Por Renan Porto, UniNômade, versão escrita da apresentação ao curso Multitudoceno, no Museu da República (Rio de Janeiro)
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[…]
Ah, poder exprimir-me todo como um motor se exprime!
Ser completo como uma máquina!
Poder ir na vida triunfante como um automóvel último-modelo!
Poder ao menos penetrar-me fisicamente de tudo isto,
Rasgar-me todo, abrir-me completamente, tornar-me passento
A todos os perfumes de óleos e calores e carvões
Desta flora estupenda, negra, artificial e insaciável!
[…]
Fernando Pessoa, Ode triunfal –Londres, 1914
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1. Ciborgues
O que torna este poema epigrafado interessante para começar a pensar sobre aceleracionismo é a simpatia que ele manifesta em relação ao maquinário posto em movimento pela modernidade. Parece haver nele uma excitação de como isso poderia nos levar à superação dos limites do corpo humano. Fazer coisas de formas cada vez mais rápidas e eficientes. Os textos sobre aceleracionismo, principalmente os de Nick Land, estão recheados de figuras como ciborgues (cyberneticorganism = cyb + org), robôs e monstros alienígenas. Personagens como O exterminador do futuro (James Cameron, 1985) ou os personagens do filme Blade runner, o caçador de andróides (Ridley Scott, 1982). Interessante lembrar aqui um texto-manifesto, bem anterior ao Manifesto Aceleracionista: o Manifesto Ciborgue (1984) da filósofa e bióloga irlandesa Donna Haraway. Nesse texto, ela observa que a figura do ciborgue não é algo que está num futuro distante. Nós já somos ciborgues; nós já fazemos grandes esforços para melhorar o rendimento do nosso corpo, a eficácia da nossa inteligência, para aumentarmos a concentração. Já dispomos de diferentes técnicas e suplementos a fim de superar os nossos próprios limites corporais e dar conta do ritmo cada vez mais acelerado de nossas rotinas nas cidades. Porém, nessa correria para atender às exigências que nos são impostas, temos a nossa subjetividade moldada de maneira heterônoma. Para o autonomista italiano Franco Berardi,
“aceleração é uma das características da subjugação capitalista. O inconsciente é submetido ao ritmo sempre crescente da infosfera, e essa forma de subsunção é dolorosa — ela gera pânico antes de finalmente destruir qualquer possibilidade de subjetivação autônoma. […] o processo de subjetivação autônoma é prejudicado pela aceleração caótica e a subjetividade social é capturada e subjugada pela governança capitalista, que é um sistema de mecanismos automáticos correndo numa velocidade estonteante.” (Berardi, 2013, tradução minha).
E não dar conta de tudo, não conseguir conjugar e relacionar tudo, estar sempre atrasado, pode até ser algum consolo. H. P. Lovecraft, um escritor sempre citado por Nick Land, diz algo num conto escrito em 1926 que parece tocar um pouco a sensação vertiginosa que temos do mundo atual:
“A coisa mais misericordiosa do mundo é, segundo penso, a incapacidade da mente humana em correlacionar tudo o que sabe. Vivemos em uma plácida ilha de ignorância em meio a mares negros de infinitude, e não fomos feitos para ir longe. As ciências, cada uma empenhando-se em seus próprios desígnios, até agora nos prejudicaram pouco; mas um dia a compreensão ampla de todo esse conhecimento dissociado revelará terríveis panoramas da realidade e do pavoroso lugar que nela ocupamos, de modo que ou enlouqueceremos com a revelação ou então fugiremos dessa luz fatal em direção à paz e ao sossego de uma nova idade das trevas.” (H. P. Lovecraft, O chamado de Cthulhu, 1926).
