Por Marcus Fabiano, em Arame falado, 19/3/16
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(versão audível no Soundcloud)
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A legitimidade carismática é um obstáculo ao desenvolvimento da democracia e de uma percepção mais nítida das instituições. Ela sacrifica o caráter abstrato da isonomia do Direito em nome das características personalíssimas de algum protagonista investido de dons salvíficos. Mas a racionalidade crítica e o deslumbramento com o carisma fluem em sentidos opostos: a primeira requer uma educação prolongada da cidadania e da opinião pública; o segundo, apenas a manipulação eficaz dos afetos mais básicos, coisa que hoje se pode inclusive alcançar por meio de sofisticados dispositivos de contágio emocional, tais como robôs e algoritmos de redes sociais e até estudos de neuropublicidade. E é nesse mundo do carisma, continuado pelo universo empático das emoções, que assistimos a uma disputa entre narrativas capaz de transformar nossa combalida cena pública em uma arena de ódios que movem pesados redutores de complexidade, a exemplo dos fantasmas do “golpe” e da perseguições aos “heróis injustiçados”.
Lamentavelmente, hoje não mais dispomos de homens capazes de debater a ossatura institucional do Estado a partir da qual a própria polarização da política se desenrola. O Estado é tratado como governo e este, por sua vez, como aparelho. De outro lado, tampouco as versões jurídicas e judiciais, que se dispõem a fracionar a miséria dos acontecimentos em microepisódios, logram dar conta de algo muito mais profundo e que opera como pressuposto elementar da tomada de posições nesse debate sobre a corrupção: o sentimento de justiça. É a partir das intuições do sentimento de justiça que boa parte dos comportamentos orientam-se segundo máximas e diretrizes suficientemente claras como esta: só os probos podem acusar os ladrões de roubar. E a instituição de um tal princípio, ao não admitir a relativização pelo argumento da “seletividade”, acaba colocando dramaticamente em xeque a suposta ascendência ética de certa esquerda para cuidar da coisa pública.
Abismado, venho chamando essa argumentação capciosa de “relativismo da probidade”, apontando tal retórica como um erro cometido pela esquerda de modo persistente. O “relativismo da probidade” transforma a moralidade pública em uma questiúncula aparentemente técnica, um tópico rapidamente reclamado pelos especialistas em direito divididos pelos interesses dos réus que são seus clientes e que tantas vezes os remuneram com recursos oriundos do próprio dinheiro do povo. Lula recentemente engrossou esse caldo: atuando a partir de uma hábil performance empática, ele silenciou sobre a corrupção praticada por inúmeros atores de seu partido. E esse silêncio de Lula sobre a corrupção reiterou uma ambiguidade cínica e perigosíssima para nossa democracia, coisa que já se vinha manifestando num certo regime de encenação: publicamente, vagas críticas e condenações genéricas; internamente, os assaltantes do erário são aclamados como “mártires do projeto” e “heróis do povo brasileiro”.
Quando até os intelectuais, em momentos de crise, agem como claque em vez de serem os faróis da autonomia e do esclarecimento republicano, as perspectivas tornam-se ainda mais sombrias. Mesmo assim, é importante assinalar que toda a vasta sociologia de base marxista, que desde a Europa difundiu-se para a crítica da “seletividade” do sistema penal, tinha como propósito denunciá-lo em sua sistemática de recrutamento privilegiado de pobres e negros para o exercício punitivo do Estado. Que essa denúncia da “seletividade” dos pobres seja agora reclamada, episodicamente, para se defender a corrupção de riquíssimos banqueiros, empreiteiros, publicitários e altos funcionários de governos, causa-me um profundo desapontamento, mas não chega a me espantar por completo.
Quero então enunciar a minha compreensão de alguns fatos para além dos subterfúgios da gramática jurídica que vêm dominando a exposição fragmentária dos episódios: Mensalão, Lava Jato, Zelotes, fundos de pensão, BNDES, Correios e até mesmo o caso Celso Daniel fazem parte de um único e mesmo superesquema de apropriação de recursos públicos. E é absolutamente inútil imaginar que as microssegmentações do Direito Penal possam dar conta de uma narrativa tão intrincada e que ultrapassa em muito o diagrama do varejo interpretativo dos juristas, desenhado na (e para a) tradição liberal da responsabilização de indivíduos singulares. Contudo, até nisso a nossa miséria consegue ir mais longe. Uma vez que é ainda cedo para os historiadores se debruçarem sobre os nexos entre tais esquemas, sequer dispomos de um bom jornalismo investigativo, crível e de alta qualidade, divididos que estamos entre a tradicional mídia das elites e uma assessoria de imprensa do Governo Federal disfarçando-se de cobertura independente enquanto é financiada por recursos públicos. Ademais, aqueles que empregam de modo histriônico e atécnico as palavras “golpe” e “fascismo” – muitos já mergulhados em um delírio que beira a dissonância cognitiva – silenciam por completo sobre a faustosa remuneração das corporações de mídia mantidas com farta (e o mais da vezes desnecessária) publicidade oficial.
