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O trabalho das contradições, com Hegel, Marx e Spinoza

Por Jason Read | Trad. UniNômade Brasil, publicado originalmente em Unemployed Negativity.

“Pretendo localizar, passando por Hegel, Marx e Spinoza, em cada maneira de pensar sobre uma contradição ou antinomia particular do trabalho, um modo particular no qual o trabalho cruza entre a ética e a economia, o indivíduo e o coletivo, a atividade e a passividade.”

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O trabalho das contradições: uma filosofia do trabalho, com Hegel, Marx e Spinoza

A crise da economia global trouxe a economia de volta ao centro da política. A economia não funciona mais somente como um pano de fundo silencioso das lutas políticas, tornando-se ela própria politizada, pelo menos no plano da retórica. O problema do trabalho foi levado ao centro da retórica política, ainda que de maneira contraditória e ambígua. O movimento Occupy Wall Street e várias outras ocupas pelo mundo organizaram um discurso ao redor do tema do trabalho, contrapondo a Main Street (a rua em que o povo anda) e Wall Street (a rua dos banqueiros e mercado financeiro). Isto é, contrapondo aqueles que trabalham produzindo bens e serviços, e portanto úteis à sociedade, e aqueles que apenas exploram os produtos do trabalho, com elaboradas e complexas fórmulas e equações, gerando dívidas, sem um papel produtivo para a sociedade. Trabalhadores x especuladores. Essa é, também, uma divisão estabelecida entre o trabalho produtivo x improdutivo, produtores x parasitas. Essa divisão é espelhada, — o que significa dizer que é refletida e invertida, — na retórica de vários programas governamentais por austeridade, corte de políticas sociais, e novas políticas voltadas ao esforço de “pôr as pessoas para trabalhar”, terminando por outro lado com os “benefícios” de aposentados, inválidos ou desempregados, esses que, segundo essa retórica, “vivem do trabalho dos outros”.

Não estamos mais assombrados pelo espectro do comunismo. A assombração agora consiste na figura do parasita, presente ao longo do inteiro espectro político-ideológico. O discurso ao redor do trabalho se tornou a base de populismos à direita e à esquerda, em ambos os casos supervalorizando o trabalho e o trabalhador, as massas laboriosas, essa maioria que sustentaria a sociedade e cujos interesses precisariam ser protegidos contra a minoria parasitária, seja essa minoria composta por empresários ou funcionários públicos, seja por desempregados, aposentados e outros “beneficiários” das políticas sociais. No fogo cruzado entre populismos concorrentes, sucede uma transformação social e tecnológica do mundo do trabalho, e a percepção cada vez mais nítida que o “bom emprego” — imediatamente associado à ideia de uma classe média com bom nível de conforto, segurança e estabilidade — tenha desaparecido pra valer, substituído enfim por uma combinação instável de terceirização e tecnologia.

O trabalho está no centro da disputa política e está definindo o conceito de “povo”, no exato momento histórico em que as suas condições políticas e tecnológicas sofrem uma mudança radical. A tarefa para qualquer investigação filosófica sobre o conceito de trabalho, por conseguinte, é menos a tentativa de cercar-lhe uma definição, buscando-a num plano antropológico ou ontológico — ou que seja deontológico, das normas e programas éticos, sobre o que e como o trabalho deveria ser —, do que um problema de investigar os pares antinômicos que definem o problema do trabalho, na tensão mesma do presente momento político. A ideia geral de pensar a partir das antinomias foi tomada de empréstimo do livro de Kathi Weeks, O problema com o trabalho [The problem with work].

Seguindo sugestão da autora, pretendo analisar três dualidades do trabalho, todas elas apresentadas de maneira antinômica, por meio de contradições. As antinomias situam o trabalho ao mesmo tempo como: realidade econômica: produção de bens e serviços para a sobrevivência; como assunto ético: componente necessário da formação de responsabilidade e caráter; como assunto político: entre as condições coletivas e o esforço individual; e orientação existencial: em termos de empenho individual e sua inserção em instituições e estruturas sociais. 

A seguir, analiso as antinomias por meio de três filósofos: Hegel, Marx e Spinoza. A respeito de Hegel, analiso o par ético e econômico. Com Marx, coletivo e individual. Com Spinoza, instituição e individual. Em cada caso, o objetivo será examinar o que dizem sobre o trabalho, concentrando-se em especial na tomada de posição dos autores em meio a significados conflitantes e diferentes para cada conceito, bem como de que maneira o conceito de trabalho ilustra e desdobra a filosofia de cada um. Finalmente, deixarei clara a colocação do problema em termos de antinomias, com referência ao trabalho de Weeks, ressaltando a “efetividade dos conflitos internos entre eles, sem presumir a resolução dialética dos pares e a trajetória teleológica”. Porém, como argumentarei abaixo, não fica claro que todos os filósofos citados compartilhem dessa visão, de que não seja possível resolver dialeticamente as dualidades internas.

Hegel

Talvez não surpreenda que Hegel tenha algo a dizer sobre contradições — e não antinomias — do trabalho, uma vez que a ideia de contradição integra a dialética hegeliana. A contradição mais conhecida do trabalho está presente na passagem da famosa dialética do Mestre e escravo, presente na Fenomenologia do espírito. Nessa passagem, Hegel estabelece que a autoconsciência do homem está baseada no desejo. Mas o desejo não pode ser o desejo por objetos materiais necessários, comida e água, que formem a base da vida natural, mas o desejo por reconhecimento. O reconhecimento, por sua vez, não é possível sem luta, uma luta predicada na ideia que, para ser reconhecido, ser visto como humano, é preciso colocar a vida em risco. A luta chega a um fim aparente com a humanidade cindida em duas, dividida entre o lado do mestre, esse que arriscou a vida para ser reconhecido, e o lado do escravo, quem desistiu do próprio reconhecimento a fim simplesmente de viver. Mas este é apenas o começo da história. Hegel a partir daí tenta mostrar como essa aparência de resolução é contraditória diante da realidade, na lógica real do reconhecimento.

