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Os desdobramentos das manifestações no Brasil

“O Movimento Passe Livre também abriu as discussões sobre a questão coletiva, e não apenas para pensar as políticas públicas, mas para pensá-las a partir das mobilizações e de suas formas de organização.”

Por Salvador Schavelzon | Trad. Vladimir Santafé

Houve um fundo fascista por trás da juventude mobilizada? Ou o horizonte segue sendo de novas lutas em ruas conquistadas, apesar de vozes minoritárias desacreditadas? O que para alguns é fascismo e ameaça de golpes, especialmente depois que vários governos locais reverteram o aumento dos transportes, para outros é esperança de mudanças profundas, através da mobilização de uma população que abandonou a inércia do consumismo… É um movimento de esquerda contra um governo autista e conservador, ou é preciso sair para apoiar o governo?

Talvez a reversibilidade de uma história sem direção pré-definida, com fantasmas do passado que colidem ombros com o desejo de mudar o país, e que surgem em um país que começa a falar a partir das ruas após mudanças subterrâneas profundas. Nessas vozes sãp difíceis de codificar, se ouve muita coisa, onde esquerda e direita não podem ser definidas, mas ao mesmo tempo as posições nunca foram tão claras. Uma massiva mobilização gerada pelo que se entendia inicialmente como puro abuso ou expressões violentas, também pode ser entendida como a continuidade de tendências mais radicais que recorreram à política de nossos dias.

Depois de duas semanas de protestos e quatro dias após as manifestações se tornarem maciças, alguns descobriram que se pode fazer um país mais justo a partir das mobilizações. Mas com o governo fora do centro das atenções, a continuação das manifestações no Rio de Janeiro e em outros lugares terminou com alguns excessos por parte dos manifestantes e principalmente o descontrole por parte da polícia militar, protegida pela TV Globo, que trabalhou em estreita colaboração com ela para reforçar suas ações repressivas, além de direcionar o significado das ruas para uma crítica apolítica: o espectador indignado contra a corrupção. Ao mesmo tempo, em São Paulo e em outros lugares, certo nacionalismo de direita instigou repúdio às bandeiras vermelhas dos partidos, apoiado por vizinhos que carregavam cartazes contra “esmolas” (o programa social Bolsa Família) ou insultando a presidenta Dilma, causando a retirada imediata de muitos manifestantes presentes nos primeiros dias, e deixando um gosto amargo que muitos interpretaram como uma tentativa de golpe de estado.

Uma semana que começou com protestos inesperados recolocando a política nas ruas do Brasil, terminou despertando uma série de monstros que não tinham saído de suas pequenas caixas de comentários na Internet. Distintas camadas superpostas nos foram levando do tema das decisões de escritório de administradores da cidade aos limites constitucionais e morais de uma república que está em crise e se reencontra com os grandes perfis de sua história: seus excluídos, seus medos e desejos de transformação.

Quanto mais crescia e se expandia, mais difícil era indicar suas causas e a composição com precisão. O protesto alcançou dezenas de cidades, saiu do grupo de jovens recém chegados à política de expansão das universidades, e na metade da semana já havia protestos nas periferias. Depois do triunfo da mobilização, com a revogação do aumento do preço das passagens, continuou nas ruas com milhões de motivos acumulados e atirados à porta de um poder público que as manteve fechadas e que, geralmente, não dava respostas à altura das circunstâncias, enviando a polícia para reprimir os manifestantes.

Não eram setores emergentes exigindo direitos estabelecidos, tampouco excluídos que ante o Brasil potência procuram incluir-se com demandas. Não é tampouco um Brasil que estivesse em tempos de crise, como o enxergam a partir apenas de dados macroeconômicos, e vêm um declínio na curva do crescimento econômico do país. Era política desordenada, sem líder, sem nome, sem um único sentido. Não era uma tentativa de desestabilização do PT no governo. Vários grupos do PT tentaram juntar-se aos protestos, especialmente na quinta-feira, quando o governo manifestou solidariedade às manifestações. Tampouco era manipulação da imprensa, que em vez disso se perdeu na questão de “vandalismo”, embora ela certamente tenha plantado slogans, como a luta contra a corrupção, uma ferramenta fácil para as audiências televisivas. Os manifestantes tomaram as ruas, enraizando, dando complexidade ao impulso dos protestos iniciais. Havia cartazes anti-Dilma, mas a intenção dos milhões de mobilizados não era golpista. Era, sim, uma reação à surdez dos governantes aos anseios da população, que esta semana mostrou um Brasil nas ruas.

O preço do transporte não deve ser esquecido em qualquer tentativa de caracterização do movimento. Não eram apenas 20 centavos, pois o preço total das passagens equivale a um terço do salário mínimo e os serviços não correspondem às péssimas condições de viagem em cidades que entraram em colapso. Este primeiro catalisador que se mostrou mobilizador e legítimo, é interessante por ser estranho ao tipo de reivindicações que estão na consciência e na formação histórica do PT. Enquanto os governos das grandes cidades estavam reagindo à força das ruas, começamos a conhecer um mundo onde os custos dos transportes só favoreciam as empresas, um tipo de financiamento dos serviços que geralmente cai sobre os ombros do usuário a uma taxa maior do que em outros lugares do mundo (apenas 10% é da empresa), um tema central nas cidades de hoje que se estruturam de forma injusta, familiar a todos os temas que são organizados pelo Estado. Neste sentido, a resposta inicial do governo é o silêncio ou a repressão policial, seja qual for o partido no poder, não podia senão reforçar a leitura de um vazio, que no passado poderia ser o PT propondo outra política.