Em um futuro próximo, os cientistas sociais independentes que restarem dignificando seus ofícios terão também um tarefa hercúlea envolvendo o atual momento: rastrear as tomadas de posições e cruzá-las, não com os lindos discursos teoréticos e apologéticos, mas com as tomadas de ações efetivas desses mesmos agentes no terreno da jurisdição que envolve casos de corrupção, revelando assim as práticas concretas e os interesses que subjazem às ávidas buscas por prestígio e distinção entre os notáveis do direito. Aliás, uma coisa que eu aprendi com alguns cientistas sociais veteranos é que, em matéria de uma sociologia rigorosa, a última coisa que se deve fazer é acreditar apenas no que os atores dizem a respeito de si próprios e perante os seus respectivos grupos de legitimação.
Pagamos um preço altíssimo pelo colapso do nosso sistema de virtudes republicanas. Nesse quadro, a ideologização maniqueísta é apenas mais uma face da brutal mediocrização do pensamento público brasileiro. Não só não temos mais homens de Estado, como aqueles poucos que tivemos sequer são lembrados pela lógica do inimigo que captura a política em uma bolha de mesquinharias que transforma o povo em uma referência nominal e completamente exterior, exceto em dias de eleições. Entretanto, como se ouvirá na gravação mais adiante disponibilizada, isso chega a ser até uma característica do nosso processo de formação histórica, no qual se registram sucessivos abandonos da sociedade pelo Estado e seus governos, assim como é também característica nossa um conjunto de resistências heroicas que permitem ao povo desorganizado sobreviver a despeito das artimanhas e do egoísmo dos poderosos em desacordo entre si.
É muito fácil falar de Estado Democrático de Direito lembrando violações individuais de figuras proeminentes, sempre (e mesmo assim) condenáveis. Difícil mesmo é lembrar que, desde junho de 2013, pessoas morrem, são presas e sofrem as mais bárbaras e sistemáticas violências por protestarem nas ruas contra aquela que já pode ser apresentada como a mais degradante megaoperação entre governos e o setor privado no Brasil: o planejamento de se desviar bilhões de dólares para a realização de uma Copa do Mundo e de uma Olimpíada mediante a contratação superfaturada de empreiteiras, erigindo-se um conjunto de equipamentos inacabados e/ou sem nenhuma urgência por todo território de um país de terceiro mundo cujos serviços públicos e infraestrutura encontram-se praticamente em frangalhos. As sórdidas negociatas envolvendo pedágios de corrupção pagos ao PT, ao PSDB e ao PMDB começam já a vir à tona. E pronunciando-se a respeito desses megaeventos, Lula declarou o seguinte: “tem gente que acha que não pode fazer Olimpíada porque não tem hospital. Olha, sinceramente, eu acho isso um retrocesso, sabe?”.
A crítica à afirmação acima não merece ser aprofundada. Haja ou não o impeachment, esse Governo, com ou sem Lula, sistematicamente teve por parceiros decisivos do seu projeto os seguintes atores: o bispo Edir Macedo, a enlameada FIFA, o latifúndio escravista e exportador do agronegócio, a devastação ambiental das mineradoras, os lucros estratosféricos dos bancos e das empreiteiras e uma base aliada originalmente integrada por Cunha, Renan Calheiros e Delcídio do Amaral. E àqueles que acham que não estou apontando com a devida ênfase os erros ou desmandos da direita, só tenho uma coisa a dizer: pilhar o Estado é a própria vocação histórica dessa direita. Ou seja: dado o nível de subdesenvolvimento do capitalismo brasileiro, a grande concentração privada de riquezas é praticamente impossível, entre nós, sem essa promiscuidade com a coisa pública. Simples assim. Mas na medida em que a esquerda aceita relativizar tais práticas de atentado ao bem comum em nome do sucesso eleitoral de seu “projeto redentor”, ela iguala-se organicamente à própria direita que deixa de combater, desistindo da superioridade ética que lhe dava guarida nos enfrentamentos mais ríspidos a respeito de indecentes desigualdades . Tal esquerda deixa inclusive de ser concebida, por setores do capital, como uma genuína força de ameaça, passando a ser tratada como uma atrevessadora comissionada às vezes servil, outras vezes inconveniente.