Sobre o reconhecimento, o mestre se encontra numa posição oposta à inicialmente pretendida. O mestre se torna mestre através da luta, através da declaração que o reconhecimento, visto como uma consciência independente, é mais importante do que a própria vida. Porém, o mestre, no final, termina por ser reconhecido ele próprio por alguém que, a seu turno, ele não pode reconhecer: o escravo. É possível dizer que o oposto seja verdade para o escravo: primeiro ele prefere a vida como escravo à luta pelo reconhecimento, e depois termina de qualquer maneira encontrando o reconhecimento, mas através do mestre. No entanto, uma inversão tão direta não é possível: o escravo nunca recebe de volta o reconhecimento do mestre. Na inversão dialética desta lógica, o mestre é revelado no final como o escravo. E o escravo, igualmente, é revelado ser o mestre. A inversão se dá em relação ao objeto, no tocante à existência material de ambos. Mas se dá, também, na relação com o outro sujeito. O mestre é escravo não porque seja reconhecido pelo escravo, por alguém que não pode ele por sua vez reconhecer, mas sim porque a relação do mestre com o objeto é de puro objeto do desejo, é uma mediação absoluta em sua imediaticidade, uma vez que o escravo é quem trabalha no objeto e, portanto, o mestre não pode excluí-lo como a mediação do seu desejo, não pode eliminá-lo e passa a depender dele.

Como escreve Hegel: “o trabalho, por outro lado, é desejo refreado, é transiência bloqueada; noutras palavras, o trabalho forma e molda a coisa” (Hegel, 1977, p. 118). O trabalho unido com o medo da morte prova ser uma outra direção para o reconhecimento, ou pelo menos em parte: o escravo não é reconhecido no processo, e acaba reconhecendo o mestre através de um mundo que é produto de seu próprio trabalho, do trabalho do escravo. O trabalho constitui base para o reconhecimento. Embora a passagem de Hegel sobre a autoconsciência tenha começado com uma divisão rígida entre apetite e desejo, — entre relações com o mundo dos objetos e dos sujeitos, o desejo por coisas e o desejo por reconhecimento, — a inversão da relação do mestre e do escravo obscurece a distinção. O mais importante, para Hegel, está menos na aguda divisão entre o desejo por reconhecimento, — o que também poderíamos chamar intersubjetividade, — e as relações com as coisas, do que a negação fundamental da existência determinada de alguém: ser reconhecido é ser visto como algo mais do que esta existência determinada, um ponto que pode ser alcançado, seja através da instabilidade do medo e da determinação do trabalho, seja através do reconhecimento. Alguém pode chegar ao reconhecimento de si próprio, à percepção do potencial de alguém, — seja através do reconhecimento de um outro, seja do reconhecimento de si por meio do mundo transformado pelo trabalho.

A ideia do trabalho como externalização e reconhecimento de si está em tensa ligação com a discussão de Hegel sobre o trabalho em Filosofia do direito. Na seção dedicada à sociedade civil, o trabalho não é mais visto como externalização de si, mas como internalização das normas e comandos sociais. O trabalho é um processo de educação, uma educação inscrita na materialidade das coisas e na interconexão das relações sociais.

Como escreve Hegel: “A educação prática através do trabalho consiste na necessidade autoperpetuadora e no hábito de se ocupar de um modo ou de outro, na limitação da atividade de alguém para servir à natureza da matéria em questão e, em particular, da vontade arbitrária dos outros, e num hábito adquirido através desta disciplina, de validade objetiva e habilidades universalmente aplicáveis.”

O trabalho faz o polimento das asperezas da particularidade, fazendo os homens intercambiáveis, contáveis ou, noutras palavras, disciplinados. É possível tomar a contradição entre esses dois textos diferentes, escritos 15 anos um do outro. No primeiro, o trabalho é visto principalmente como externalização: expressão dos pensamentos de alguém, o potencial e disciplina sobre o mundo, uma expressão que torna possível a reflexão, e o reconhecimento daquele potencial e de si próprio. No segundo, o trabalho não é mais a expressão da individualidade, de um si particular, mas da educação de um si inscrevendo-se em normas e hábitos universais. A contradição entre as duas ideias de trabalho, expressão x educação, não pesa somente sobre a escrita de Hegel, na sua filosofia, mas toca também a natureza do trabalho em si. Somos forçados, como amiúde é o caso em Hegel, a admitir que as duas faces são verdadeiras, que o trabalho é tanto expressão de nós mesmos, quanto construção de nós mesmos — ocorrendo uma busca por alguma superação, alguma resolução, dessa contradição. “O que você faz pra viver” é mais do que um chavão coloquial, a frase guarda igualmente a autoexpressão e a determinação de alguém, o modo como fabricamos nós mesmos através do que nós fazemos, — porém, também, o modo em que somos fabricados e moldados por uma história que não escolhemos.