O Cyborg Manifesto também é interessante porque foi publicado num contexto em que já era bastante disseminada uma forte reação crítica à inteira História do progresso, da ciência, da razão, da tecnologia e do desenvolvimento. Podemos citar como exemplo o bem conhecido comentário de Walter Benjamin à obra Angelus Novus (1920), de Paul Klee, na nona tese sobre o conceito de história: o anjo de costas para o futuro e as ruínas do passado se acumulando umas sobre as outras aos seus pés. Esse amontoado de ruínas crescendo até o céu seria o progresso. Além de Benjamin, a crítica ao progresso técnico e científico era comum a outros pensadores da Escola de Frankfurt. Mas não só a eles: na França, um cristão anarquista, sociólogo da técnica, Jacques Ellul, desenvolveu longas pesquisas sobre o desenvolvimento e o caráter da técnica, como em seu livro A técnica e o desafio do século, publicado no Brasil em 1968 pela editora Paz e Terra. Nesse mesmo período, entre os anos 50 e 60, a antropologia americanista de Lévi-Strauss e Pierre Clastres, entre outros, influenciava fortemente a filosofia francesa, instigando um grande interesse pelas formas políticas, sociais e técnicas dos povos indígenas das Américas, e mobilizando fortes denúncias ao etnocentrismo europeu. Foi também o período das guerras anticoloniais em nações africanas e asiáticas, como na Argélia e no Vietnã. Ainda nesse período, começa a ganhar espaço a filosofia pós-colonialista e publicações de autores como Franz Fanon, Aimé Cesaire, Albert Memmi, que já circulavam na França. E realmente, todos os desastres nucleares, bélicos, ambientais, somados ao recrudescimento da neocolonização e novas formas de escravidão, além do aperfeiçoamento das tecnologias de controle e vigilância social, tornam ainda mais necessárias todas essas críticas. Porém, como vamos ver mais à frente, o neoliberalismo nascente foi tomando à frente nos discursos de modernização e de domínio das ciências e tecnologias.
Foi nesse contexto que Haraway assumia uma posição diferente e afirmava a sua simpatia pelos ciborgues. Sua posição ao explorar as possibilidades de resistência e criação através da ciência e da tecnologia guardava alguma proximidade com outro livro que também não temia sair na chuva para se expor aos devires maquínicos do corpo humano e da natureza: O Anti-Édipo (1972), de Gilles Deleuze e Félix Guattari. O livro teve uma influência seminal no aceleracionismo com a proposta, contida no final do capítulo 3 que se refere às máquinas sociais, de ir mais fundo nas linhas de desterritorialização do capitalismo, pois “na verdade, a esse respeito, nós ainda não vimos nada” (p. 318). Em vez de querer frear todo o processo, puxar o freio de emergência e parar esse trem descarrilado que não se sabe exatamente aonde vai dar, em seu livro-conceito do começo dos anos 70, Deleuze e Guattari propõem uma navegação filosófica num mar em fúria. Os autores perceberam um mundo feito de ligações, cortes e fluxos em que a natureza também operava as suas próprias tecnologias. Haraway, numa toada similar, propunha criar alianças com as máquinas, mas não só com elas, também com os animais e as plantas, em entrecruzamento. Ela percebeu que a natureza já não podia mais ser ontologicamente neutralizada como algo inocente e passivo, hilermórfico, ainda mais quando já estava atravessada intensamente pela biologia molecular, manipulações genéticas, implantes de próteses, combinações de corpos com tecnologias (ver, por exemplo, The allure of machinic life, de John Johnston, 2008, e Dividuum, machinic capitalism and molecular revolution, de Gerald Raunig, 2016).
A partir dessa relação hibrizante entre animais, plantas e máquinas, Haraway enxergou a possibilidade de superar a própria condição humana e assim lidar com a criação de outros seres, de outros agenciamentos entre corpos, técnicas e enunciados. Pois, segundo a autora, quando nos colocamos em relação com circuitos heterogêneos, ampliamos as nossas possibilidades de conhecimento e ação. Imagine-se como um fluxo circulando num determinado circuito com as suas aberturas e limites, passagens subterrâneas e translações. Enquanto a corrente ficar circunscrita às mesmas vias, com as mesmas ligações supostamente “naturais”, a tendência é sempre repetir uma rotina, num automatismo recorrente. Mas quando há um desarranjo, uma anomalia, quando salta uma conexão inesperada, digo, quando se entra em relação com o heterogêneo e díspar, quando aí se estabelece uma aliança antinatural, com outros circuitos imprevistos, abrem-se outros caminhos, constroem-se hábitos aberrantes e o futuro se abre à invenção. É como estar abrindo uma trilha na mata e encontrar uma estrada que pode levá-lo até certo ponto, em que você terá que continuar abrindo novas trilhas e fazendo mais conexões anômalas que, por sua vez, levarão você a descobrir cachoeiras, outras cidades, outros mundos enxertados secretamente neste. Tal jornada de hibridação traz os seus riscos e sugere precauções, pois essa mesma experimentação, em toda a sua contingência, pode lançar-nos num loop infernal, numa vitrificação da subjetividade. É como se ao vagarmos para além dos muros do conhecido, estivéssemos nos equilibrando na borda de precipícios e ninhos de cascavel. O próximo passo sempre pode ser num formigueiro, num buraco, num vácuo.
