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Podemos: abrindo uma brecha na representação

Por Juan Domingo Sánchez, no Iohannes Maurus (blogue), em 29/5/14 | Trad.: UniNômade

 

O novo híbrido de movimento e partido, o Podemos, na Espanha, conquistou mais de um milhão de votos na recente eleição para o Parlamento Europeu, tornando-se presentemente a quarta força eleitoral. À diferença dos dois maiores partidos, de centro (PSOE) e centro-direita (PP), bem como da Esquerda Unida (IU), ainda presa a formatos antigos; o Podemos se propõe a renovar a representação política, sorvendo das redes e núcleos mobilizados desde o 15-M. Ele conseguiu agregar os novos movimentos, diante da inépcia do Partido X em fazê-lo, organizando-se mediante 400 círculos territoriais, conexões com movimentos mais temáticos e muito marketing online. Segundo o artigo, o Podemos funcionou porque conseguiu entrelaçar-se com a emergência de novos protagonistas em cena, sua composição política e suas tecnologias de fazer rede, desbloqueando os impasses vividos e a sensação de isolamento. O que distinguiu positivamente o Podemos, seja do discurso centralista e “científico” dos veteromarxistas (referindo-se, especialmente, à IU, para quem o 15-M nada mudou de relevante), seja a anarcopurismos fechados às potencialidades de também regenerar o campo institucional. Embora, no Brasil, não haja nada sequer próximo de um vetor político-partidário como o Podemos, pode sinalizar uma tendência. Aqui, por enquanto, além de não surgir nenhum Podemos, a esquerda no poder ou na oposição em nada se abriu às novas formas e processos de mobilização produtiva/política, preferindo amiúde adotar o discurso francamente evasivo da campanha do “menos pior” (ou do “quanto pior, melhor”), ambos fadados ao fracasso afetivo e político. (N.E.)

Leia também a tradução Cinco ideias sobre o Podemos (31/5).

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“Um afeto não pode ser refreado nem anulado senão por um afeto contrário e mais forte do que o afeto a ser refreado.” (P 7, IV, Ética, Spinoza).

 

1. A esquerda, sobretudo a tradição marxista, tem geralmente concebido a atuação política como aplicação de uma verdade teórica e somente considera possível atuar sob as formas da representação cristalizadas na forma partido ou no estado, como representação geral da sociedade. Diante dessa corrente, o anarquismo tem geralmente defendido uma verdade moral e organização mais imediata dos trabalhadores com o sindicato ou a assembleia, desprezando a representação.

Salvo raras exceções, isto levou anarquistas e setores radicais democratas de esquerda a ignorar todo tipo de de participação eleitoral. Apesar da oposição, estas duas posições se articulam em torno de um mesmo eixo: a relação “verdade-representação”. A relação tem sido, tanto para o anarquismo quanto os marxismos políticos, o centro da teoria e da prática política, pois, se para uns a representação no partido ou no estado constituía a verdade de classe (universal) ou da sociedade; para outros, a verdade deveria ser buscada no imediato da vida social, evitando as aparências enganosas de partidos e estados.

2. O 15-M comportou em boa medida a perspectiva do anarquismo, pelo menos se for interpretada em sentido forte a mensagem central do movimento das praças: “não nos representam”. A frase pode, com efeito, ser lida em dois sentidos: num sentido fraco, como aspiração a uma boa representação, “esses não nos representam, porém outros melhores o farão”, ou num sentido forte, como rechaço baseado na impossibilidade ontológica de toda representação: “não nos representam porque não somos representáveis”.

Querendo intervir nas coordenadas representativas, a partir dos princípios do 15-M, experimentos políticos como o Partido X são portadores do sentido fraco desta mensagem, ao buscar mediante suas práticas de rede e sua democracia virtual a “boa representação”, enquanto outros setores têm interpretado a impossibilidade da representação, como necessidade de isolar-se hermeticamente dessa esfera.