A contradição central do conceito do trabalho em Filosofia do direito implica essa contradição entre as dimensões individual e social do trabalho. Não a contradição em seu aspecto de externalização e educacional, ou aspecto expressivo e formativo, — mas a contradição social entre a dimensão ética, o papel do trabalho o hábito formador e no caráter, e seu aspecto econômico, produtor de coisas. Essa contradição aparece em qualquer tentativa de resolver a crise do desemprego e superprodução, endêmica na sociedade civil. Hegel argumenta que, na medida em a tecnologia e a divisão do trabalho se desenvolvem, elas necessariamente produzem uma massa de desempregados, tornada obsoleta pelas mudanças. Neste grupo, que Hegel chama de ralé, aparece a contradição central não só da sociedade civil mas, com mais relevância, de como o trabalho é visto.

Como Hegel escreve: “Se o fardo direto [de apoio] caísse sobre a classe mais rica, ou se os meios diretos estivessem disponíveis noutras instituições públicas (como hospitais ricos, fundações, ou monastérios), para manter a crescente massa empobrecida com o padrão de vida normal, a qualidade de vida dos necessitados seria garantida sem a mediação do trabalho, isto seria contrário ao princípio da sociedade civil e o sentimento de autossuficiência e orgulho entre seus membros individuais (Hegel, 1991, p. 267).

Prover recursos sem trabalho seria contornar o seu papel ético fundamental, criando indivíduos que terão as necessidades satisfeitas, mas não a necessidade de reconhecimento e pertencimento. Sem trabalho, elas seriam frustradas. A solução oposta, igualmente unilateral, é tão defeituosa quanto. Prover a ralé desempregada de trabalho, com disciplina e pertencimento, contorna o aspecto econômico: gerando uma superprodução de bens e tirando do trabalho aqueles com emprego. O estatuto do trabalho é simultaneamente ético e econômico, provendo tanto as necessidades materiais quanto as espirituais, significando que qualquer tentativa de focar apenas em um lado da relação causa efeitos desastrosos do outro lado. É impossível que o trabalho seja tarefa ética da disciplina sem que produza efeitos na economia, assim como é impossível prover todas as necessidades sem imediatamente minar a dimensão ética do trabalho. Dessa contradição, Hegel conclui: “… apesar do excesso de riqueza, a sociedade civil não é rica o suficiente.” Apenas o Estado pode resolver a contradição da sociedade civil, mas o faz apenas ao deslocá-la. O estado estabelece colônias para empregar os desocupados e absorver a superprodução de bens.

Uma vez mais a identificação hegeliana da contradição é de interesse não somente no que revela de seu próprio pensamento, mas a respeito do trabalho em geral. A contradição entre a dimensão ética e a econômica do trabalho, entre o trabalho como o que molda os indivíduos através da disciplina e do caráter, e o trabalho como produtor de bens e serviços, pode ser vista na história de algumas das mais antigas respostas à instabilidade do capitalismo: as workhouses [NT. lugar onde os desempregados e pobres podiam trabalhar e se sustentar] e as formas de assistência pública, até os dias de hoje. Através da história dessa contradição, é possível mapear duas tendências diferentes como respostas. Por um lado, o foco na dimensão ética do trabalho, insistindo que as pessoas devam ser postas para trabalhar de maneira a aprender sobre a responsabilidade e a autoestima. Como Kathi Weeks resume o ponto de vista: “Trabalho não é apenas defendido com base na necessidade econômica e dever social; é amplamente entendido como uma prática individual moral e uma obrigação coletiva ética.” (Weels, 2012, p. 11). Desta perspectiva, qualquer tentativa de conceder recursos, ou assegurá-los, sem o correspondente trabalho, conduz invariavelmente a uma crise ética. Ao contrário disto, existem aqueles que focam na dimensão econômica do trabalho, argumentando no sentido  que o aumento da produtividade do trabalho termina por deixar uma massa de pessoas desempregadas, enquanto proveja simultaneamente recursos suficientes para atendê-las, devendo portanto ser distribuídos. No caso, o trabalho é entendido de modo puramente econômico, como provimento dos bens necessários; se a sociedade pode fazer isso com um número encolhido de trabalhadores, então os bens e trabalhos simplesmente deveriam ser redistribuídos para atender a todos. Contudo, os rótulos “ético” e “econômico” devem ser eles próprios ser sujeitos de uma inversão dialética, visto que a contradição, assim como aquela entre o mestre e o escravo, inverte a si própria. Muito do foco ético no trabalho conduz à crítica do estado de bem estar social, para focar os efeitos desmoralizadores da dependência, caminha lado a lado com interesses econômicos de quem deseja ver menos gastos estatais e impostos; enquanto o entendimento “econômico” do trabalho, que foca em seu poder produtivo e transformador, caminha ao lado de um desejo por florescimento humano e ético (geralmente subentendido). O argumento de Hegel leva essa contradição entre ética e economia à resolução no conceito de estado. Porém, a história manteve a contradição aberta, numa luta onde a ética e a economia do trabalho estão sempre em conflito.

Marx

O exame de Marx das contradições do trabalho, — desde a sua crítica à alienação em 1844, até as contradições entre o trabalho abstrato e o concreto, no Capital, — excederia em muito o tempo aqui disponível. Meu interesse, seguindo a trilha da discussão sobre Hegel, é mapear um dos modos com que Marx investiga e revela uma dualidade central do trabalho, uma dualidade que talvez seja melhor descrita como antinomia, ao invés de contradição. Enquanto Hegel ressaltara a realização gradual da natureza contraditória do trabalho na sociedade civil, e as contradições que seriam resolvidas através do estado; Marx não aceita a solução teleológica hegeliana para as contradições do capital. Marx interrompe a progressão linear em direção ao estado, insistindo na necessidade de uma ruptura radical.