2. Realismo capitalista
Publicações como o Manifesto Ciborgue e O Anti-Édipo foram textos que não temeram as mudanças radicais da tecnologia nem o futurismo que nelas se insinuava. Isto é o que o aceleracionismo está provocando: não ter medo das tendências ínsitas ao movimento de aceleração, mas em contrapartida buscar construí-lo ao ativar devires e movimentos aberrantes, para além da tentativa de ordenar um progresso ou estatizar uma História das técnicas e progressos. Há toda uma tradição de blockbusters apocalípticos, baseada em Hollywood, que nos repõe uma imagem do futuro catastrófica e distópica. Com isso, a nossa imaginação sobre o futuro tende a ser carregada de melancolia, ou seja, um futuro que repete o passado, ou então de uma carga paranoica, já que a chegada do Anticristo (kathecon) nos empurra aos salvadores do planeta e da humanidade. Alguns autores do aceleracionismo, como Nick Srnicek e Alex Williams, no livro Inventing the future (2015), nos sugerem imaginar diferentes futuros, a vislumbrar futuros melhores, modernidades outras, que sejam mais simpáticas à figura humana e que propiciem a reconstrução de um projeto contra-hegemônico de resistência ao capitalismo. Esse livro participa da última dentição do alto modernismo e traz em seu bojo o otimismo com a potencialidade de um progressismo esclarecedor e teleológico.
Embora outros aceleracionistas, como o próprio Land, nos apresentem imagens de um futuro nada amistoso ao elemento humano, pois recusam a linearidade que justapõe passado e futuro históricos (estaríamos “avançando” ou “progredindo” na direção do futuro), para levar a sério a atmosfera desolada da literatura pós-apocalíptica (como em J.G. Ballard, Kurt Vonnegut ou John Brunner). Desse jeito, não há mais um fim do mundo a acontecer que nos demande a urgência de uma política anti-kathecon: o fim já aconteceu, o próprio futuro pereceu, estamos na era “depois do futuro” (para Franco Berardi, o futuro acabou em 1977, conforme After the future, 2011), de maneira que se impõe a pergunta que está no título de um recente livro de tom pós-apocalíptico por Eduardo Viveiros de Castro: depois do fim do fim, há mundos por vir? (2014). Partindo para um viés mais histórico-político, digo, pensando sobre personagens conceituais que compõem a nossa selva de conjunturas, existe uma interessante crítica dentro do panorama contemporâneo de autores aceleracionistas com relação ao conservadorismo da esquerda. Isso aparece tanto no citado livro de Srnicek e Williams quanto em textos de Nick Land, figuras de proa de tendências internas ao aceleracionismo. Em um dos textos mais conhecidos do Land, Meltdown, de 1994, ele diz:
“A Superioridade do Marxismo do Extremo Oriente. Enquanto que a dialética materialista chinesa se desnegativiza na direção da esquizofrenizante dinâmica de sistemas, progressivamente dissipando a destinação histórica hierárquica em Zonas Econômicas Especiais encharcadas de Tao, um ‘marxismo ocidental’ re-hegelianizado se degenera, de crítica da economia política a uma monoteologia estado-simpatizante da economia, tomando o lado do fascismo contra a desregulamentação. A esquerda se reduz a um conservadorismo nacionalista, asfixiando sua capacidade vestigial de mutação especulativa ‘quente’ em um atoleiro de cultura de culpa depressiva e ‘fria’. (LAND, 2011, p. 447-448)” [1]
No livro Inventing the future, a seu passo, Srnicek e Williams falam sobre como a esquerda sempre foi fundamentalmente orientada ao futuro, desde as primeiras visões comunistas do progresso tecnológico até as utopias espaciais da União Soviética, enquanto a direita era majoritariamente defensora da tradição e reacionária. Eles argumentam que “esta situação foi revertida durante o surgimento do neoliberalismo, com políticos como Margaret Thatcher comandando a retórica de modernização e futuro, com grande efeito. Cooptando esses termos e mobilizando-os num novo sentido comum hegemônico, a visão de modernidade do neoliberalismo dominou desde então.“ (p. 72, tradução minha). A esquerda passa desse momento em diante a sustentar uma posição ambígua, com a presença renitente de um polo conservador, assumindo sistematicamente um diagnóstico de negatividade e reatividade, um entrincheiramento que é justificado no plano da retórica como defesa para conservar conquistas em termos de garantias de direito e posições no interior dos aparelhos governamentais e sindicais. O problema chega a ser pior mesmo se pensarmos que muitas vezes a esquerda deixa até mesmo de resistir ante as ações desastrosas de governos ditos de esquerda, segundo uma dialética do “menos pior” que brande a imagem terrível do Anticristo futuro para justificar o Mal presente, uma versão secularizada da velha teodiceia católica. Ou, muitas vezes, a resistência é organizada ao redor da ideia de manter formalmente garantidos os direito que esses mesmos governos violam materialmente.
