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Para além da Copa: a organização do campo de lutas no Rio de Janeiro

Por Marcelo Castañeda, doutor em sociologia e UniNômade

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Entre a intensificação repressiva do estado, a desmobilização afetiva e os déficits de organização dos novos movimentos, não há motivo para lamentações. Com um ano dos protestos de junho de 2013 e dez dias de Copa, o cenário ativista continua de grande efervescência, seus impasses e dilemas precisam ser enfrentados sem saudosismos, apoiando-se nas séries heterogêneas de singularidades que seguem pulsando em diversos campos de atuação.

Tão logo passou a primeira semana da Copa do Mundo em território brasileiro nota-se, de um lado, um precoce entusiasmo governista sobre o sucesso do evento; de outro, alguns indivíduos que pertencem a segmentos do campo de lutas apontam um desânimo com as manifestações que aconteceram nesta semana, chegando ao ponto de enfatizar desde já um “fiasco” destas.

Neste espaço, tendo como base o contexto do Rio de Janeiro, questiono ambas as avaliações. Começo chamando atenção para o sucesso do grito “Não Vai Ter Copa”, que tornou esse evento um alvo de crítica permanente, desafiando a todo-poderosa FIFA e o governo federal com seu grito “Vai Ter Copa”, que não emplacou. O que o governo federal emplacou, junto com os governos estaduais, foi uma repressão jamais vista no período democrático em curso no Brasil, com um efeito significativo na desmobilização das manifestações. O sucesso do “Não Vai Ter Copa” não tem a ver com a realização dos jogos, que estão de fato acontecendo, mas com o questionamento do modelo de negócios da FIFA assegurado pelos governos em diferentes escalas, federal e estaduais.

E como opera o poder constituído depois de uma semana de jogos? De um lado, existem os que louvam a “Copa das Copas”, enaltecendo o torneio como uma forma de chutar os “vira-latas” que insistem no “pessimismo”, sem fazer qualquer menção à série de arbitrariedades que vêm sendo perpetuadas em nome desse evento – e aqui, não me refiro somente às remoções e à pacificação, mas também às detenções e intimidações que estão em andamento. É preciso ficar claro que, por mais instigantes que sejam os jogos, trata-se de um evento atravessado pela crítica permanente, mesmo que se tente abafar. E esta crítica vai deixar seu legado para as lutas futuras. De outro lado, o desânimo de potenciais ativistas, alguns que chegam a assinalar um “fiasco” da mobilização, acaba reforçando a narrativa do poder constituído. Mais do que “atirar pedras”, o momento é de articulação nos diferentes espaços existentes e pensamento de formas conjuntas para lidar com os problemas que se apresentam nos limites dos pontos de atrito existentes no campo de lutas.

Para além de toda autocrítica, que é valida e necessária, para quem está no campo das lutas apontar um “fiasco” das manifestações neste momento significa “entregar o jogo no primeiro tempo”, seja por idealizar a escalada do número de manifestantes  entre 13 e 20 de junho de 2013, como um patamar a ser atingido de tempos em tempos, seja por procurar identificar possíveis responsáveis por esse “fiasco”, no âmbito da mobilização em curso desde então. Sim, é importante lembrar que se trata de um momento inédito em termos de mobilizações e expectativas, mas não me parece, por exemplo, que as duas manifestações que aconteceram no Rio de Janeiro no dia 12/06/2014, na abertura da Copa, tenham sido um “fiasco”, sem falar em várias outras iniciativas que vão além do formato manifestação.

Um ponto importante é perceber e assumir que existem problemas de organização no campo de lutas derivados da interação entre os diferentes movimentos, grupos, redes, coletivos e indivíduos que neles atuam.  A superação dos problemas passa por estreitar laços de solidariedade, bem como deixar nítidos os antagonismos que existem entre os que se manifestam nas ruas e que, talvez, não sejam facilmente superáveis a curto prazo. Não temos uma massa uniforme, mas uma série de singularidades que configuram uma multidão monstruosa, na qual misturam-se aproximações e diferenciações contínuas entre seus componentes.