Essa é uma das muitas interrupções ou correções que Marx faz de Hegel, na tese hegeliana que a economia deveria ser entendida como englobando duas esferas.  Antes do que ver a sociedade civil definida por um único ideal ético, aquele da busca do interesse individual, Marx vê o capitalismo, esse modo de produção, como inerentemente dividido entre a esfera da circulação, — o mercado onde os bens, inclusive a força-trabalho, são trocados, — e o que às vezes é referido como “a casa oculta da produção”: onde não somente as mercadorias, mas a própria relação do capital é produzida e reproduzida. O deslocamento entre as duas esferas, da circulação à produção, do mercado à fábrica, muda profundamente o modo como o trabalho vem a ser conceitualizado e experimentado. O mercado, inclusive o mercado de trabalho, está predicado no princípio de indivíduos buscando seu próprio interesse pessoal, negociando pelo melhor preço possível para o que estejam vendendo ou comprando.

Como Marx escreve numa passagem densa e particularmente retórica do Capital:

“A esfera da circulação ou troca de mercadorias, dentro de cujas fronteiras a compra e a venda da força-trabalho sucede, é de fato o próprio Éden dos direitos inatos do homem. Ela é o reino exclusivo da liberdade, igualdade e… Bentham. A liberdade, porque tanto o comprador quando o vendedor de uma mercadoria especial, a força-trabalho, está determinada pela sua própria autonomia da vontade. Eles contratam como pessoas livres, iguais perante a lei… A única força trazendo-os junto, — e colocando-os em relação um com o outro, — é o egoísmo, o ganho, o interesse privado de cada um.”

Dois pontos razoavelmente complexos decorrem dessa densa passagem. Primeiro, a conexão, razoavelmente sarcástica, do “Éden dos direitos inatos do homem” com o mercado, sugere que os nossos ideais de liberdade, especialmente como são definidos em termos de escolha livre e autonomia, refletem as relações de mercado. No mercado, como consumidores, nós nos percebemos como sujeitos livres, isolados e independentes, sujeitos a nenhuma amarra que não estivéssemos dispostos a aceitar. A ideia é estendida ao mercado de trabalho, tornando-se sua ideologia espontânea, da maneira como a troca de trabalho por um salário se equipara, ainda, à outra troca de dinheiro por mercadoria.

Isso nos leva ao segundo ponto, Marx contrapõe o “Éden” ao que ele chama “a casa oculta da produção”. Nessa casa oculta, a igualdade aparente entre o comprador e o vendedor é convertida na assimetria entre capitalista e trabalhador. A passagem de Marx ilustra a desigualdade graficamente, dizendo que o trabalhador “trouxe a sua própria pele ao mercado e agora não tem nada a esperar que não seja — ser esfolado” (p. 280). Entendido prosaicamente, esse “esfolamento” consiste na extração da máxima quantidade de trabalho, o máximo valor, da força-trabalho uma vez adquirida. Na esfera da circulação, trabalhadores e capitalistas se encontram como iguais, como comprador e vendedor, mas a própria igualdade para a troca das mercadorias exige que venham a entrar em conflito. O capitalista, o comprador da força-trabalho, é motivado a tirar o máximo de seu dinheiro, enquanto o trabalhador tenta tirar o máximo de sua mercadoria especial. O problema fundamental é que o trabalhador não está vendendo uma coisa, mas força-trabalho, tempo, e assim o conflito não procede por algum tipo de barganha na esfera da circulação, mas, sim, um conflito sobre o trabalho no interior da “casa oculta da produção”, visto que o patrão busca tornar a força-trabalho mais produtiva. “Aqui existe, portanto, uma antinomia, direito contra o direito, ambos igualmente portadores do selo da lei da troca. Entre direitos iguais, decide a força.” (p. 344) A transição da esfera da circulação à esfera da produção é a mesma transição entre o domínio da igualdade ao domínio das assimetrias de força.

A diferença entre troca e produção não se esgota na diferença entre igualdade e força. Troca e produção também se distinguem em termos da apreensão específica das relações sociais. Na troca, os indivíduos interagem como indivíduos isolados, contratando e batalhando segundo seu próprio interesse pessoal. Contrariamente, a esfera da produção, especialmente na medida em que é industrializada, e sujeita à divisão do trabalho, é irredutivelmente coletiva. Esta dimensão coletiva não é vivida explicitamente como projeto coletivo, ou unidade política. Marx argumenta como o aumento coletivo do poder dos trabalhadores tem múltiplas causas — da imitação à competição —, mas o que importa consiste em que o total é sempre maior do que a soma das partes.

Como diz Marx:

“A força produtiva especial do dia de trabalho combinado é, em todas as circunstâncias, um poder produtivo social do trabalho, ou poder produtivo do trabalho social. Este poder surge da própria cooperação. Quando o trabalhador coopera de modo coordenado com outros, ele se despe de sua individualidade, e desenvolve as capacidades desta espécie [Gattungsvermogen]”

Como Etienne Balibar sustenta, a respeito desta passagem: “Se queremos entender as conclusões a que Marx está mirando, devemos conferir à proposição sua máxima força. Não apenas o trabalho se torna historicamente “socializado”, uma atividade transindividual; essencialmente ele sempre foi uma, haja vista que não há trabalho sem cooperação, mesmo nas formas mais primitivas.” A produção é sempre a produção de uma força coletiva, da força de relações sociais, cooperação e coordenação. Se acrescermos à tese de Marx que todo trabalho, do mais simples ao mais complexo, envolve um aspecto mental necessário, pensamentos, hábitos e concepções, — um aspecto mental que engloba o conhecimento compartilhado da humanidade, o que Marx chama “general intellect”, — então é possível dizer que a cooperação excede aqueles que estão fisicamente presentes, englobando o conhecimento social compartilhado.