Nas ruas, a crítica à magnitude do dinheiro transferido dos cofres públicos para um pequeno grupo de empresas, nos transportes especificamente, imediatamente foi conectado ao financiamento público da Copa do Mundo, justamente quando a FIFA organiza um ensaio para o Mundial com a Copa das Confederações, alvo de protestos. Do transporte, se passava ao futebol, permitindo aflorar algo como a expulsão de moradores das áreas turísticas, faraonismo megalomaníacos e contratos imensos com muito pouco controle sobre eles. Algo desse tipo também se encontra no cidadão farto da corrupção, mas se conecta melhor a conflitos locais que não alcançaram tanta difusão, como algumas obras do metrô de São Paulo, ou a demolição de um museu indígena histórico na expansão do estádio do Maracanã, no Rio de Janeiro. Cidade vai receber a final da Copa do Mundo e antes o Papa Francisco – cujos gastos também são criticados – pondo um alerta ao governo, a partir do plano de contingência militar que este disponibilizará na ocasião.

Outras discussões em voga são as formas de participação política. Um movimento horizontal surgido no Fórum Social Mundial em 2005, que propõe anular as tarifas de transporte nas metrópoles, deixando nervosos os negociadores políticos, a inteligência do Estado, policiais e jornalistas que buscavam identificar e compreender as formas políticas criadas contra o rosto autista poder político, que manteve o envio da polícia e só conseguiu suspender o aumento das tarifas como medida de emergência que procurou restabelecer a ordem, sem realmente sentar para discutir uma resposta relacionada com os reais problemas em discussão. O Movimento Passe Livre também abriu as discussões sobre a questão coletiva, e não apenas para pensar as políticas públicas, mas para pensá-las a partir das mobilizações e de suas formas de organização.

Na quinta-feira, já com a medida anulada, mais de um milhão de pessoas ocupou as ruas nas cidades, de acordo com a imprensa, que até então e na maioria das vezes, minimiza o número de mobilizados. Nesse momento, passou a fazer sentido uma ideia que correu as manifestações desde o início: “Não são apenas 20 centavos”, “queremos mais”. Foi quando os partidos de esquerda e os jovens que iniciaram o protesto com poucas pessoas no começo do mês, seguiram embandeirados agora com grupos de verde e amarelo que gritavam contra a corrupção, grupos fascistas que agrediram e queimaram bandeiras de partidos, mas a maioria das pessoas pediam outra coisa, com cartazes caseiros feitos em casa ou no pátio da faculdade, gritavam contra a homofobia que o Congresso havia expressado na mesma semana (com a proposta de “cura” gay), por saúde ou educação, ou simplesmente para se reunir e tomar as ruas.

O conteúdo fascista surgiu de um movimento que era forte por sua capacidade de discutir um assunto delicado num sistema injusto. Apesar de animado com a possibilidade de um novo Brasil que, nos últimos anos, havia saído das ruas, a esquerda não sabia ser era uma reação intolerante contra as forças de mudança que haviam sido liberadas nos últimos anos ou de uma coincidência incômoda. Emir Sader, um conhecido “operador” petista das redes sociais, demonstrava esse desconcerto. Na manhã de quinta-feira, disse que iria para a manifestação com sua camisa vermelha, como parte do movimento que as bases do PT apoiavam, tal como confirmado pelas próprias declarações de Dilma e Lula ao cumprimentarem os protestos na segunda-feira. Em seu retorno, ele escreveu a seus contatos no Facebook que “a partir de hoje, aqueles que participam desses eventos apoiam as hordas fascistas que querem acabar com a democracia no Brasil.”

Mas por que o PT? Perguntará o leitor que não está a par das alianças de Dilma com o velho poder, com os ruralistas na invasão e destruição de territórios indígenas na Amazônia, com as demandas da direita religiosa homofóbica, com o poder financeiro e as grandes construtoras que geraram não menos protestos e reações menos visíveis. Não é que o Brasil está crescendo e vai bem, com milhões de recém-chegados à classe média, o desenvolvimento socialmente inclusivo, exportações em expansão, protagonismo no mundo e sucesso na organização de eventos esportivos internacionais? Vemos em revistas que os brasileiros são compradores de apartamentos caros em Manhattan e em São Paulo há representantes das lojas e marcas mais exclusivas e caras do mundo. Dilma também, até a última semana, tinha pelo menos 80% de aprovação detectada por essas pesquisas encomendadas que fazem parte dos modos de existência de um poder que se encerra em si mesmo.

Evidentemente, há mais de um Brasil, e isso ficou claro esta semana com as manifestações e as próprias mobilizações, para muitos. Não há necessidade de recorrer a estatísticas para retratar a situação atual. Se você mora na periferia da cidade, não tem acesso a uma boa escola ou hospital, precisa viajar várias horas do seu dia para trabalhar e possivelmente sofre de violência policial. Se você não faz parte dos reduzidos grupos econômicos com ganâncias extraordinárias, sem dúvida terá muitos motivos para simpatizar com o novo Brasil das mobilizações. Um Brasil que se encontrou com seus monstros nas ruas, mas também com a política “feita pelas suas próprias mãos”, que até agora parecia normal ser seu outro.

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