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Tata Madiba

Por Laura Burocco, correspondente para a UniNômade em Johannesburg

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Não falarei do estadista que desde quinta-feira está sendo acrítica e universalmente adorado. Prefiro falar do Madiba, o Tata Madiba que pessoas comuns estão celebrando nas ruas das cidades sul africanas, especialmente da cidade de Johannesburgo.

Mandela é o Congresso Nacional Africano – CNA, e o atual CNA está longe de ser o que era em 1994. A África do Sul se tornou um país democrático, inserido no pleno do movimento econômico mundial de globalização, e, desde então, esta democracia fica entre a necessidade de consertar uma enorme desigualdade interna e o interesse em se definir como uma econômia emergente competitiva numa escada mundial e regional. Toda a transição sul africana, operada pelo CNA é caracterizada pelo crescimento da economia neoliberal, onde o acesso à direitos muitas vezes é confundido com acesso ao consumo, e a politica de Black Empowerment Economy –  BEE representa um dos desastrosos instrumentos pra consertar os piores índices de desigualdade no mundo. Basta este minimo preâmbulo pra dizer que Mandela e o CNA estão demasiadamente ligados no imaginário colectivo sul africano pra querer embarcar neste tipo de discurso neste artigo. Prefiro, portanto, falar dele como o homem com quem muitos sul-africanos ligam à própria liberdade. Obviamente, ele não fez isto sozinho, mas nas ruas da Africa do Sul neste momento as pessoas não querem pensar no que foi a complexidade da história deles, querem apenas homenagear o homem comum que restituiu “humanidade” a seres humanos desumanizados.

Desde 1923, o Pass Act obrigava legalmente a população negra em levar sempre com eles o próprio passaporte. Qualquer pessoa branca poderia pedir a um negro para mostrar o passaporte e se se encontrassem uma razão válida (trabalho) para estar onde estavam, eram automaticamente “deportados” para o próprio lugar de nascimento. Os negros tinhas acesso à cidade exclusivamente como mão de obra. Era um dos muitos sistemas idealizados pelo Apartheid para segregar a população, limitando severamente os movimentos dos pretos, aprisionando pessoas dentro de townships divididas de acordo com raça. Este sistema bárbaro foi abolido apenas no final de 1989.

Para alguém que não tinha direito de pisar no centro da própria cidade sem carregar um passaporte (pensem no direito de vir em ir dos moradores das favelas brasileiras, aplicado dentro de uma nação inteira, em uma base racial legalizada) que indicasse os horários, as localidades e as razões porque estavam circulando, as condições de vida atuais podem ser infinitamente melhores, pois permitem ao menos circular livremente. Com certeza isto não significa o alcance de um sistema democrático, mas representa algo de importante.

Como estrangeira, morando fora do meu país há mais de dez anos, fico pensando o que deve ser ter que carregar um passaporte para poder andar dentro da própria cidade. Ainda mais, fico pensando ao significado que esta limitação pode assumir por uma pessoa africana pela qual o conceito de “terra natal”é algo absolutamente ligado à própria identidade. Se eu fico sendo humilhada por policiais federais ao redor do mundo, sem estar na minha “terra natal”, que incrível humilhação tinha que ser esta? Em 1952 como ato de resistência contra o regime racista do Apartheid, Mandela queimou o próprio passaporte.

Basta entrar no Apartheid Museum in Johannesburgo, no Hector Pietersen Museum em Soweto, no District Six Museum na Cidade do Cabo para ter a ideia da magnitude do que este homem representa para este povo.  Por uma pessoa branca, como esta que escreve, estes lugares representam um repetitivo golpe no estômago. Qualquer pessoa branca dotada de um mínimo de sensibilidade acaba se sentindo incomodada com a própria cor. Se no meu caso tento estupidamente me justificar pensando “Eu não faço parte desta história”, qual estúpida justificativa podem tentar procurar os brancos sul africanos para justificar ou pelo menos tornar mais suportável a própria história?

Mandela abriu os caminhos pra estas pessoas se tornarem seres humanos: não apenas libertou o próprio povo negro, mas libertou parte de uma nação futura do sentimento de culpa sobre qual nenhuma sociedade multirracial pode se basear. A diferença do Steve Biko, que através do Black Consciousness Movement apoiava e propagava uma diferença racial extremamente forte, Mandela trabalhou firmemente pela construção de uma sociedade multirracial onde ninguém tinha que ser discriminado pela cor da própria pele, a Rainbow Nation na qual ele acreditava.

Este é visivel nas ruas de Johannesburgo. Mistura não é uma ideia com a qual os sul africanos se sintem confortáveis. Tem raríssimos momentos e espaços aonde é possível experimentar algum tipo de mistura, seja esta racial, econômica ou social. Triste dizer, mas a maioria das pessoas lembram a Copa 2010, como o único momento que se sentiram como uma “única grande nação”. Neste últimos dias o que está sendo possível è ver pessoas se misturarem, e todos juntos homenageiam o homem que tornou isto pelo menos pensável.