Nós podemos acrescer outra contradição, ou outra antinomia, à da venda individual x força coletiva do trabalho, à dialética hegeliana, entre as dimensões ética e econômica do trabalho. Esta é uma contradição entre as relações sociais determinando o modo com que o trabalho é vendido, como contrato individual, e o modo com que é executado, como um processo coletivo e social.

Marx resume a antinomia ao abrir os Grundrisse, como segue:

“Somente no século 18, na “sociedade civil” as várias formas de conectividade social confrontaram o indivíduo como um mero meio para seus fins privados, como uma necessidade externa. Mas a época que produziu este ponto de vista, do indivíduo isolado, é precisamente a época das relações sociais mais desenvolvidas (e deste ponto de vista, gerais).”

No reino da troca, no mercado, o mundo nos aparece como reino dos meros meios para os nossos fins privados; porém, na esfera da produção, somos colocados para trabalhar na inteireza das relações desenvolvidas da humanidade. Assim como a contradição hegeliana entre a dimensão ética e a econômica do trabalho, a antinomia entre os aspectos individuais e sociais do trabalho define uma longa história da luta política. Nesse caso, a luta é dividida entre a tendência capitalista de reduzir a dimensão social do trabalho a uma relação puramente individual de mercado, e a tendência oposta, que pode ser descrita como proletária, de transformar a dimensão cooperativa compartilhada implícita e social em solidariedade.

A ordem política e econômica corrente, o que é referido amiúde como neoliberalismo, pode ser entendida como uma extrema individualização e competição da relação de trabalho. Os trabalhadores são cada vez mais encorajados a ver-se não como classe, — e menos ainda como classe com nada a perder que não seus próprios grilhões, — mas como empresas de um homem só, empreendedores de si mesmos e seu próprio potencial. Como Michel Foucault escreve resumindo o ponto de vista: “Homo economicus é um empreendedor, um empreendedor de si mesmo”.

No imaginário atual, a solidariedade, — o reconhecimento compartilhado da condição de cada um enquanto condição coletiva, — é por definição suspeita: existiriam apenas indivíduos engajados na competição. A sociedade não existe. Apesar da disseminação desta perspectiva, que reduziria todas as relações sociais a relações de mercado; ela não é inteiramente hegemônica. Perigos ecológicos colocam em primeiro plano a natureza coletiva de nossas condições ambientais, enquanto a ascensão da tecnologia digital desprendeu o conhecimento de sua corporalidade física, trazendo a herança intelectual comum à luz. A tendência de ver tudo, cada relação humana e atributo, como mercantilizável e vendável acaba minada pela possibilidade de reconhecer que as bases da experiência, do planeta, a base natural de existência, os hábitos sociais, a linguagem e o conhecimento só podem existir em comum. A contradição de Marx entre o indivíduo isolado e as “relações sociais mais desenvolvidas” se manifesta politicamente como o conflito entre o neoliberalismo e o comum.

Spinoza

Dos três filósofos aqui reunidos, Spinoza parece o mais improvável. A letra de seus trabalhos não diz nada sobre o conceito de trabalho, e o espírito de sua escrita pareceria mais voltado a contemplar Deus ou a natureza sub specie aeternitatis, sem espaço para falar das contradições históricas do trabalho. Embora seja verdade que Spinoza não oferece nada parecido com alguma contradição específica entre as dimensões ética e econômica do trabalho, ou seu aspecto individual, ele 0ferece, no entanto, um caminho para pensar sobre a questão maior na base de cada uma dessas contradições: a relação entre o nosso eu individual e o esforço coletivo voltado a preservar a existência e a ordem social existente. Como Weeks argumenta, uma das antinomias centrais do conceito de trabalho tem a ver com a racionalidade e a irracionalidade do trabalho, o trabalho como a busca racional da própria autopreservação e a irracional preservação da ordem social que, a seu turno, pode comprometer a autopreservação individual.