As versões fortes do “não nos representam” — não incluindo aí a proposta de regresso a velhas formas de representação por parte de organizações veteranas como a Esquerda Unida (IU) — atingiram seu limite: não bastava que a democracia e o anticapitalismo vivessem uns dias ou semanas nas praças, era necessário que se prolongassem e durassem. Contra a extensão e duração dos espaços liberados, se manifestou e se manifesta dia após dia “toda a força do estado”, todo o peso do aparelho da representação. As praças livres se mantinham como uma particularidade eticamente impecável, mas desbaratada em sua eficácia pela repressão, pelas cargas polícias, as multas etc, e deslegitimada desde os aparelhos de propaganda tanto públicos quanto privados do regime: partidos, imprensa, instituições.

3. Para desbloquear a situação, era indispensável buscar outra coisa, trocar de elemento. Era necessário assumir um paradoxo: representar o irrepresentável, ou melhor ainda, introduzir o irrepresentável na esfera da representação. Isto supunha e supõe enfrentar um desafio forte. Trata-se, nada mais nada menos que ejetar o mal governo neoliberal do poder através do único meio hoje possível: a urna. Sem embargo, não se trata de saturar o espaço de poder mediante uma nova representação, que seja “a boa”, sem que, emulando o 15-M ou ao movimento Occupy, acampar nesse espaço, ocupar esse espaço desde e para os movimentos sociais, neutralizando assim a ação do estado contra eles e, também, tomando medidas efetivas de governo, em favor das reivindicações dos movimentos, como a Plataforma dos Afetados pela Hipoteca (PAH), as Marés, o feminismo, o movimento operário etc. Trata-se de uma fórmula inicialmente ensaiada pelos governos populares da América Latina, mas que nas condições europeias deve necessariamente adotar outros aspectos.

4. Não bastava apresentar-se nas eleições numa conjuntura que vinha exigindo uma atuação dos movimentos sociais no espaço e a na representação política, tinha que “ser” também o tipo de organização adequado para articular os dois cantos do dilema de uma representação do irrepresentável. Por um lado, tinha que usar com muita força a carta da representação, inclusive a liderança midiática, porém, por outro lado, e com a mesma força, era necessário apostar em formas de democracia direta e horizontal.

Podemos foi o começo da solução deste dilema. Com seu lado midiático, seu aparelho de campanha e seus dispositivos de intervenção comunicativa, na rede e em todos os espaços públicos disponíveis, Podemos foi abrindo uma brecha no espaço representativo, nas máquinas de produção de discurso, como a televisão, a rádio e as redes sociais. Pablo Iglesias, antes de encabeçar as listas de Podemos, tinha ocupado com a equipe da TV Pública um lugar que parecia impossível no espaço de definição do sentido comum, em favor do sentido comum dos movimentos sociais e, segundo as pesquisas, desses 80% da população que apoiam o 15-M ou a PAH. Tinha que introduzir-se nessa brecha no espaço representativo, mas o que deveria introduzir não é qualquer coisa, senão uma organização de novo tipo, apta para manter sempre uma interface aberta com os movimentos sociais e a gente corrente.

5. A organização e extensão dos círculos territoriais, em boa parte apoiada pela total dedicação à nova organização da parte de um pequeno partido militante, a Esquerda Anticapitalista (IA), foi o segundo ingrediente da fórmula paradoxal de Podemos. Os círculos, autênticas assembleias abertas, foram o espaço onde se elaboraram as listas eleitorais e o programa, mas mais além dos períodos eleitorais, seguiram existindo como órgãos de participação e atuação social. Cada um dos 400 círculos é o equivalente de uma assembleia do 15-M, com a particularidade que, desta vez, o movimento social se confere os meios de irromper nessa esfera de representação, de ocupá-la. Os cinco brilhantes deputados de Podemos no Parlamento Europeu são o começo de uma necessária larga marcha pelas instituições, marcada por ocupações prolongadas: faltam as eleições municipais, legislativas e das regiões autônomas. Em cada um desses espaços, o movimento popular deve estar presente, não para substituir a ação política e social das maiorias sociais, mas para potenciá-la, liberá-la da representação e impulsionar seus objetivos.

