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Sciopero Aldeia

Direto da greve dos imigrantes precários do setor da logística na Itália, Talita reflete sobre a luta indígena na Aldeia Maracanã, na crista de um movimento transversal e afirmativo que, apesar da reação policial, tem forçado o governo a pela primeira vez fazer concessões e propor negociações.

 

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Por Talita Tibola | Pesquisadora e doutoranda em psicologia (UFF)

Na última segunda-feira, dia 22, estava em Bologna com um grupo de estudantes pesquisadores precários que partia às cinco da manhã pra se unir à greve nacional da logística, organizada pelos trabalhadores imigrantes precários que, para além de reivindicar melhores condições de salário trabalho e vida, colocava em questão a própria forma de organização do movimento: o afastamento dos tradicionais sindicatos e mediações que torna a greve muitas vezes somente uma questão de exposição das condições ruins de trabalho, mas que não afeta em nada o funcionamento da produção, ou seja, afeta a todos menos quem tem de afetar: o patrão.

Não me parece um mero acaso também que os trabalhadores da logística façam uma greve que seja tão boa justamente em questões de logísticas e consiga parar vários pontos por onde passam os fluxos de mercadoria . São eles que fazem a máquina funcionar, são também eles que sabem quais pontos atingir para desmontá-la e, se fazem isso juntos, desmontam outro sistema embutido nessa máquina, o do racismo interno que separa imigrantes por nacionalidades. Não se deter no que tinham de diferente, mas no que tinham em comum, viviam e produziam juntos torna-se fundamental para superar a tática clássica do “dividir para conquistar”. E o comum deles era o fato de serem explorados (com todas as particularidades das leis de imigração na itália), o fato de compartilharem a experiência de exploração, racismo e violência como imediatamente inaceitável, e essa exploração tomada então não como vitimização, mas como motivação para lutar juntos.

Apesar de não faltar violência por parte da polícia, que não hesitou em vir pra cima com cassetetes pra tirar grevistas e manifestantes do caminho dos caminhões – cassetetes que, aqui como no Brasil, pesam mais a depender de quem está diante deles -, a greve foi vista de forma bastante positiva por ter conseguido dar um nó nessa circulação, a partir de uma mobilização não tanto massiva de pessoas, mas bem coordenada.

Cheguei em casa depois de dez horas nos piquetes, com a lembrança ainda desses cassetetes sobre imigrantes e militantes de movimentos sociais, quando vi a primeira cena dos vídeos da Aldeia Maracanã, uma cena aérea, covarde como todas as que vi na sequência, mas que me chocou pela semelhança com o que tinha acabado de viver. Uma força desproporcional, um aparato apaixonado por si mesmo e que avança sobre um número ínfimo de pessoas. Continuando a ler as notícias e a ver as imagens, naquela noite eu só soube chorar, por toda aquela violência.

O que agride é a violência aos corpos, mas também a destruição de um espaço e de tudo que está vinculado a ele, tudo o que foi construído por aqueles índios desde 2006, aliás, desde que índio é indio, isto é, um ser perseguido, violentado e sem direitos que tem de se reinventar e reinventar seus espaços apenas para existir como tal. Era, além disso, um espaço que foi se transformando com a própria luta, e transformando a própria maneira de lutar, e que também percebeu como é de interesse do estado “dividir para conquistar” e portanto, interessava muito mais ao estado distinguir quem era índio e quem não era, para assim enfraquecer o movimento. Mas a Aldeia Maracanã possibilitava dizer “somos todos índios” a despeito do poder que queria separar, reprimir esse movimento, negociar uma recompensa, um aluguel “social” em espaços minúsculos, homogeneizados, afastados e historicamente sem a mesma força, para assim “virar a página”, como deseja o secretário de cultura Sergio Sá Leitão. Qual cidade e qual cultura eles nos querem fazer engolir?

A Aldeia Maracanã nos mostrou que somos todos índios, não por que sejamos todos iguais, mas por que existe uma condição de luta que nos atravessa a todos, e assim, somos todos negros, mulheres, pobres, operários como aqueles que pularam o muro para dar apoio à causa indígena, pois a luta é uma só, não se trata de identidade, mas de uma experiência partilhada que nos impulsiona a continuar recusando o estado e lutando para viver melhor.

E isso os cassetetes não matam, é isso que os cassetetes não podem matar. Toda a força à Aldeia Maracanã.

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