Por Silvio Pedrosa, UniNômade, professor do ensino fundamental da rede pública municipal
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“O bárbaro não está mais nos confins da Terra, ele está aqui…”
Guy Debord¹
O dia seguinte às mobilizações em Brasília, no último dia 24 de maio, se abriu com uma polêmica sobre as ações diretas. A esquerda institucional hegemônica, que convocou a mobilização, oscilou entre a criminalização e o isolamento político (alguns chegaram a se referir de forma proprietária à manifestação) daqueles que resistiram à violência policial. Em que pese a necessidade de, de fato, debater a ação direta nas mobilizações sociais (um debate que realmente não pode prescindir de encarar a existência de certo fetichismo, nos círculos anarco-autonomistas, que encaminham a ação direta com certo presentismo e sem maiores elaborações estratégicas), trata-se, diante dos efeitos das ações diretas da última quarta-feira na capital, de uma falsa polêmica.
A imagem de Brasília em chamas produziu uma mensagem muito mais potente do ponto de vista político e comunicativo do que a imagem de milhares de pessoas demonstrando sua insatisfação numa manifestação (de resto, após quase 4 anos de intensa mobilização social no país, essas imagens já não são uma novidade política extraordinária, tendo se tornado antes um elemento a mais na paisagem). Brasília em chamas, por outro lado, é capaz de articular um imaginário político de fato popular e que vai muito além dos esquemas ideológicos de esquerda e direita, atingindo aquele mesmo imaginário que se atualiza na anti-política que povoa a murmuração comum das pessoas — e que a esquerda em geral tende a reduzir ao que classifica como udenismo (quando este último é, de fato, a apropriação desse imaginário e dos afetos que ele carrega por determinados atores institucionais, sejam partidos ou políticos).
O que a ação direta da última quarta-feira produziu foi aquilo que Giorgio Agamben, em comentário à obra de Guy Debord, classificou como “possibilidade positiva do espetáculo”, a possibilidade de usar o espetáculo contra si mesmo, fazendo estilhaçar a trama de espelhos (speculum) que constitui o espetáculo enquanto mega-máquina de expropriação da linguagem, esse logos comum do homem¹. Através da ação direta, as imagens fugiram do seu próprio enquadramento midiático e sua (re)apropriação social foi totalmente subversiva. A mensagem transmitida pelos ministérios em chamas em meio a tumultos violentos entre as forças policiais e manifestantes foi de que as condições políticas de Temer na presidência acabaram. Decorreu disso, aliás, a resposta desesperada e destrambelhada do próprio governo Temer. A convocação improvisada do poder militar demonstrou claramente o que já estava inarticulado: o governo Temer chegou no auge da ilegitimidade, a força nua.
Diante dessa deterioração acelerada (em um contexto no qual a velocidade dos eventos já era enorme), a saída que nos resta é continuar a produzir ações que sejam efetivamente gestos (aquilo que Agamben classifica como a atualização do estatuto da imagem na modernidade, a imagem em movimento como possibilidade de fuga da mercadoria²) capazes de continuar a explorar essa possibilidade positiva do espetáculo e pressionar no sentido de uma saída democrática comum para a crise. Diante da solução concertada entre as forças do espetáculo (partidos, mídia e instituições), cabe ao general intellect — o cérebro social produtivo, cuja expropriação da própria possibilidade comunicativa é o paradigma, a um só tempo, do capitalismo contemporâneo e da sua forma de dominação correspondente –, a tarefa de invenção de uma outra política que caminhe por fora das instituições, dando-lhe combate em cada esquina e em cada nó das redes.
O que se tornou uma verdade sobre Temer ontem precisa se tornar uma verdade sobre as elites políticas em geral, antes que mais uma saída pactuada pelo alto prolongue a agonia de um país em crise generalizada apenas para garantir a sobrevivência de um arranjo mafioso de gestão da política institucional. “Eleições diretas e gerais já!” precisa deixar de ser uma imagem abstrata para se tornarem um gesto, uma imagem dinâmica que comunique sua incontornabilidade política e mais. Fazer da irrepresentação espetacular uma saída para renovar a representação e encontrar caminhos para uma política comum que esteja, finalmente, além dela e, portanto, à altura do seu próprio tempo.
Silvio Pedrosa é membro da UniNômade e professor da rede pública municipal.
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NOTAS
1. Guy Debord, “O declínio e a queda da economia espetacular mercantil” In: Situacionista: teoria e prática da revolução, São Paulo, Conrad, 2002, p. 127.
2. Giorgio Agamben, “Glosas à margem dos Comentários sobre a sociedade do espetáculo” [1990] In: Idem, Meios sem fim: notas sobre a política, Belo Horizonte, Autêntica, 2015, pp. 79-80.
3. Giorgio Agamben, “Notas sobre o gesto” In: Idem, Meios sem fim: notas sobre a política,Belo Horizonte, Autêntica, 2015, pp. 56-57.