No centro da ontologia de Spinoza, está a ideia que tudo se define por um esforço particular em perseverar no ser, um esforço que, no caso da humanidade, está alinhado com o desejo. Esse esforço, que é chamado conatus, tem levado alguns leitores a ver em Spinoza um precursor conceitual do neoliberalismo contemporâneo. O conatus explicaria a luta irredutível em prol do interesse próprio, definido em termos de prazer ou dor, no interior de qualquer desejo ou ação. No entanto, boa parte do interesse recente em Spinoza, por pensadores como Antonio Negri, Etienne Balibar, Frédéric Lordon e Pascal Sévérac, reside em como o trabalho de Spinoza trata o conceito de esforço, de subjetividade, que é rigorosamente transindividual. De diferentes maneiras, todos eles argumentam que tal leitura “neoliberal” perde de vista o modo em que o esforço no interior de cada coisa, o esforço implicado em cada existência, está profundamente modificado e afetado pela multiplicidade de relações, que definem e determinam o ser finito. O esforço é determinado pelos afetos, pelo aumento ou diminuição da potência de agir, percebida como alegria (aumento) ou tristeza (diminuição). Esses afetos fundamentais da alegria e tristeza permitem incluir uma articulação mais complexa dos afetos: a alegria se torna amor quando é projetada a um objeto que é percebido como a sua causa, enquanto o ódio está orientado na direção da percepção da causa que produz tristeza. Os afetos se tornam cada vez mais complexos, quer dizer, cada vez mais relacionais ou transindividuais, na medida em que englobam não apenas o objeto do amor ou ódio, mas as vicissitudes implicadas na relação, e nas relações de relações. Como Spinoza argumenta, nós amamos o que outros amam, e odiamos o que parece fazer mal ao objeto de nosso amor. Longe de estabelecer o primado do interesse próprio, a antropologia de Spinoza da interação humana estabelece o aspecto relacional fundamental de todo esforço. Nosso esforço é sempre determinado, tanto quanto é determinante, mas estamos desavisados disso. Como Spinoza argumenta, “é claro que nós nem nos inclinamos para, nem desejamos qualquer coisa porque julguemos que seja boa, ao contrário, nós julgamos que alguma coisa seja boa porque nos inclinamos a ela, a queremos, a desejamos” (E, III, P9, Es.). Nosso desejo está sempre situado, sempre composto, dentro e através da capacidade de ser afetado e relacionar-se com os outros. O círculo complexo de relações exige um grau cada vez maior de ambivalência, uma vez que o mesmo objeto, a mesma pessoa ou coisa, se torna tanto o objeto de amor quanto de ódio, de esperança e medo. Esses afetos complexos e ambivalentes orientam fundamentalmente o conatus, formando a base do que podemos chamar de composição afetiva.

Se o capitalismo tem a sua característica definidora na separação dos produtores em relação aos meios de produção, então essa separação altera radicalmente o modo particular com que nós nos esforçamos em obter o que amamos e evitar o que odiamos. Frédéric Lordon argumenta que a transformação fundamental, necessária para atualizar a composição afetiva de Spinoza, está na separação fundamental entre o esforço, — nosso empenho em preservar o nosso ser, — e seu objeto, as mercadorias que satisfazem nossas necessidades e desejos. Essa separação dos meios de produção é menos uma perda fundamental, como se fosse uma alienação dos objetos em relação aos sujeitos, do que uma transformação fundamental da própria atividade. Ocorre uma indiferença em relação à atividade: as metas de uma atividade particular são despojadas de significado, das orientações particulares de bom ou mal, perfeito ou imperfeito. Tanto quanto nós pudermos nos envolver afetivamente a qualquer emprego, a qualquer tarefa particular, desenvolvendo assim as nossas relações e potencial, tornando-se causa de nossa alegria; isto é secundário em relação ao desejo e à necessidade de dinheiro. Existe, portanto, uma divisão afetiva no núcleo do processo de trabalho: entre a alegria da potência na atividade própria de alguém, e os objetos e a acumulação que essa atividade torna possível. O que estou chamando de composição afetiva do trabalho é como, num certo momento no tempo, esses dois aspectos são valorizados ou desvalorizados, quanta alegria é buscada na atividade do trabalho ela mesma, e quanto é buscada em termos de acumulação que ela torna possível. Esse deslocamento entre atividade e objeto é complicado, tanto a causa e o efeito das relações cambiantes de esperança e medo num dado momento histórico.

Lordon oferece um rascunho da história da composição afetiva do trabalho, estruturada em termos de um deslocamento entre o fordismo e o pós-fordismo. O primeiro período, do fordismo, é definido pelas transformações entrecruzadas quer da separação da atividade em relação ao valor, quer do investimento afetivo no consumo. O trabalho é simplificado e fragmentado, arrancado dos prazeres e da possibilidade de ser objeto de uma maestria individual. Este é o trabalho da linha de montagem. Ao mesmo tempo, a esfera do consumo, o número e tipo de mercadorias, é expandida. O famoso “um dia igual cinco dólares” de Ford aumentou o poder de consumo. A composição afetiva do fordismo pode ser descrita como uma reorganização fundamental do conatus, do desejo, para longe do trabalho, da atividade, e em direção do consumo. Como Stuart Ewen afirma, resumindo essa transformação, “A produção científica prometeu tornar a noção convencional de produtor/consumidor autossuficiente anacrônica.” A atividade do trabalhador é fragmentada, tornada parte de um todo que a excede, tornando-se tanto passividade quanto atividade. A tristeza do trabalho, a sua natureza cansativa, é compensada com as alegrias do consumo. A transformação do investimento afetivo na atividade do trabalho para o investimento afetivo no consumo pode ser também descrita como um deslocamento da alegria ativa, a alegria na capacidade de agir e a transformação da ação, em alegria passiva.

