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Por um movimento antidisciplinar dos movimentos

Por Murilo Corrêa, no Navalha de Dali

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1. A estratégia de soberania – porrada, porrada e mais porrada eufemisticamente “não-letal”, prisões arbitrárias e para averiguação – deu errado. Seu ideólogos, do Estadão à Globo, de Alckmin a Pondé, da Folha a Haddad, rapidamente voltaram atrás numa demonstração do potencial deslegitimador de um movimento que, em profundidade, coloca em que xeque o próprio sistema político representativo, e o faz de maneira acéfala e horizontal. Numa guerra de posições, isso é uma vitória dos movimentos e uma derrota significativa dos “arrependidos”.

2. Nos últimos dias, a mídia amenizou o discurso, mas isso não é uma vitória dos movimentos; é uma estratégia dos massmedia. Basta assistir ao GloboFuckingNews por alguns momentos para perceber o que está por baixo da espetacularização dos movimentos. Os analistas de primeira hora – que assistem tudo pela tevê – não cessam de fazer proliferar clivagens e classificações; isto é, tentar individualizar e segmentar os corpos das ruas: há os manifestantes pacíficos, ordeiros, de bem, contra a corrupção (geralmente anti-Dilma e anti-PT) e os demais; há os manifestantes de início de protesto, que levam cartazes e faixas, que são da paz, que vestem branco, limpinhos, ordeiros, cívicos e os demais – vândalos, sujos e – esta teoria paranoide surgiu no DF, por exemplo – “provavelmente pagos para desestabilizar governos com atos de vandalismo e depredação dos patrimônios privado” (claro, este sempre vem antes) “e público”. Há os nacionalistas, que se enrolam imbecilmente em bandeiras, cantam o hino e acham que só ontem “o Brasil acordou para dar um basta”; de outro lado, os anarquistas antinacionalistas, os punks psolistas que não respeitam nada nem ninguém é só querem ver grassar a violência gratuita e injustificável.

3. Essas tipificações infinitas e classificações morais são indiciárias de uma mudança concreta: alterou-se uma estratégia de violência baseada na soberania (porrada, repressão e espetáculo descontínuo de crueldade) para uma estratégica mais sutil de controle disciplinar (contínua e virtual), segundo a qual já não se torna mais necessário reprimir violentamente. Um pequeno e concreto exemplo de como tudo se passa – ao mesmo tempo, esse exemplo é o reflexo local de uma estratégia que, nas mídias, começa a circular globalmente. Ontem, no Rio, os que foram presos por atos de vandalismo o foram por policiais infiltrados no movimento. Ou seja, o Estado já não confronta: segue os fluxos, controla-os de perto e tenta axiomatizá-los; se não funciona, reprime quando eles estão na iminência de sair de controle. Eles “previnem a violência” virtual com violência efetiva.

É na virtualidade do gesto que esse controle se aplica; não precisa depredar, basta esboçar o ato de pichação; não precisa atear fogo a um carro, basta que se ateie fogo a um monte de lixo. O controle e a repressão passam a ser exercidos localmente e tem por efeito criar uma clivagem disciplinar global entre “os bons manifestantes” – os que “são da paz”, se enrolam na bandeira do Brasil e cantam o hino – e os vândalos, criminosos, truculentos sem respeito por nada que devem ser reprimidos, inclusive em nome da suposta segurança dos demais manifestantes pacíficos. Esse sistema é em tudo análogo àquele que permite repartir os presos em presos de bom e mau comportamento; alunos disciplinados ou indisciplinados; doentes mentais que tomam seus remédios ou não.

4. As televisões e jornais desdobram essas clivagens simbolicamente. Nas entrelinhas, dizem até como os manifestantes devem se vestir, como devem se portar, o que podem ou não fazer, ou dizer. O Batalhão de Choque espera ali próximo, mas invisível, já não os acompanha; por outro lado, há policiais militares que seguem os fluxos da multidão e reprimem os fluxos desorganizantes; os policiais de trânsito “fazem a segurança do movimento” – na verdade, ordenam que se vá mais ou menos rápido porque “já é hora de liberar a rua” – e isso ficou claro em Curitiba, tarefa dada a policiais à paisana.

         Junto com uma potência de desordem e contestação, surge um rígido código de ética e disciplina, mas ele não é auto-organizado e gerido pelos movimentos das ruas e sim pela violência sutil e insensível dos signos que vêm de fora. “Vista branco”, “faça protesto limpinho”, “faça protesto ordeiro”, “seja da paz”, “não provoque os policiais”, “não xingue a mãe do governador”, “não piche o palácio do governo”, “não beba antes, durante ou depois”, “cante o hino”, “peça isso”, “demande aquilo”.

5. Como esse código disciplinar entra em um movimento? Pela via demasiadamente real do simbólico. Ontem à noite, no GloboFuckingNews, a jornalista Mariana Godoy defendia os manifestantes pacíficos afirmando que “estavam conscientes de que deveriam se manifestar pacificamente a fim de não deslegitimar o movimento”. Isso só mostra o grande medo, o grande terror que a multidão, que precisa ser contida ou disciplinada, inspira no poder. Ora, o que o mea culpa de Pondé, Jabor, Alckmin, Globo, Haddad e suas cáfilas jornalísticas e políticas provam é, justamente, que os movimentos se autolegitimam. Eles são o único e imanente critério de legitimidade, não o Estado, não a mídia, nem nenhuma forma crítica transcendental. Isso é pós-revolta, refechamento do aberto.