Mandela faleceu discretamente na noite de quinta-feira depois de ter sido desumanamente mantido em vida forçosamente por meses para satisfazer interesses do partido e, mais grave, da própria família. No final, jornalistas, que por meses ficaram esperando este momento na frente do hospital de Pretória ou na frente da casa dele em Johannesburgo, receberam a noticia como todos nós: no meio da noite, através de um anúncio do presidente Jacob Zuma.

No dia seguinte não tinha muita gente nas ruas do centro de Johannesburgo. Em parte, as pessoas estavam cansadas desta cínica estória ou tinham que conduzir as próprias tarefas diárias de uma sexta-feira qualquer. Mas a Vilakazi Street — rua em Orlando, Soweto, onde Mandela morou com Winnie Mandela até ser preso — estava cheia de gente. Mulheres, homens, jovens, crianças, idosos, turistas, sowetanian, brancos, negros, indianos, BEE.  Em Houghton, um dos bairros mais exclusivos de Johannesburgo, onde a família Mandela mora, um agente policial comentava que desde quinta-feira as pessoas não paravam de chegar em uma Johannesburgo estranhamente fria e chuvosa a dias. Um homem idoso que mora no meu prédio me diz: “ Viu esta chuva? É o grande homem que está indo embora”. Tem um rio de pessoas e de flores a acompanhar o “grande homem” ao redor deste país.

Se as homenagens em Soweto e o Central Businness District – CBD estão claramente organizados pelo CNA, a casa de Houghton fica menos caracterizada pela presença do partido, e como um jornalista local diz: “parece como a celebração do sucesso do experimento da classe média da África do Sul”.  Mas ambas as comemorações fazem pensar. Se em Soweto e no CBD de Johannesburgo fica impressionante ver idosos orgulhosamente envolvidos nas bandeiras do partido; em Houghton impressiona o tamanho das mansões ao redor da casa da família Mandela.

Tudo isso parece um pouco em desacordo com a realidade desde país e desta cidade. O presidente Jacob Zuma está nas páginas de todos os jornais por ter descaradamente utilizado milhões de dólares dos contribuintes para atualizar suas residências, acomodar o próprio harem e uma falange de crianças; a municipalidade de Johannesburg (ANC) esta ocupada numa operaçao chamada Clean Sweep ( Limpeza Geral ) com a qual esta violentemente e ilegalmente removendo das ruas vendedores informais em função da promoção da World Class African City, e milhões de pessoas continuam a não ter acesso à moradia digna e a infraestrutura básica.

Por todas estas razões, prefiro olhar as crianças, que tomam este homem como um ser humano, com as imperfeições e os limites de qualquer ser humano.  Lembrei quando, no aniversario de Mandela, em Junho, fui buscar a filha de um amigo na creche. Ela saiu levando um postal para Tata Madiba que tinha desenhado e ficou me falando por meia hora dele, como se fosse o avô dela, como se não tivesse nenhuma distância entre ela e o grande homem que está sendo homenageado ao redor do mundo. Prefiro olhar estas crianças levadas pelos próprios pais para colocar flores e acender velas porque, sem retórica, penso que serão os únicos verdadeiros arquitetos da Rainbow Nation daqui a pouco e, ainda melhor, sem nem perceber. Prefiro pensar nisso porque fica muito complicado assumir a coragem de ser uma voz contra, especialmente não sendo parte desta historia. Agradeço os amigos que, sendo parte dela, sentem que podem dizer algo que não seja exclusivamente sobre a grandeza dele. Mas deixo eles falarem. Eu não nasci em um lugar que não teria me permitido ser amiga deles.

Obviamente Mandela tem suas contradições. Obviamente as condições de vida da maioria dos negros sul africanos continuam desumanizadas. Como sempre acontece nestes momentos, o homem está se tornando o super homem, esquecendo os limites da humanidade dele, mas não se pode deixar de reconhecer que ele abriu caminhos que pareciam impossíveis.

Tem uma frase de Mandela nas camisetas das pessoas pelas ruas de Johannesburgo nestes dias que diz : “it always seems impossible, until it’s done” (parece sempre impossível, até quando é feito). Me faz lembrar de uma faixa na Avenida Rio Branco pouco mais de um mês atrás com a frase do Bertold Brecht, “Nada deve parecer impossível de mudar”. Ele fez a parte dele, agora cabe aos sul africanos fazer a parte deles. Responsabilidade, transferência de tarefas, assumir compromissos, lealdade, transparência, tudo isto assusta. Não apenas os cidadãos sul africanos que se sentem encarregados desta responsabilidade, mas também o governo nacional que está mostrando a própria fraqueza e a corrupção. Sem esquecer que no próximo ano serão as primeiras eleições sem Mandela.

 

Revisão: Marcelo Castañeda

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