Pascal Sévérav argumentou que alegrias passivas, — isto é, aumentos da potência de que não se é causa, gerados por causas externas — funcionam como uma barreira fundamental em tornar-se ativo. Sévérac assim modifica uma imagem geral da política afetiva de Spinoza. Não se trata de uma oposição brusca entre tristeza e alegria, passividade e atividade, em que a tarefa seria simplesmente alternar da tristeza à alegria, da passividade à atividade. Como Sévérac argumenta, a ideia de uma alegria passiva, uma alegria que não é causa, fundamentalmente transforma essa oposição brusca. Todas as variações têm suas alegrias e amores específicos, Spinoza não deixa de prestar atenção ao prazer particular do bêbado, e outras alegrias passivas, tais como aquelas da criança e as da fofoca. A tristeza não é um componente necessário da passividade. Isto não quer dizer, contudo, que todas as alegrias sejam iguais. Existe uma inatividade fundamental, uma patologia, no interior dessas alegrias passivas, mas elas são de qualquer maneira alegrias. A leitura de Sévérac tem dois efeitos primários para o entendimento da composição afetiva do trabalho. Primeiro, esclarece o que se quer dizer com atividade, a atividade não é algum tipo de ação específica, tampouco alguma norma genérica de atividade, mas sim a capacidade de transformar as condições da própria atividade. A alegria ativa não é uma norma, mas a capacidade de criar novas normas. Em segundo lugar, e talvez mais importante, Sévérac argumenta que a alegria passiva funciona como uma barreira para que seja possível tornar-se ativo. Este argumento é baseado no entendimento de Spinoza sobre a natureza parcial das alegrias passivas. Spinoza argumenta que tais alegrias podem ser excessivas por causa de seu envolvimento com “uma parte do corpo que pode ser mais afetada que outras” (E, IV, P44, Es.). Como Sévérac argumenta, partes no sentido que podem incluir não apenas órgãos do corpo, como do paladar ou do prazer sexual, mas também impressões e memórias, e suas ideias correspondentes. Na medida em que alegrias passivas se concentram em uma parte do corpo, as ideias passivas são isoladas das noções comuns. A passividade não é necessariamente uma tristeza, uma alienação, mais do que seja a fixação na ideia ou memória, de uma ideia de que não se é causa. Ainda que algo traga alegria a alguém, isto está fora de sua autonomia. É desta perspectiva que se pode pensar não apenas na passividade do coração apaixonado, ou da obsessão pelo dinheiro, uma ideia e alegria passivas, mas também os prazeres do consumo. Esses prazeres não são apenas passivos, sujeitos à publicidade e o controle de outros, mas também parciais, engajando este ou aquele prazer, em vez da capacidade de produzir e transformar a própria possibilidade de tornar-se ativo, as próprias condições que determinam a alegria.

O compromisso fordista pode então ser distinguido do período posterior, pós-fordista, no tocante às articulações dos afetos. Falando de maneira abrangente, essas transformações podem inicialmente ser descritas pelo desmantelamento da segurança e da estabilidade do trabalho, vigentes no fordismo. O compromisso fordista trouxe com isso uma dimensão de segurança e estabilidade, associada à negociação coletiva e à centralidade do contrato. O pós-fordismo, como é definido por Lordon, é primeiro uma transformação das normas e estruturas que organizam e estruturam a ação. Como tal, ele é fundamentalmente assimétrico, o trabalhador é exposto a mais e mais riscos, enquanto os capitalistas, especialmente aqueles preocupados com o capital financeiro, são liberados dos riscos clássicos do investimento. A perda de segurança para o trabalhador muda a dimensão afetiva do dinheiro. Não é mais um objeto de esperança, um meio possível para realizarem-se os desejos, ainda que em termos de alegrias passivas de consumo, mas se torna o que afasta o medo. O dinheiro se torna parte do desejo por segurança, a única segurança possível: as habilidades de alguém, suas ações, não tem mais valor no futuro, não garantem nada: mas o dinheiro sempre terá. É possível entender esse deslocamento do fordismo ao pós-fordismo como um deslocamento entre o regime da esperança (respingado de medo) ao regime do medo (respingado de esperança). Spinoza argumenta que a esperança não pode ser separada do medo e vice-versa. Qualquer ideia sobre o que esperamos acontecer não pode ser separada do medo que não aconteça. Pode-se argumentar que a precariedade é melhor entendida como um conceito afetivo. É menos uma questão de algum deslocamento objetivo no estatuto da segurança, do que um deslocamento sobre como o trabalho e a segurança são percebidos.

Se a precariedade pode ser usada para descrever adequadamente a vida econômica contemporânea é menos porque todo mundo esteja trabalhando sob algum tipo de contrato temporário ou por projeto, ainda que esses institutos tenham se tornado significativos, do que por causa de um senso constante de insegurança, infundido em cada situação de trabalho. A precariedade afeta mesmo o emprego estável através de sua transformação tecnológica. Sempre é possível estar trabalhando ou pelo menos em contato com o trabalho, e uma ansiedade generalizada infunde todo o trabalho, o padrão ou a medida esperada do trabalho se torna cada vez mais difícil de perceber. A produtividade não é mais medida em termos de coisas produzidas, como era para o trabalhador fordista, mas em termos de valor agregado a serviços ou à cotação das ações da empresa. O trabalho é ainda mais abstraído, não somente de seu objeto, mas da atividade mesma, assim como a atividade perde qualquer padrão interno com que possa ser medida.

