UniNômade

Pós-neoliberalismo, um mal-entendido

Por Rosa Lugano, no Lobo Suelto! (Argentina), 17/1/15 | Trad. UniNômade

C78

Uma resposta a Emir Sader

Emir Sader escreveu, há alguns dias, no jornal argentino Página/12 que “a ultraesquerda fracassou”. Imaginamos seu alívio. E sabemos que há muitos como ele: Sader é mais que Sader, é um estado de alma e um modo de enunciação adotado por certa elite de esquerda e burocratas dos governos chamados pós-neoliberais na América Latina.

Tratemos de desfazer alguns mal-entendidos ou preconceitos que habitam este tipo de designação.

A ultraesquerda seria todo aquele que, tendo participado da luta contra o neoliberalismo nos anos 90, decidiu diferenciar sua construção política em relação aos governos. Aí entram desde os piqueteros argentinos que apostavam na autonomia dos movimentos sociais até aqueles que, na Bolívia ou no Equador, se opõem ao modelo extrativista. Quer dizer: todos aqueles que desejam mudar o mundo sem tomar o poder, entre os quais se incluem, desde já, os zapatistas.

No centro da discussão aparece a questão do neoliberalismo. Não há como ignorar a importante diferença que estes governos marcaram, na América do Sul, em relação à conjuntura dos anos 90. Não há como sentir-se indiferente à constituição de uma tendência para a cooperação mundial por fora da hegemonia imperialista. São muitas as políticas públicas nacionais e regionais que manifestam uma vontade antineoliberal e que abrem possibilidades novas de construção popular.

Mas o modo como Sader descreve a situação – que poderia ser aberta e generosa – acaba sendo uma demonstração exemplar do tipo de sectarismo burocrático e paranoico que se constrói sobre estes processos. Sua tentativa consiste em delimitar a teoria política em torno do partido e do estado e em liquidar toda política que leve em consideração outras formas de protagonismo social.

Em primeiro lugar, porque a “superação” do neoliberalismo é muito relativa. Para Sader, o neoliberalismo é uma fase de governo, ou uma face do governo, que caduca quando o “partido” neoliberal perde as eleições. Mas não é mais correto que, como fenômeno global do capital, o neoliberalismo se reproduza entre nós, tanto a partir da hegemonia das finanças, quanto da generalização de estratégias de valorização da racionalidade empresarial, que se espalham, inclusive, com força inusitada, entre os setores populares?

Se não é assim, como se explica que o PT tenha ganho as últimas eleições por tão poucos votos flertando com o mesmo programa neoliberal que Sader declara publicamente superado? E não é a própria ideia de êxito e fracasso um modo neoliberal de valorar, aplicado aos movimentos e ativistas, isto é, aqueles que mais valeria a pena levar com consideração, em vez de passá-los ao campo inimigo (sobretudo quando o lugar desde o qual se valora é o mesmo em que governam as forças policiais repressivas do Brasil)? Ou não se vê que usar a noção de povo desde cima – povo que vota, povo que se deixa representar – se busca apenas plasmar uma representação não problematizada do povo real, múltiplo e em movimento, cortando de antemão qualquer emergência dissonante capaz de colocar novos problemas, como aconteceu em junho de 2013 nas ruas de várias cidades do Brasil?

Não seria melhor admitir que o protagonismo dos movimentos e lutas contra o neoliberalismo foi fundamental e que os governos chamados progressistas não nascem de um repolho (ou de um súbito relâmpago) e que, à diferença dos partidos que envelhecem quando viram estado, os movimentos têm outros tempos, outros ciclos, outros modos e outros horizontes, sendo inclusive o desafio maior, para estes últimos, não se converter em estruturas burocráticas ao realizar experiências com o estado? Não seria uma boa notícia que os movimentos sociais extremo-antineoliberais recompusessem a agenda e a capacidade de luta todas as vezes em que estivessem em falta?

O alívio que sente Sader pela sua “superação” se converteria, então, sobre este novo solo, em urgência de recomposição dos movimentos, inclusive para as metas de sobrevivência do progressismo no interior do governo.

O fato de que haja uma vontade política diferente em alguns governos não impede que essa vontade não se consagre numa amálgama de neodesenvolvimentismo e neoextrativismo, cuja base estrutural continua sendo neoliberal. Ademais, a permanência dos chamados governos “progressistas” não garante por si só a revisão – e isto é muito claro para os casos do Brasil e da Argentina – de uma política securitária promovida pelos grandes meios de comunicação, mas ao mesmo tempo corroborada pelo estado e forças de segurança nos fatos, difundindo o classismo e o racismo contra os jovens de bairros pobres e favelas.

Dizem os zapatistas que a luta é da vida contra o neoliberalismo. Porque o neoliberalismo, entre muitas outras coisas, é um modo de vida: Que deveríamos fazer nos numerosos casos em que as políticas neodesenvolvimentistas/neoextrativistas se articulam com os padrões neoliberais de acumulação?

Por que não deveríamos apostar nas redes que tecem os novos sujeitos sociais que resistem ao neoliberalismo, ao classismo e ao racismo? Por que deveríamos nos refugiar na autocomplacência de intelectuais que percebem todo vislumbre libertário autônomo sempre como mais como uma ameaça, e não como possibilidade de refundar o político?

 

Tradutor: Silvio Pedrosa.

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