saibamos muito pouco. Ou talvez fosse melhor dizer que dele aprendemos muito pouco. Ainda são muitos que seguem a buscar a melhor interpretação, a face atrás do véu. “General, agora que sabemos o que realmente aconteceu, o que devemos contar para o povo? E o que devemos pedir para o rei?” Sabemos que Junho de 2013 foi uma fratura na tela do relógio. O relógio tombou e começou a girar diferente. Junho abriu outra temporalidade política e agora parece que mais buscamos entender que tempo é esse do que vivê-lo e experimentá-lo.

O governo Dilma trabalhou para tapar a rachadura no muro, por onde uma luz se insinuava. O governo federal não fez nenhum esforço para frear a repressão violenta das ruas. Fez pior. Encomendou uma lei em regime de urgência para criminalizar as manifestações: a lei antiterrorismo, somada à lei das organizações criminosas sancionada por Dilma em pleno agosto daquele ano de insurgência. No meio disso tudo, o aparato intelectual governista reforçou e refinou o discurso que logo se tornaria consenso repressivo, a seguir desabado sobre as cabeças dos manifestantes. As manifestações foram tachadas de suspeitas e manipuladas, de fascistas, em aliança objetiva com traficantes e imperialistas.

Como já se disse por aí, não era suficiente acabar com Junho em si; era necessário matá-lo duas vezes, a primeira nos fatos, depois a memória. A segunda morte veio da esquerda. Os apologetas da esquerda promoveram uma inquisição contra a heresia e profanação que brotavam na juventude. A poesia e a experimentação das ruas foram atacadas pela linguagem normativa e castradora de analistas marxistas, guardiões da sã doutrina e da técnica do bom governo. E, principalmente, na desonesta campanha eleitoral de Dilma em 2014, quando uma montanha de fatos, valores e consequências foi chapada em análises prosaicas de correlação de forças entre grupos e partidos, sob a sombra invocada da volta do neoliberalismo ao poder. O que acabou acontecendo, mas não pelas razões contidas nessas análises. Como se pudéssemos, a rigor, falar em “volta”. Foi mobilizado o medo, o jogo perde-perde do “menos pior”, a hipocrisia da falsa esperança: “fique, mas melhore”. A esquerda se uniu à lógica securitária do neoliberalismo: não há alternativa. Teme os riscos de aberturas em que precisaria descer à praça e travar a disputa. Muitas vezes, a esquerda é conservadora. Não se expõe a qualquer risco que possa ameaçar o que está instituído e já tem.

A esquerda petista (e seus aliados), enfim, além de tudo é cínica e cronicamente oportunista.  A esquerda petista jogou 13 anos pela realpolitik e nela foi derrotada e agora chora porque julga ter sofrido uma injustiça. Mas não era o jogo da correlação de forças que jogava? E as injustiças não eram praticadas em nome desse mesmo realismo político? Com qual facilidade se mudam os posicionamentos em função da conveniência, para quem se diz protetor de altos valores que estariam ameaçados, por coincidência, só agora. Depois que perdeu na brincadeira, chora lágrimas de crocodilo dizendo que não foi legal estar do lado perdedor. Chamou de jogo da direita quando uma parte da esquerda abriu a chamada por novas eleições para, meses depois, encampá-la ela mesma. Agora apeada do poder decidiu que podia, que voltou a valer falar em novas eleições.

Mas, considerando que a esquerda acaba jogando contra si própria, não quero ficar aqui somente repetindo as críticas a ela. O que já fiz, por exemplo, no ensaio Imobilismo em repetição.  Quero aqui apenas acrescentar outra provocação para aqueles que sonharam com Junho de 2013 e não querem deixar essa horta à míngua, já quase seca, quase morrendo. Porém, que fazer quando os próprios devotos do santo contribuem para que a sua mensagem não se realize e se mantenha preservada no altar? Os devotos parecem preferir preservar a memória cristalizada numa imagem inerte do que dar seguimento ao acontecimento que lhe revelou uma verdade.

Junho não foi apenas a irrupção de uma nova percepção política, o abalo das estruturas de governo, e um consequente rearranjo das correlações de forças. E sei que o “apenas”, na frase anterior, está sobrando. Pelo contrário, eu deveria ter escrito: foi ainda mais do que tudo isso. Junho também foi uma experimentação intensiva de novas práticas urbanas e organizativas. Foi um laboratório de criação, um ateliê onde eram talhadas novas formas de vida. Muitos coletivos e quase-coletivos surgiram, assembleias eram realizadas a todo momento, pulsava uma comunicação transversal entre grupos os mais diferentes, aconteciam ocupações criativas em diversos espaços, a produção intelectual introduzia uma linguagem e uma estética inovadoras. O que restou de tudo isso? O que frutificou?