Apesar, ou talvez por causa dessa ansiedade generalizada, o pós-fordismo se caracteriza por um regime normativo novo. Enquanto o fordismo se caracterizou por ser um regime de consumo, marcado pelas alegrias passivas do consumo, que compensam a perda de autonomia no trabalho, a sua tristeza, o pós-fordismo se caracteriza por uma identificação superior com o trabalho. Os ideais pós-fordistas do capitalismo flexível apresentam a precariedade e a instabilidade do trabalho como ideais de risco e chances de autotransformação. Esta norma é um deslocamento da tonalidade afetiva. Existe uma tentativa de repaginar o medo da instabilidade como esperança que o próximo emprego será melhor, que os próprios contatos e redes estabelecidos ao longo do trabalho vão produzir uma oportunidade melhor. A acumulação linear do fordismo, o ato simples de investir o próprio tempo e acumular experiência e antiguidade, é substituída pelo ideal da constante autoinvenção. Enquanto possa ser útil falar do deslocamento da esperança para o medo, na economia afetiva do trabalho com o pós-fordismo, com mais razão é preciso falar que esperança e medo agora foram fragmentados, não mais sujeitos à trajetória linear da carreira, mas sim à constante revalorização da atividade de fazer contatos e redes enquanto trabalha [networking]. Isto não é apenas a revalorização do trabalho, do potencial do trabalho, mas uma ruptura fundamental da separação entre trabalho e vida que o fordismo anteriormente institucionalizara. Tanto quanto é uma transformação da composição afetiva do fordismo, deslocando o medo e a esperança, atividade e passividade, e assim rompendo as separações entre trabalho e vida, ela continua e aprofunda a indiferença fordista, e a abstração, em relação ao conteúdo do trabalho. Como Paolo Virno argumenta, ser profissional não é mais estar engajado numa profissão específica, ao contrário, é um modo de estar no mundo, o investimento dedicado e completo de todo o seu ser ao trabalho assumido, qualquer que seja ele. As palavras-chave “novo espírito do capitalismo”, “flexibilidade das redes”, “profissionalismo” são indiferentes ao conteúdo do que se esteja fazendo, mas demandam uma intensificação particular do investimento subjetivo, do compromisso, é preciso fazer coincidir seus esforços individuais com o esforço geral da ordem da sociedade.

Portanto, para completar o conjunto de contradições em ação, poderíamos argumentar que a tela pintada aqui por Spinoza, e pelos neoespinosistas, fala sobre a relação contraditória entre atividade e passividade. Trabalho é uma atividade, um esforço, mas é uma atividade definida por uma passividade fundamental, onde a alegria associada está separada de sua causa, e a atividade separada de seu objeto e objetivos. Existe uma passividade na atividade de nosso trabalho, nos esforçamos dedicamente em algo que não desejamos imediatamente, nem temos autonomia sobre as condições desse esforço, desse trabalho. O consumo também é passivo, não na forma da paixão triste, segundo a ideia da alienação do trabalho, mas enquanto afeto passivo alegre, como alegria passiva. No momento exato em que nos inclinamos para melhorar a nossa condição no pós-fordismo, e a realizar os desejos implicados no trabalho, somos confrontados com o fato que nem determinamos nem ditamos as condições desses próprios desejos.

No Tractatus Theologico-Politicus, Spinoza estabelece que a verdadeira questão política consiste em perguntar por que os homens lutam por sua servidão como se fosse a própria salvação. A ideia da passividade interna à atividade ajuda a responder. Nós lutamos por nossa servidão porque devemos lutar, no esforço em perseverar, mas nós fazemos isso na medida em que somos afetados, nos limites de nossa imaginação.

Conclusão

Apresentar Hegel, Marx e Spinoza desta maneira certamente arrisca eclipsar suas diferenças históricas específicas, assim como a própria diferença real entre as ontologias específicas. Eu poderia dizer que tal apresentação se justifica  pelo desenvolvimento compartilhado do que Etienne Balibar chama de instância transindividual das relações. Nem Hegel, Marx ou Spinoza, começam da ideia do indivíduo isolado e autônomo, mas examinam como indivíduos e coletivos se constituem por suas malhas de relações próprias, a partir do que também se poderia falar, como produto, de um indivíduo. No entanto, nesse aspecto meu objetivo não tem sido explorar as similaridades ou diferenças produtivas entre Hegel, Marx e Spinoza, mas localizar, em cada maneira de pensar sobre uma contradição ou antinomia particular do trabalho, um modo particular no qual o trabalho cruza a região entre a ética e a economia, o indivíduo e o coletivo, a atividade e a passividade. O objetivo último não é simplesmente sugerir que o trabalho “é dito em muitos sentidos”, como necessidade econômica e disciplina ética, projeto individual e relação coletiva, esforço ativo e sujeição passiva, mas enxergar as vicissitudes políticas e econômicas que privilegiam um termo em particular, um aspecto, sobre os demais. O mérito dessas contradições parece ser que delas se pode começar a construir o quadro do paradoxo, que comecei com o imperativo crescente “encontre emprego!”, proposto como solução ao colapso econômico e à austeridade. Este imperativo pode ser entendido como uma forma particular de privilegiar um lado das contradições envolvidas, focando na disciplina econômica em vez da necessidade econômica, no serviço individual em vez da relação coletiva, no medo passivo em vez da esperança ativa.

Nós poderíamos argumentar que estamos nas garras de um imaginário político que privilegia uma dimensão moral, individualista e passiva do trabalho. O trabalho é visto como responsabilidade moral, valorizado moralmente mas não economicamente, como uma relação competitiva e individual, em vez de projeto coletivo, e é passivo naquilo que a atividade incessante, o esforço incessante dentro de seus termos, não é capaz de transformar as próprias condições da atividade. Nós poderíamos então perguntar o que significaria, e como seria possível, deslocar os termos da relação, valorizando o trabalho como uma realidade econômica, em vez de disciplina moral, como um empreendimento coletivo em vez de projeto individual, como atividade que aumenta a capacidade de alguém, e não a estranha atividade passiva do capitalismo contemporâneo, onde se age constantemente apenas para ficar no mesmo lugar.

Mobilizando Hegel, Marx e Spinoza, poderia parecer que essa luta está na esfera do conhecimento, do reconhecimento, reconhecendo a dimensão do trabalho — se movendo através das justificações individualizantes e éticas — e dos afetos, e imaginação, convertendo não somente a tristeza na alegria, mas a passividade na atividade, escapando da atividade passiva que cada vez mais define a ética contemporânea do trabalho.

 

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Tradutor: Bruno Cava

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