Há poucos dias, diante da súbita alteração fática do nosso sistema de (des)governo, comentei jocosamente a nomeação de Lula como a implantação de um esquizoparlamentarismo cleptocrático de base carismático-midiática. No entanto, deixei de acrescentar algo que me parecia óbvio demais: a sem base parlamentar. A ida de Lula para o Governo deve ser interpretada como uma continuação, no Congresso Nacional, das negociatas que também se desenrolam nos acordos de leniência que pretendem manter as empreiteiras corruptas em pleno funcionamento. São as imunizações e a busca de perpetuação de um mesmo sistema viciado. Tivesse o Governo alguma superioridade moral sobre tais quadrilhas que já o sustentam, tais empreiteiras seriam desapropriadas em nome do interesse público e sob o efusivo aplauso do povo, formando-se, com seus espólios e com a ajuda das universidades, uma Empresa Brasileira de Obras Públicas, voltada a gerar empregos e algo hoje desconhecido no panorama brasileiro: a excelência no acabamento, na duração, na funcionalidade e na beleza dos equipamentos urbanos e de infraestrutura de que o Brasil tanto necessita. Observe-se ainda que, caso ocorressem tais desapropriações, absolutamente nenhum interesse mais delicado do capitalismo internacional seria aí violado, haja vista que tais empresas lidam com uma tecnologia e um conhecimento do século XIX: cimento, ferro e engenharia civil.
Entre um Governo visceralmente comprometido com a corrupção e os seus opositores que desde sempre também estiveram, não há disjuntiva política ou moralmente aceitável. Entretanto, não devemos temer os caminhos institucionais do Estado de Direito, mesmo que, mediante o aparecimento de provas sólidas, os cenários constitucionais de alternância que se apresentam como possibilidades sejam desalentadores – o impeachment no Congresso Nacional ou a impugnação da chapa no TSE, com a convocação de eleições gerais em 90 dias. Em meio aos pedregulhos da corrupção e às miragens do marketing, contemplamos a desertificação causada pela ruína de nosso espírito público. E é nesse panorama que se deve cuidar da terra onde podem germinar novos agentes, em um processo que exige alguma paciência e a firme disposição de recuperar o solo e as sementes para as gerações vindouras.
O reflorestamento da nossa cena pública não virá do inço ou do joio daninhos que competem pelo exaurimento de uma mesma terra. Tudo indica que também não virá de certos partidos satélites que se comportam como seitas de aluguel, afluindo à primeira convocação ecumênica do culto carismático lulopetista. Talvez essa seja a hora de arrefecermos as paixões, impugnarmos as urgências catastróficas, interditarmos o uso falacioso de conceitos e contemplarmos um pouco o nosso deserto. Precisamos exercer a memória e darmos ouvidos àqueles poucos homens que, em momentos de crises até mais agudas que essa, alcançaram a grandeza de um pensamento sobre as instituições a partir do verdadeiro documento que há de reger a moralidade pública: a Constituição.
A permanência prolongada do PT em diversos governos produziu uma casta burocrática de baixa especialização técnica e que adota um comportamento corporativo já capaz de rivalizar com as elites tradicionais em seus movimentos de autopreservação. Mas essa burocratização ideológica que infla o aparelho de Estado e o converte em máquina eleitoral há muito não se traduz em ganhos mais efetivos e melhorias da qualidade dos serviços para a população. Nesse quadro, a alta burguesia de São Paulo, representada pelo PSDB, passou a enfrentar a concorrência de um subproduto do sindicalismo de resultados com o qual conviveu prolongadamente: uma elite burocrático-partidária que descobriu o acesso a múltiplas fontes de recursos privados comuns (como os fundos de pensão) e públicos (Petrobras, BNDES) para manter com sucesso as suas estratégias eleitorais. E, no frigir dos ovos da serpente, a crise que se instaura pode ser assim resumida: o dinheiro desviado da Petrobras derrotou fragorosamente o da FIESP. E obviamente há inconformados nesse processo de concorrência desleal em uma disputa política comandada pelo dinheiro do marketing que tem como pior correlato seu uma cidadania desinformada e controlada pelo consumo.
