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Pixo: quando a justiça é ditadura

Pela Frente Cultura de Rua, via Ludmilla Zago (BH)

Pixação

Réplica do grupo de copesquisa Frente Cultura de Rua, em BH, a uma matéria jornalística repleta de preconceitos e absurdos tecidos sobre a cultura do pixo. A arte de rua não só é desrepeitada como “depredação e sujeira”, mas também são criminalizados seus artistas anônimos. Nisso, está embutida uma visão privatista, que não considera as fachadas, muros e paredes como parte inalienável e integrante do comum da cidade: em permanente recriação e repensamento pelos viventes e produtores. Como se a paisagem onde tatuamos nossa vida pudesse ter dono.

Em 10 de março, o jornal Hoje em Dia publicou uma matéria com foto da fachada da Serraria Souza Pinto pixada, seguida de algumas colocações que, conforme a nossa experiência com as artes de rua entre grafiteiros e pixadores, nos motivaram a comentar alguns pontos levantados.

O programa de pesquisa Cidade e alteridade, da pós graduação da faculdade de direito da UFMG, é coordenado pela professora Miracy Gustin e, em Coimbra, Portugal, pelo professor Boaventura de Sousa Santos. Uma de suas frentes chama-se Cultura de rua, que se realiza a partir de método etnográfico, da observação participante, da análise situacional e da pesquisa-ação, dedicando-se às ocupações de expressões culturais urbanas, mais precisamente aquelas que ocupam os muros da cidade, com grafite e pixo. Foi possível, nessa experiência de pesquisa e de extensão, conhecermos o contato da polícia com os pixadores nas madrugadas da cidade, assim como o contexto do judiciário, processo penal, penas, julgamentos e sentenças, diante do pixo. O tema central do programa é o direito à cidade, pensado a partir da convivência e da justiça urbana.

A matéria do Hoje em Dia, publicada no último dia 10, apresenta a Serraria como alvo de vandalismo. As pixações numerosas na fachada, segundo a matéria, denotariam abandono e despertariam incômodo, inclusive porque a limpeza ou o restauro só serão concluídos depois da Copa. Afirma que o órgão municipal de Patrimônio não aceita ou recomenda a pixação. A afirmativa demonstra o total desconhecimento da dinâmica das culturas da rua. Não há espaço para recomendação ou autorização alheia nessas culturas, a não ser que seu autor decida. E, de mais a mais, foram estabelecidas muito poucas relações entre pixadores e a maioria dos jovens das periferias brasileiras, com os imóveis tombados da cidade. Para tais jovens, a pixação, ou o estêncil ou o grafite aproximam o sujeito do imobiliário da cidade, colocando-o em relação, a partir do uso, com fachadas e edificações, com a cidade.

Também lemos no texto do Hoje em Dia:

“O estudante Wallace Alves, de 41 anos, acredita que a pixação é algo inevitável. A banalização da pixação fortalece porque ninguém é punido. Também pensando na Copa, ele arrisca a dizer qual será a reação dos estrangeiros ao se depararem com o ato de vandalismo no ponto turístico: “será um choque de impunidade”.

É estranho que se defina, de modo tão compacto, direto e restritivo, o que se depreende ou lê dos grafismos que tomaram a fachada do patrimônio tombado. Pois, se diante de toda arte, é possível considerar a perspectiva individual e singular de cada receptor, de cada reação estética ao que se lê ou vê, com o pixo está dado de antemão, pelos jornais e pelo poder público o que é, o que representa e o que causa. Como se essa resposta fosse aquela de todas as pessoas. Resposta que nem mesmo se tem tempo ou espaço na cidade para dialogar e debater sobre ela.

Certamente, o que a alguns parece apenas sujeira e depredação, exerce papel formador de identidade e de laço social de muitos jovens, de todas as periferias da cidade. Não é fácil entender porque o jornal afirma que não há punição para pixadores. Acompanhamos, em três anos de pesquisa, não só a punição sorrateira, ilegal e informal da polícia exercida sobre o pixador (inúmeros relatos amedrontados, com pouca confiança, em meios de denúncia anônima já colhemos até aqui) como audiências com testemunhas intimadas a acusar, acusações sem provas concretas que liguem a pessoa à pixação em causa, sentenças que são usadas como forma de prevenir supostos crimes futuros; além de acesso precário à justiça e à devida e digna defesa.

Se, ao cidadão entrevistado, a pixação parece banalizada, cabe dizer que, na vida do jovem que com ela se identifica, não é nada banal. Ao contrário, além de conferir visibilidade, a pixação se configura como modo de vida, de transito na cidade e de relacionamento social. Enquanto muitos cidadãos não circulam para além de seu bairro ou quebrada, o pixador, em função de sua missão, circula e mapeia a cidade. Expandida sua cartografia, sua rede de relacionamentos também se expande, inclusive entre aqueles que se interessam pela pixação que, sim, tem seu público cativo nas cidades, como expressão de uma cultura e uma estética muito singulares.