Aquela juventude de Junho ou das escolas ocupadas foi quem melhor deu seguimento ao que aconteceu em 2013. Foram os que não se renderam ao jogo macropolítico, às disputas em torno do poder do estado, à escolha do melhor gerente para a crise de todos os dias e que vai piorar. Foram os que não se resignaram ao papel de espectador de um teatro ou, na melhor das hipóteses, seus comentadores mais ou menos histéricos. Eles ousaram criar, experimentar, se expor ao risco de intervir mais diretamente na construção do mundo e da existência de cada um neste mundo. No sentido mais material de transformar a relação com o lugar em que se está e o uso que se faz do tempo. Ou seja, colocaram seus corpos como forças criativas, imediatamente políticas. Mas, para quem é gente grande, cheia de credenciais, já crescida em certezas e imagens, que já traçou as suas leituras e experiências pela rota certa e de antemão homologada, aqueles que quando falam de política lembram velhos marinheiros carrancudos, todos esses padecem mesmo é de uma segunda ingenuidade.

Uma boa alegoria para a esquerda hoje seria a de um personagem do Processo kafkiano, a do camponês que está diante da Lei. Passa toda a sua vida esperando a permissão para entrar pela porta onde só ele poderia entrar. E não entra. Que regime de espera seria esse, a da tomada do estado pela via que seja? A da manutenção eterna do governo em nome da governabilidade até virar governismo? Podemos usar esse conto relatado no livro de Kafka como uma alegoria para pensar o tempo. Não estou interessado aqui em repassar as variadas interpretações sobre a obra dele. O que quero apenas anotar de relance é a relação entre o personagem do camponês e o portão da Lei. Sejam lá quais forem as significações possíveis para a Lei, quero pensá-la como um novo regime de temporalidade que só a esquerda poderia adentrar, que a define, afinal é a esquerda que busca o “movimento real que supera o atual estado de coisas”, segundo a definição que Marx e Engels dão ao comunismo no livro A Ideologia Alemã. Mas como mudar esse regime para que não seja uma espera impotente? Para que essa temporalidade seja uma nova relação com os territórios e o tempo de modo mais imanente, direto e produtivo?

Uma das questões centrais a se abordar está naquela fronteira de tensão estudada pelo direito entre organização e caos, segurança e liberdade, instituído e instituinte, estabilidade e instabilidade. Nessa zona incerta “entre” os polos bem definidos, entra em jogo diretamente a disposição do nosso corpo em uma situação de risco, de risco inclusive físico. E isto não é simplesmente enfrentar a polícia. Nós tentamos organizar a nossa vida de modo que possamos gozar minimamente de algum nível de segurança em vários sentidos. Para isso, abrimos mão de coisas que realmente nos fazem sentido. Como no poema Autonomia, da poeta polaca Wislawa Szymborka:

“Diante do perigo, a holotúria se divide em duas: / deixando uma sua metade ser devorada pelo mundo, / salvando-se com a outra metade”. E não há problema de que seja assim.

No capítulo de Mil Platôs (ed. 34), “Como criar para si um Corpo sem Órgãos”, Deleuze e Guattari lidam com esse problema e argumentam que corpo nenhum suportaria o gozo infinito. Precisamos de algum nível de organização enquanto estratégia. Porque ninguém suporta totalmente o caos nem ele seria capaz de produzir o que quer que seja enquanto se resumir a ser caos. E a nossa liberdade depende do quanto de caos se é capaz de suportar segundo uma relação produtiva. Não posso dizer que sempre foi assim e sempre vai ser porque talvez estejamos oferecendo mais da metade do que poderíamos, mais da metade do conatus para ser então devorado pela máquina do mundo. De modo que vivemos com menos, talvez muito menos do que a metade. Posso dizer que a fatia do que conseguirmos fazer fugir depende do risco a que nos expusermos e da boa relação estabelecida com ele.

Para não sermos levados a perceber isso como fatalidade, quero lembrar a possibilidade de outra forma de segurança que não é aquela da técnica e das instituições securitárias. Não se pode perder de vista como são importantes laços fortes de fraternidade de modo que tenhamos com quem contar. É preciso não ter medo de aceitar a ajuda, pois a vida se dá na interdependência. É preciso cultivar a colaboração e a ajuda mútua e esta é a forma de vida capaz de vencer diversas limitações impostas à vida pelo capitalismo. Era como viviam os primeiros discípulos de Jesus narrados pelo livro de Atos: “E era um o coração e a alma da multidão dos que criam, e ninguém dizia que coisa alguma do que possuía era sua própria, mas todas as coisas lhes eram comuns”, Atos 4:32. É como vivem os índios, os zapatistas, e muitas outras comunidades. Nesse caso, o risco consiste em confiar no outro. Não temer acolher o outro nem o perceber como ameaça.

Podemos perceber Junho de 2013, as escolas ocupadas, as acampadas de Puerta del Sol do 15-M, o movimento Occupy Wall Street, a Praça Tahrir etc, como conselhos de um tipo novo. Para Walter Benjamin, no ensaio O Narrador, um conselho consiste em “fazer uma sugestão sobre a continuação de uma história que está sendo narrada”. Jeanne Marie Gagnebin comenta a mesma frase dizendo que “esta bela definição destaca a inserção do narrador e do ouvinte dentro de um fluxo narrativo comum e vivo, já que a história continua, que está aberta a novas propostas e ao fazer junto”.

Todos os acontecimentos citados sugeriram uma forma de dar seguimento à história em que estava presente o fazer coletivo, a colaboração mútua, o encontro. Para dar continuidade a esta narração, salvemos uns aos outros.

 

Renan Porto, poeta e ensaísta, vive em Jequié e participa da rede Universidade Nômade.

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