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Por uma política do possível a partir das manifestações

Por Laio Bispo

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Por uma política do possível – considerações acerca das manifestaçõesda multidão nas cidades brasileiras

Os recentes acontecimentos nas cidades brasileiras parecem indicar, dentre outras coisas, uma espécie de reconversão da sensibilidade política dos mais variados indivíduos. As grandes manifestações, malgrado algumas tentativas de significação moral, causaram uma descontinuidade na experiência política dos brasileiros. Há, sob vários aspectos, nessa mistura de corpos singulares que impetuosamente tomaram as ruas, uma nova distribuição de desejos. Essa física da ação abstrata, motivada por esses acontecimentos, parece indicar um novo “campo de possíveis”.

A mudança operada pelo acontecimento brasileiro diz respeito, claramente, à sensibilidade. A transformação das subjetividades, ou mesmo a possibilidade de efetuação desta, é o que nos parece mais próximo – possível. É mediante essa transformação que novas possibilidades de vida podem emergir; formas que podem, sim, embaralhar condutas vigentes – desterritorializando-as, subvertendo-as e, por fim, abandonando-as. Estamos, pois, em um processo de experimentação que, ao mesmo tempo, nos coloca em conflito com as formas existentes e com as possibilidades de criação. Tal como dissera Maurizio Lazzarato1 “o modo do acontecimento é a problematização. Um acontecimento não é a solução de problemas, mas a abertura de possíveis”. É, portanto, nesse limiar que nos encontramos – um limiar, certamente, confuso, porém oportuno. Aqui, nesse momento, novos enunciados são criados sem que sejam, necessariamente, organizados por uma unidade representativa. O acontecimento é problematizado pelo conjunto de singularidades irrepresentáveis que, a partir de suas diferenças, lançam indiscriminadamente suas questões. Questões e iniciativas de uma multidão que escapa ao domínio geográfico dos poderes institucionalizados e constituem, antes, uma topologia da resistência.

Há, contudo, aqueles que se dedicam a tentar fixar essas singularidades e esvaziar, ou desviar, seus intuitos políticos. A grande mídia, como não poderia deixar de ser, cumpre a tarefa de ordenar o levante dos revoltosos. O discurso normativo bloqueia os agenciamentos de expressão desses corpos, ferindo com estúpida moralidade a potência que se anunciava. No entanto, essa estratégia, ao que parece, não vem contendo os insubmissos que gritam através de seus cartazes e fazem da rua seu único campo de experiência possível. A horda de incendiários não parece se importar com alcunha criada para denegri-los. Eles sabem quem são, de fato, os verdadeiros vândalos – sabem onde as corujas dormem e fazem questão de denunciá-las.

O que se impõe nesse momento é, mais precisamente, “o que fazer com esses desejos que nos atravessam?”. É preciso dar corpo a transformação incorporal que se manifesta – arranjar-lhes modos de desenvolvimento material. Precisamos, nesse sentido, de agenciamentos maquínicos que correspondam às expressões criadas.

Esse possível que se abre deverá, em seu tempo, atualizar-se. É importante, contudo, atentarmos para as armadilhas das formas dadas. O possível que estamos criando não pode remeter-se às formas estabelecidas que, nesse momento, modificam-se para nos confundir. Parece que, sob inúmeros aspectos, não nos interessa mais apenas o deslocamento e a transformação das questões correntes. Interessa-nos, mais, a real radicalização do que está aí. A atualização não deve ser a redistribuição de velhos desejos, mas, sim, a efetuação de novos mundos. Nós, essa multiplicidade de diferenças singulares, devemos criar – profanar, fazer multidão, devorar – outras formas de existência que façam da liberdade uma prática. A identificação com os poderes estabelecidos não garantirá outra coisa senão a manutenção da totalidade que nos cerceia, por isso o exercício da liberdade nos é indispensável. Foucault2 atenta para o fato de que “A liberdade dos homens não é jamais assegurada pelas instituições ou leis que pretendem garanti-la. É por esta razão que quase todas as leis e instituições podem ser subvertidas” e, por isso, a liberdade só seria garantida através de seu exercício, da sua prática não condicionada.

Há, nesses movimentos, um dilema que passa, inevitavelmente, pela questão prática: o que fazer com o acontecimento? Como pensar, como proceder a partir dele?

Walter Benjamin3, em um pequeno texto, escreve que “observar com exatidão o que se cumpre em cada segundo é mais decisivo que saber de antemão o mais distante” e, intuindo a necessidade de uma utilização dos afetos, acrescenta: “Signos precursores, pressentimentos, sinais atravessam dia e noite nosso organismo como batidas de onda. Interpretá-los ou utilizá-los, eis a questão”. Parece que de pouco adiantará as tentativas de prever o futuro dessas movimentações. Não podemos ser inocentes a ponto de negligenciar uma das poucas, e talvez a principal, característica dessa política do possível que se afirma: o imprevisível – indeterminado, aberto, suscetível, contingente. Ainda segundo Benjamin, a covardia e a preguiça aconselham o primeiro (a interpretação) e a sobriedade e a liberdade o segundo (a utilização). Devemos, pois, criar estratégias que possam, de fato, permitir a utilização desses novos desejos que não cessamos de agenciar. Colocá-los em prática segundo os critérios de nossa própria liberdade.

Que as reivindicações desse junho de 2013, iniciadas pela exigência de um transporte público de fato, possam tornar-se o marco de uma instauração de uma política do possível – ou, para sermos condizentes ao nosso instinto antropofágico, uma primeira dentição que nos proporcione a devoração de outros desejos possíveis.

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 Laio Bispo é mestrando em arquitetura e urbanismo na UFBA

1 LAZZARATO, Maurizio. As revoluções do capitalismo. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 2006. p. 13-14

2 FOUCAULT, Michel. Espaço e poder – Entrevista de Michel Foucault a Paul Rabinow. Revista do Patrimônio Histórico e Artístico Nacional (IPHAN), Nº 23. Disponível em http://www.iphan.gov.br/baixaFcdAnexo.do?id=3200

3 BENJAMIN, Walter. Obras escolhidas, vol 2, Rua de Mão Única. São Paulo: Editora Brasiliense, 1997. P.63

 

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