Ao contrário do que alguns percebem, de junho de 2013 do ano passado para cá, não enxergo a constituição de um movimento social, nos termos de uma rede de sociabilidade que construa uma identidade coletiva e atue num eixo de reivindicação de pautas específicas. Contudo, é claro que existe uma oxigenação das lutas que existiam e o surgimento de novos atores sociais, com destaque para os midiativistas, que se organizam ou não em coletivos, para uma frente que se proclama independente e popular, e para uma série de coletivos, iniciativas, assembleias que configuram um terreno repleto de novidades, tensões e possibilidades de ação que não estavam dadas há menos de um ano. Essa riqueza não se joga fora por conta de uma expectativa ou mesmo por conflitos que fazem parte deste processo de organização multitudinária.

Chamo a atenção para duas questões: como esperar mobilizações massivas como as que ocorreram em junho de 2013 com o aparato repressivo que vem se constituindo e se aprimorando desde junho do ano passado? Como esperar que segmentos da sociedade que se afastaram das ruas, muito em função da violência policial, voltem exatamente no momento em que são efetuados mandados de busca e apreensão, detenções em manifestações e repressão ao direito de se manifestar? As pessoas sentem medo, eu também sinto, e isso não pode ser atribuído meramente aos problemas de organização que existem. A saída para o medo é uma indignação que permita superá-lo e isso não se programa, mas acontece quando as oportunidades se apresentam e são aproveitadas. A Copa é uma oportunidade de protesto, mas, neste momento, o medo parece estar falando mais alto que a indignação de quem se dispõe a estar nas ruas, participando de uma manifestação contra a FIFA, por exemplo.

Longe de propor uma solução que só virá coletivamente, quais seriam as pistas para sair deste impasse organizacional? Uma questão remete à repetição das táticas, em especial o formato manifestação no qual estamos todos enredados em sua previsibilidade, ou seja, geralmente são dispersadas pela polícia com alguma resistência pós-dispersão. O que deu certo em junho do ano passado (redução das passagens) já não foi eficaz neste ano (a passagem aumentou).

Que novas possibilidades temos para expressar a indignação coletiva ou estamos presos a uma fórmula? Além da repetição tática que chama atenção, os espaços de assembleias públicas e populares (do Largo, da Cinelândia, da Grande Tijuca e do Méier) que se constituíram podem servir de ponto de interlocução entre os diferentes coletivos, grupos e indivíduos a fim de se pensar em ações comuns cada vez mais interligadas que tenham efeito na Copa, mas também para além dela.

Por fim, não se pode desprezar os movimentos autônomos das favelas, que se tornam um campo de articulação nas lutas que merece cada vez mais atenção na medida em que a matança da pacificação não dá tréguas e as remoções tendem a continuar por conta das Olimpíadas. A esta altura do campeonato não dá para pensar só em função do evento em curso. A meu ver, o campo de lutas deve pensar na Copa e para além dela e é com base no diálogo e articulações públicas que as ações irão brotar com vigor e não a partir de iniciativas individuais, particulares ou restritas a grupos específicos.

De toda forma, com menor presença, me parece que está acontecendo um protesto por jogo nesta Copa, com direito a muita repressão, detenções e arbitrariedades. Por enquanto, não houve uma explosão de pessoas nas ruas como quem atua no campo de lutas gostaria, mas isso não pode ser atribuído apenas a quem está na luta ou ao sucesso do evento. Desconsiderar todo o investimento na desmobilização que foi feito pelos governos e pela mídia corporativa é deixar de ver que existem constrangimentos e limites a ser superados dialogando coletivamente, sem voluntarismos ou protagonismos.

Marcelo Castañeda, cientista social, participa da Rede Universidade Nômade

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