A mídia tenta, desesperadamente, se reapropriar da cisão que os protestos de quinta-feira (14.06) criaram: surgiu um fosso entre a opinião pública real, das ruas, e a opinião pública que as mídias tentam axiomatizar. Por que as mídias passaram a apoiar os movimentos? Porque as ruas criaram essa cisão, explodiram as margens de crítica social que as mídias não cessam de tentar controlar, e as redes sociais – que também são um instrumento de controle e vigilância – terminaram por instrumentalizar essa explosão em uma geração de jovens de 14 a 28 anos desacostumada a ver televisão ou a ler jornais. “A única forma de vencê-los é, então, juntando-se a eles; fazendo-os passar para o nosso lado, passando para o lado deles”, teriam pensado as mídias.

6. Eis toda a conversão das estratégias de soberania das primeiras semanas em estratégia disciplinar sutil e docilizadora – por essa razão, mais insidiosa e perigosa. O vocábulo revolta, repentinamente, saiu de circulação e se tornou “protesto” ou “manifestação”. O que está acontecendo nas ruas é, sem dúvida, uma acumulação primitiva de democracia, é impossível negar. E ela surge sobretudo sob a insígnia forte do direito à cidade e da reapropriação do espaço público; com as repressões, a pauta logo se altera para incluir, contra a soberania, a reapropriação do direito não à livre manifestação. Um sem número de pessoas, nas redes sociais, postou seus relatos de participação nos movimentos das ruas; muitos orgulhosos de seu próprio pacifismo e nacionalismo, de terem seguido o código de ética e disciplina que os poderes impuseram. Mistificação, engodo, estratégia de despotenciação e disciplina dos corpos indóceis e inúteis. Tentativa de conter a revolta profunda de todos os corpos, de obturar a emoção criadora e de obliterar as emergências de uma comunidade de eus profundos. A repressão torna-se desnecessária quando assimilada, introjetada nas almas e transformada em exercício de subjetividade, pelo qual nos distinguimos dos outros e nos erigimos acima deles. As mídias tentam forjar um simulacro de opinião pública e, para tanto, procuram funcionar como instância de exame disciplinar.

Hoje, quando as disciplinas parecem retomar sobre os corpos um controle tanto mais insidioso quanto eficaz, trata-se de, contra a disciplina, exercer o direito à revolta, o direito a liberar o poder que circula nos corpos, nas ruas e no espaço público do qual os movimentos já se reapropriaram. Na noite de ontem, por todo o Brasil, algumas manifestações entraram pela madrugada. Trata-se, agora, de ocupar, de tornar a revolta contínua: nada de horários, trajetos, rotas, código de conduta imposto como “etiqueta do manifestante de bem/da paz/cidadão brasileiro”. Como quisera Oswald de Andrade, apenas “roteiros… roteiros… roteiros… roteiros…”. Nenhum nacionalismo faz sentido porque nós somos, hoje, o efeito de acúmulo local de uma demanda global: basta de democracia representativa significa que desejamos mais! Queremos tudo. Conquistar o Estado é ainda muito pouco. Os manifestos de apoio às revoltas locais mundo afora são indiciárias dessa globalidade.

 7. Quando Foucault dizia “não caia de amores pelo poder” significa, entre outras coisas, “não renuncie àquilo que um corpo pode”; “cuide de não desejar sua própria sujeição”, seu próprio aniquilamento ou domesticação. A liberdade só deixa de ser um conceito abstrato na medida em que se converte em revolta profunda e real. Eis toda a barbárie, que Renato Janine Ribeiro crê denunciar – mas, curiosamente, são raros os momentos em que ele identifica essa barbárie do lado do Estado e da “autoridade”. Diz ele que “Quem for violento perde o apoio da sociedade”, como se os movimentos sociais fossem algo diferente da própria sociedade. O tira na cabeça de Janine também quer fazer o exame, quer fazer a sociedade transcender os enxameamentos constituintes da multidão nas ruas – gesto filosófico que, ao que tudo indica, dá direito a publicar no clipping do Ministério do Planejamento.

Seja como for, o momento é de cuidado político: identificar e rasurar, com a fina lima da prudência, esse código de ética e disciplina que impuseram à revolta profunda de todos corpos. Isso não se faz sem insurgência, sem se rebelar contra a própria possibilidade de ter nossos corpos indóceis e inúteis ainda uma vez docilizados e utilizados por quem quer que seja – o Estado ou o tira(no) na cabeça de Renato Janine Ribeiro. Eis o que causa o grande medo dos aparelhos de Estado: a mais profunda indisciplina. As lutas também se constituem, a partir de agora, por um movimento antidisciplinar que deve se tornar imanente aos próprios movimentos: jamais renunciar àquilo que podem os corpos. Cuidar de produzir continuamente sua insurreição e seu carnaval.

 

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