Acerta quem diz que a corrupção no Brasil não começou com o PT. Como, da mesma forma, também acerta quem acrescenta a isso que pouco importa quem a tenha começado, pois, ao cabo, importante é mesmo quem se disponha a romper com ela de modo drástico e sem hesitações. Talvez a corrupção ibérica do Brasil Colônia tenha produzido, na pena do Padre Antônio Vieira, o mais elegante e virulento discurso contra a seletividade criminal, capaz de distinguir entre a rapinagem dos pequenos e dos graúdos: o Sermão do Bom Ladrão. Nele, Vieira já estabelecia essa disjuntiva: “O ladrão que furta para comer, não vai nem leva ao inferno: os que não só vão, mas levam, de que eu trato, são outros ladrões de maior calibre e de mais alta esfera.”. Com a ousadia e a coragem que a sua genialidade lhe facultava, Vieira proferiu suas palavras perante o próprio Dom João IV e sua corte formada por inúmeros funcionários de Estado, na Igreja da Misericórdia de Lisboa, em 1655. Tecendo um libelo contra os desmandos dos áulicos, Vieira chega à audácia de dizer que a própria palavra ladrão deriva exatamente daqueles que vivem ao redor do Príncipe: “Antigamente os que assistiam ao lado dos príncipes chamavam-se laterones. E depois, corrompendo-se este vocábulo, como afirma Marco Varro, chamaram-se latrones. E que seria se assim como se corrompeu o vocábulo, se corrompessem também os que o mesmo vocábulo significa? O que só digo e sei, por teologia certa, é que em qualquer parte do mundo se pode verificar o que Isaías diz dos príncipes de Jerusalém: Principes tui socii rurum: os teus príncipes são companheiros dos ladrões. E por que? São companheiros dos ladrões, porque os dissimulam; são companheiros dos ladrões, porque os consentem; são companheiros dos ladrões, porque lhes dão os postos e poderes; são companheiros dos ladrões, porque talvez os defendem; e são finalmente seus companheiros, porque os acompanham e hão de acompanhar ao inferno, onde os mesmos ladrões os levam consigo.”.
Em pouco tempo, a História baterá à porta daqueles que se reclamam de esquerda pedindo uma resposta franca à pergunta decisiva que Antônio Vieira formulara lá no século XVII: “Se nos vendemos tão baratos, porque nos avaliamos tão caros?”. A probidade é condição de possibilidade da política. E ter a consciência que aí se trata de uma condição necessária, mas jamais suficiente, torna-se indispensável para que a honestidade não se converta em plataforma de coisa alguma. Eis o lugar profundo onde radica a nossa estranha crise: em pleno século XXI, já na era do enfraquecimento do Estado e com uma cidadania de precária formação, ainda nos falta um acordo elementar sobre as condições éticas, materiais e institucionais da competição na Política. Entretanto, com todos os tropeços que uma luta fratricida entre elites antigas e recentes envolve, acho que temos boas razões para enxergarmos novas flores brotando em nosso deserto. Pela primeira vez – e apesar de alguns excessos reprováveis -, observamos os poderosos sendo efetivamente condenados e presos. E a estranha sensação de que pode não sobrar ninguém, se todos forem punidos, não deve nos angustiar, pois o sentido da crise também envolve um abrir-se ao desconhecido e um dispor-se a combates ainda piores. O certo é que ninguém enfrenta máfias potentes e hordas terríveis só com palavras firmes e admoestações. Nesse combate que envolve a mais legítima defesa dos interesses coletivos da sociedade, o Estado por vezes também necessita demonstrar a efetividade coativa de sua força física e simbólica, até mesmo para fins dissuasórios. Então, esses que forem chamados a responder à pergunta de Vieira perante o Tribunal da História, terão também de explicar por que, afinal, preferiram criticar a “seletividade” dos ricos em vez de reconhecerem a ruptura de uma prolongada “imunidade” sob a qual eles sempre viveram e proliferaram as suas riquezas amealhadas do bem comum. O resto todo é aquela parte de Vieira que hoje não mais se sustenta: esperar por Dom Sebastião.
Destaquei abaixo, no discurso de Ulysses Guimarães na promulgação da Constituição de 1988, as duas premissas fulcrais que falam diretamente ao coração e à mente dos que procuram algum lampejo de lucidez nessa noite dos desgraçados que se abate sobre Brasil: “não roubar, não deixar roubar, pôr na cadeia quem roube” e “a sociedade é maior que o Estado”. Que essas palavras do gigante gentil que era Ulysses nos tragam a força para começarmos um movimento que finalmente conduza à capacidade de rompermos com esses que aí estão. Mesmo que para tanto seja necessário abandonarmos nossos salvadores e enfrentamos um processo traumático de autocrítica, seguido de um reagrupamento em torno de princípios morais bem mais rígidos e de programas efetivamente muito mais concretos em sua radicalidade democrática.
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