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Tempo de amor

Por Silvio Pedrosa, no Lado esquerdo do possível (11/10)

multitude

“Mas tem que sofrer
Mas tem que chorar
Mas tem que querer
Pra poder amar”

Baden Powell e Vinícius de Moraes, ‘Tempo de amor’ In: Os afro-sambas (1966)

Depois das jornadas de junho, as lutas de outubro. 2013 é um ano que jamais acabará. Continuará ecoando como momento de explosão, como momento em que as mil e uma lutas que lhe precederam engastaram-se num plano de consistência, de solidez, de dureza, e fizeram emergir não o futuro, mas uma temporalidade aberta, em disputa. Um tempo que rompe a eterna sucessão modorrenta do mesmo, que na e pela luta abre as possibilidades de, no instante que se abre na borda do ser, inovar o mundo, criar um mundo novo. Outubro não confirma junho, mas o afirma. As jornadas de inverno não foram raios num céu azul, mas o prelúdio da tempestade que chegou de vez em plena primavera.

As nuvens não começaram a se carregar agora. O acúmulo das lutas sociais no Brasil remonta e faz ressoar os últimos anos. Quem vê os Black Blocs postados no front, vê o exército dos moradores do Pinheirinho. Quem se indigna com a tragédia do(s) Amarildo(s) são os milhares de membros da família Guarani Kaiowá. O belo monstro que surge nas ruas arrombando a porta da festa da ordem e do progresso em pleno 7 de setembro é a energia social e política que não será gerada na Belo Monte que destrói o Xingu.

Todas essas lutas, e muitas outras, mobilizavam antes de junho. E se elas eram incapazes de fazer rachar o consenso conservador do desenvolvimentismo, produziam pequenas fagulhas. Até que em junho o fogo pegou e o barril de pólvora explodiu. Os vinte centavos — símbolo da precariedade do transporte urbano em todas as cidades brasileiras — abriram a porta e deixaram passar a revolta popular. Mas a personagem, o espectro que nos ronda, que está conosco desde então é o de Amarildo. Pois o que temos feito desde então senão amar Amarildo?

Nós o temos amado, cada dia mais intensamente, acompanhando-o, no seu drama — que é nosso — enquanto signo daquilo que continuam sofrendo os pretos e pobres do Brasil. Amarildo tem consubstanciado o amor que temos compartilhado entre nós mesmos quando fazemos multidão. Pois, por mais que imperem as metáforas belicosas e que as cenas produzidas tenham sido, verdadeiramente, dignas de campos de batalha, o fenômeno novo não é o da guerra travada. Essa foi tão descortinada enquanto tal, pois descortinou-se a política enquanto sua continuação por outros meios. O fenômeno novo é a abertura de um novo tempo plasmado no amor das lutas.

A multidão que ganhou corpo, que se fez consistente de junho a outubro não emergiu naquele mesmo tempo que viu os ecos das indignações das lutas dos últimos anos esbarrar na indiferença geral. Emergiu num tempo novo, filho do amor, essa potência ontológica de construção do ser. Um tempo de amor, sofrido, chorado, desejado enquanto possibilidade de amar. Não um estado de coisas em que é possível amar (impossível desde a percepção de que é o próprio amor que gera o ser), mas uma temporalidade aberta em que esse amor consegue dar sentido comum às indignações, aos anseios e às esperanças de todos que compartilham da luta.

As batalhas travadas contra os poderes constituídos apodrecidos são a própria expressão potente desse amor que atravessa a multidão. É ele que produz a mistura entre Black Blocs e professores: Black Profs. É ele que retira o verniz da “paz” à brasileira que se assenta nessa violência que tortura e mata, nessa violência que faz desaparecer. Violência física e discursiva que coage pelo medo e se camufla nos lugares comuns do pacifismo como característica da brasilidade. O brasileiro, sabemos, de certa forma graças à Amarildo, não é pacífico. É pacificado. E as UPPs são tão somente um novo dispositivo dessa pacificação que institui a paz do medo garantindo a modernização capitalista. O novo moedor de carne humana que assegura a super-exploração do trabalho vivo dos pobres.

O tempo de amor que junho instaurou é capaz de abalar esse consenso secular, não apenas como figura discursiva, mas como possibilidade de ação. A descida, em manifestação, dos moradores da Rocinha e do Vidigal, bem como o protesto dos moradores da Maré contra a chacina perpetrada naquele território, foi emblemática da potência do que vem acontecendo no Brasil e, mais especificamente, no Rio de Janeiro: os pobres, sempre incapacitados de organização autônoma, encarnações mistificadas do pacifismo, marcharam pelo Leblon, fecharam a Av. Brasil… fizeram a Rocinha devir Black Bloc!

Nesse tempo que vamos vivendo o amor se apresenta aos olhos nos encontros na multidão: no seu fluxo encontramos e fazemos amigos, compartilhando, por vezes, apenas a alegria de estar juntos manifestando essa potência do encontro que nos altera, que nos faz outros. Na resistência comum contra as repressões desencadeadas pelo poder institucional que quer fechar esse portal por onde passa o inesperado.

Mas o amor não está presente apenas como condição ou sentimento compartilhador. Ele qualifica, transformando a multidão ao atravessá-la e aquela configuração potente de junho se metamorfoseou num monstro ainda mais assustador para o poder. As capas dos jornais, as imagens nas TVs o ilustram à exaustão por aquilo que elas não dizem, por aquilo que elas não mostram. O horror do poder foi ter assistido, boquiaberto de espanto, a uma multidão que, após passar por meses de luta, qualificou suas pautas através de um aprendizado político, intensificando os desejos de mudança. Não havia mais os gritos genéricos anti-corrupção, os cantos anti-violência e anti-partido. Havia pautas de transformação: LGBTs, defesa das riquezas naturais comuns contra os leilões do petróleo, o desejo de uma nova ordem que não sustente na e pela violência, entre outras, além da pauta-chave: a valorização da luta dos trabalhadores da educação contra o consórcio estado-mercado, o entendimento da educação como atividade socializada: auto-formação. Havia o desejo de derrubar governos (e não aquele que agradaria a certos setores do condomínio do poder, por mais condescendente que este seja com eles) e de se manifestar como poder constituinte capaz de alterar os rumos ditados pelo poder constituído, fazendo-o explodir na sua indiferença.

A multidão que emergiu nas ruas do centro do Rio de Janeiro neste 7 de outubro deu provas de não ser mais a mesma de junho. Sua metamorfose assustou, pois aquela monstruosidade ambígua de junho se alterou, detonando um movimento anti-poder, que articula mesmo as lutas do velho sindicalismo (ressignificadas na sua imersão no movimento dos movimentos). Os alvos ficaram nítidos e as pautas se revelaram em toda a sua radicalidade. O porvir que se abre no nosso tempo de amor é possibilidade de constituição de um sentido comum às diversas lutas. Para que possamos continuar a amar.

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