6. Tudo isso tinha sido e será perfeitamente impossível com um partido clássico de esquerda. O partido, como forma institucional, é estritamente um aparelho ideológico e um aparelho político de estado (Althusser). Ainda que exerça funções de representação de setores explorados e oprimidos, um partido não deixa de participar de um “jogo político”, que reproduz as relações sociais existentes e as legitima. Para evitar isso e gerar um processo autêntico de ocupação das instituições e da representação em geral pelos movimentos sociais e o comum dos cidadãos, é necessário que os “representantes” não representem, senão que atuem dentro das instituições como apêndices da maioria social na resistência. A articulação de círculos e aparelhos ideológico-representativos com os do estado e dos setores sociais dominantes permite obter uma neutralização efetiva das funções repressivas e de reprodução da ordem social, exercidas pela representação.

7. A construção de Podemos como movimento social e político de novo tipo não somente se baseia na subversão das formas clássicas de organização, se não numa audaz travessia do espaço ideológico dominante. Diferentemente das organizações marxistas clássicas que se criavam dotadas de uma verdade, de uma “álgebra da revolução”, em que baseavam a ação política, Podemos parte do sentido comum existente e intervém nele. Não se trata de impor ao corpo social um determinado modelo, baseado numa suposta verdade, que possuam alguns sujeitos, os dirigentes, a quem se supõe o saber, mas sim chegar a partir da imaginação, da ideologia, do espaço mesmo de nossa experiência submissa e passiva, a uma série de noções comuns capazes de configurar um sentido comum ao alcance de todos, de produzir em nós os sujeitos de um processo efetivo de liberação. A hegemonia não se conquista por meio com a imposição de uma verdade suposta, senão mediante um trabalho de intervenção no mundo dos seres humanos realmente existentes, que é um mundo dominado pela ideologia.

Como nos ensinaram Spinoza e Freud, assim como o Marx mais lúcido e, naturalmente, Antonio Gramsci ou o querido mestre Louis Althusser, a ideologia não é um “erro”, mas o mundo que vivemos e de onde ninguém vai sair por mais que o ensinem a “verdade” ou se tentem impô-la. A tragédia da esquerda marxista consistiu sempre na sua incapacidade para fazer nenhuma revolução, e seu permanente culto às revoluções dos outros, pelos heterodoxos do marxismo. Nem em Cuba, nem na Venezuela, nem na China e nem na própria Rússia se fez uma revolução aplicando-se a verdade do marxismo. Muito ao contrário, como afirmou Gramsci em célebre artigo, a revolução na Rússia — e em todos os países — se fez “contra o capital”.

Em geral, uma política não se baseia nem pode basear-se na verdade, pois a constituição de subjetividades políticas não é resultado de um processo científico, senão uma transformação ideológica, uma transformação do espaço da imaginação. Tentar fazer política em nome de uma verdade conduz, quando se dispõe de um aparelho de estado ao terror (o estalinismo), ou quando não se dispõe dele, na proliferação de capelas possuidoras de uma “verdade”, e por fim, na ineficácia que caracterizou historicamente muitos setores esquerdistas, tanto trotskistas quanto maoístas.

8. A grandeza do Podemos consiste em ter sabido sair da dupla armadilha histórica em que estava e segue presa a esquerda: a forma partido e a política da verdade herdada do “socialismo científico”. Podemos sair assim do molde da esquerda, para constituir uma hegemonia efetiva das maiorias sociais e movimentos. Sua linguagem plana, às vezes acessível e verdadeira, constitui a partir da imaginação e da ideologia as noções comuns de um processo constituinte em marcha. A identidade de esquerda, identidade imaginária que conduz à impotência, foi deslocada por um potente trabalho de configuração de hegemonia na sociedade realmente existente, que não é de esquerdas nem ainda menos participa de supostas verdades “marxistas”, mas se opõe às remoções, às consequências da ilegítima dívida, ao saqueio das riquezas, ao empobrecimento, à casta político-econômica, e exige democracia. Falta muito a fazer para que Podemos seja a máquina de guerra contra a casta, de que precisamos, mas os cimentos foram postos: nos falta desdobrar e consolidar a estrutura.

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