Tiago Fantini, atual diretor do Programa Respeito por BH, observa que entrará em contato com o Governo e que tomará providências. São elas, a identificação e a punição mais severa dos identificados. Fantini anunciou também, na mesma matéria, um projeto para inibir e por fim ao vandalismo, que começará em abril desse ano. O plano, que visa acabar com a depredação, tem 3 etapas:

A primeira delas refere-se à implementação de trabalho preventivo nas escolas. Informação, conscientização dos riscos que se tem ao pixar, penalidades, e, assim constrói-se uma estratégia de prevenção e educação. A segunda refere-se a acelerar a punição dos pixadores e a terceira fase implicaria em somar união e estado, no cuidado com o patrimônio.

Fantini menciona também a importância de se cuidar da abordagem do pixador, que considera delicada pelo fato de envolver questões culturais. Ele complementa: “A minha obrigação é tentar promover e fortalecer o comprometimento do cidadão pelo respeito pela capital e seus bens. O fato de os pixadores quererem dar recado é algo que não pode ser ignorado e tem que ser entendido”.

Pensamos ser importante à cidade questionar a obrigação do servidor, a partir do que explica. Qual seu compromisso com as questões que se referem à convivência na cidade? Sobre o conhecimento que demonstra, sobre o contexto da pixação, gostaríamos de entender o que parece contraditório: não irá ignorar, preocupa-se em entender, mas, como irá realizar isso se todo o panorama de ação do movimento que coordena visa o combate e a punição da pixação?

Também nos cabe perguntar sobre a cidade que se quer. Haverá espaço para o que acho feio? E se não entendo, apenas por isso está retirado seu valor como expressão? Quem dita o padrão estético de uma coletividade? Há uma uniformidade do que é considerado belo? Ainda mais quando o assunto é a pixação em que o feio, muito comumente vem acompanhado, no discurso vigente e mais comum, de um julgamento moral. Muitas vezes não se sabe se o que se julga é o pixo ou o que se especula e imagina em torno de seu ato e suas motivações.

Já a reportagem da Record, postada aqui, em 11 de março, nos traz o alarme de que as pixações, enfim, tomaram conta da cidade. Os “vândalos” causadores de sujeira visual não são alcançados pela fiscalização, e por isso a pixação aumenta.Os infratores, cuja ousadia parece sem limite, não poupam nem o prédio do Iphan. Depois de pessoas aparecerem corroborando o ponto de vista transmitido pela matéria, dizendo que cidade está mais feia e suja, a matéria divulga um valor altíssimo de prejuízos da cidade com o assunto. Seriam R$ 2,5 milhões gastos e, BH com pixação. Curiosamente, valor bem próximo ao que foi destinado, segundo consta nas placas, à obra do Viaduto Santa Tereza.

Além de mostrar a Serraria Souza Pinto, também mostrou o viaduto que está fechado para obra e seu posto policial, também a ser renovado. Não houve inutilização de nenhum desses bens, mas para a reportagem, tudo está depredado e pixado. O responsável pela Serraria adverte, entretanto, que o imóvel seja pintado e devolvido para que volte à “imponência” de sempre.

Tiago Fantini volta a aparecer na matéria e ele conta que sabe de 300 grupos de pixo na cidade. Fantini explica que o movimento Respeito por BH conhece nomes, as marcas deixadas na cidade, endereço e filiação. Fala que não há punições severas, mas promete algo que já fora prometido para a cidade à época da prisão dos piores de Belô: uma delegacia onde se investigar e receber esse tipo de crime, para que até 2015 tenha mudado a cena da pixação em BH.

Indagamos por que sempre repetimos a mesma forma de lidar com a convivência nas cidades, que é impor, a partir de um grupo ou de alguns princípios, formas de conduta e uso da cidade. Mais que isso, repetimos a fórmula da criminalização rasteira, limitadas à percepção mais ligeira sobre o assunto. Abandona-se de lado a cultura, a identidade, a expressão. Impõe-se a estética daquilo que alguns consideram belo, consideram arte. Temos apenas isso a oferecer sobre as ocupações dos muros da cidade: a punição.
E podemos, inclusive, separar o que nasceu do mesmo eixo histórico, do mesmo sentido: o grafite e a pixação nasceram no mesmo tempo e espaço, mas o poder público decidiu reconhecer, regular, e usar de um, e criminalizar, denunciar e desconhecer o outro. Cegos diante do que é outro, do que é polêmico e perturbador, resta impor a ordem estabelecida a partir do olhar que pensa ser estético, mas que no fundo é moral.

Vivemos a intensa reação do pixo na cidade nos últimos tempos. Alguns pixadores passaram pela prisão, e nem por isso o pixo deixou de ser tão intenso na paisagem. Ainda assim, insistiremos nas mesmas saídas? Ainda que o diretor do Movimento que se organiza em torno da ideia de respeito diga que é preciso escutar, quando mesmo vão parar para ouvir a realidade estampada nos muros de BH?

 

Frente Cultura de Rua – Programa de pesquisa Cidade e alteridade – pós graduação da faculdade de direito da UFMG. (Acompanhada de rede composta por diversos segmentos e entidades da sociedade civil organizada, como a ONG Pacto, o programa Polos de cidadania, o movimento Viaduto ocupado, entre outros.).

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