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Por uma vida sem catracas

Por Adriano Pilatti

catraca

Um “parceiro que a rua literalmente me deu” (axé, galera intrépida que fez épica a esquina inesquecível!), o bravo Ernesto me presenteou com este desenho que ele mesmo fez. Porque ficou sensibilizado com a admiração que nutro por este slogan-síntese do levante da multidão desde que tudo começou. Em sua grandeza ontológica, para mim essas cinco palavras dizem tudo sobre as motivações profundas do ingresso dessa geração bela, altruísta e indomável na ação política direta. Traduzem a revolta contra tudo que as cidades, a “ordem” e o “sistema” negam aos pobres em geral e aos jovens pobres em particular.

Revolta, não ressentimento. A revolta é alegre, positiva, fecunda, generosa, liberadora. O ressentimento é triste, negativo, estéril, mesquinho, aprisionador. Hoje o ressentimento é apanágio dos aparelhos esquerdoides com sua tara em “pautar”, “organizar”, “disciplinar”, verticalizar, cooptar, subordinar, parasitar. E também de uma intelectualidade genuflexa, de aluguel, cúmplice da repressão, que espuma sua ira diante de uma realidade pulsante que não cabe nos risíveis jargões, esqueminhas e “marcos teóricos” em que se viciou.

Mas “a alegria é a prova dos nove” e, “como sou pouco e sei pouco”, retribuo de coração (a ele e a todos os jovens guerreiros e guerreiras da vida boa e livre) ecoando um pouco do muito que com eles e elas aprendi, assim:

Por uma vida sem catracas. Por ônibus, trens, barcas e metrôs que não sejam sórdidos navios negreiros, sufocantes latas de sardinha, macabras máquinas de enricar poucos, muito poucos. Por um transporte gratuito ou barato, confortável, pontual e suficiente para garantir o direito ao fluxo pelas cidades. Por “unidades de pronto atendimento” que realmente (e não apenas nas peças publicitárias) atendam eficiente e prontamente quem adoece. Por hospitais que não sejam matadouros de corpos e sentimentos. Por escolas que não sejam abatedouros de mentes, desejos e sonhos dos seus alunos e professores.

Por uma vida sem catracas. Por eventos culturais e artísticos gratuitos ou baratos e de boa qualidade. Pelo direito de exercitarem sua imensa capacidade de criação e beleza, e serem vistos, ouvidos, lidos, sentidos, compreendidos. Pelo direito de produzirem e transmitirem informação sem censura ou medo. Pelo direito de receberem informações que não sejam produtos comerciais enganosos, mas expressões límpidas da verdade. Pelo direito de decidirem livremente suas próprias formas de viver a espiritualidade, e assim experimentar a eternidade dos momentos em que o verbo se faz carne.

Por uma vida sem catracas. Pelo direito de não serem hostilizados com caretas de nojo e desprezo por privilegiados egoístas nas praias, nos shoppings, nas ruas e endereços “top” – em todos os locais onde, com violência surda ou gritante, hoje lhes dizem que “não deveriam estar”. Pelo direito de não serem tratados como inimigos por brutamontes que um dia também foram jovens pobres e sonhadores como eles. E que agora, adestrados para a servidão e a truculência, fazem de seus ternos pretos e fardas um signo de ameaça a quem não se submete à ditadura putrefata do dinheiro.

Por uma vida sem catracas. Pelo direito de nascer com dignidade em casa ou em salas de parto adequadas, e não em macas sujas nos corredores fétidos de um sistema público falido. Pelo direito de morrer com dignidade, sem que na hora mais grave e triste os parentes e amigos tenham que vasculhar os bolsos em busca de moedas para saciar o apetite sórdido dos “papa-defuntos”.

Por uma vida sem catracas. Por uma política que seja de fato “arte de governar a cidade”, autonomia, decisão direta. E não a “dança dos famosos” de caciques, suas verbas e cargos, a dança da chuva “cheia de som e de fúria e nenhum sentido” em que cidades, estados e gentes são moeda de troca entre gangues partidária$. Por uma economia que seja realmente “gestão da casa”, do bem estar e da fartura para todos, do comovente luxo dos pobres. E não a razão estéril das planilhas, negociatas, índices e picaretagens. Por um patrimônio público que seja comum, por uma natureza preservada e aberta à fruição sem depredação. Por um Direito e uma Justiça que sejam garantia das liberdades e dos direitos, e não a denegação de tudo isto.

Por uma vida sem catracas. Pelo direito de viver a explosão dos afetos, dos amores e dos desejos com respeito à diversidade, com beleza, leveza e mansidão. Pelo direito de criar diariamente novas e prazerosas formas de estar juntos, sem o voyeurismo repressivo e cúpido dos predadores, impotentes para o carinho e a ternura. Pelo direito de trabalhar e produzir livre, cooperativa e solidariamente, sem comando, sem exploração, sem submissão a “racionalidades” necrófilas.

Por uma vida sem catracas. Eles “podiam estar” se locupletando, fraudando, aprendendo a viver de pequenos ou grandes golpe$, credenciando-se para ser capatazes e feitores de outros corpos. Podiam se prestar a ser carne barata e conspurcável no grande e sujo bordel do capitalismo, a exercer a violência contra pequeninos ainda mais frágeis do que eles. Mas não: a “bronca” deles é tão somente contra os cachorros grandes, os de cima: os balofos, poderosos e insaciáveis donos do mundo, seus escribas pragmaticamente ignorantes, seus jagunços armados até os dentes.

Por uma vida sem catracas. Por uma vida menos ordinária. Por um passado escravista e colonizador que passe de uma vez por todas. Por um presente menos mercenário, menos deprimente. Por uma perspectiva de futuro menos desesperadora. É por isso que esses corajosos, solidários e virtuosos meninos e meninas lutam. É por isto muitos de nós defendemos seu direito de lutar. Por eles, por nós, pelos que virão, é preciso entender de uma vez por todas o muito que eles têm a dizer, denunciar, propor e oferecer. Antes que seja tarde. Para todos.

Adriano Pilatti é professor de direito constitucional da PUC e UniNômade

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