Considerando o contexto de total falência de alternativas políticas no campo institucional, é interessante abordar aqui o conceito de realismo capitalista elaborado pelo crítico cultural Mark Fisher, um dos articuladores do Cybernetic Culture Research Unit (CCRU), junto com Nick Land e Sadie Plant. O CCRU foi um grupo de pesquisa que funcionou na segunda metade dos anos 90 e lançou as bases teóricas para o que futuramente veio a ser chamado aceleracionismo. O termo se consolidou enquanto guarda-chuva teórico e político curiosamente dentro da crítica anti-aceleracionista articulada em Malign velocities: accelerationism and capitalism (2014), por Benjamin Noys, que é um dos marcos teóricos de todo esse debate. Já Fisher tem um livro de ensaios chamado Capitalist realism (2009), em cujo primeiro capítulo ele organiza a discussão ao redor da ideia de pós-modernidade do teórico cultural Frederic Jameson. Para Jameson, a pós-modernidade é o modo cultural do capitalismo tardio, a ideologia do “pós”, ou seja, não é uma opção consciente e estratégica, mas algo que envolve a todos como um envoltório simbólico de articulação do sentido e uma atmosfera existencial. Nesse quadro de referências, Fisher propõe então o termo realismo capitalista como mais adequado para caracterizar a contemporaneidade, apresentando três razões. Primeiro, Fisher diz que, nos anos 80, quando Jameson desenvolveu a sua tese sobre o pós-modernismo, ainda havia alternativas reais ao capitalismo, como o “socialismo real” do bloco soviético capitaneado pela URSS.
Depois dos anos 80, a doutrina TINA (There is no alternative) do governo Thatcher se tornou uma profecia realizada. Segundo ela, o capitalismo já conseguiu absorver e mercantilizar integralmente todas as vertentes do modernismo, fundindo modernidade e capitalismo. O modernismo, na época de Jameson, ainda poderia ter um potencial subversivo, mas essa janela se fechou. Por exemplo, o uso de técnicas surrealistas na publicidade, ou então as estratégias de provocar situações (happenings) ou desvios maliciosos (détournement), todas hoje já absorvidas como métodos de marketing. Em terceiro lugar, desde o colapso do Muro de Berlim já se passou uma geração inteira. O capitalismo já colonizou os nossos sonhos e expectativas de vida de tal forma que muitas vezes um sistema alternativo sequer é uma questão suscitável para a maioria. Nos anos 60 e 70, o capitalismo ainda tinha de lidar com o problema de conter e absorver forças externas. Conforme o conceito de acumulação primitiva da teoria marxista, o capitalismo precisa sempre de um “fora” do qual se apropriar, ainda que esse “fora” seja interno à própria sociedade, como uma nova fronteira ainda não capturada pelos mecanismos de mercantilização. Mas as finanças hoje têm conseguido abarcar até mesmo o futuro, a expectativa, a virtualidade. Fisher diz que
“O que estamos lidando agora não é com a incorporação de materiais que, antigamente, seriam dotados de potencial subversivo, mas sim com sua pré-encarnação [precorporation]: a formatação e a formalização prévia dos desejos, aspirações e esperanças pela cultura capitalista. Dão testemunho disso o estabelecimento acomodado de zonas culturais ‘alternativas’ ou ‘independentes’ que repetem infinitamente gestos de rebelião e contestação como se fosse pela primeira vez. ‘Alternativo’ e ‘independente’ não designam nada fora do mainstream; pelo contrário, são, na verdade, os estilos dominantes no interior do mainstream (Fisher, 2009, p. 9).”
Fisher foi perspicaz em observar como o sistema capitalista aprende a incorporar as próprias formas de contestação contra si. E isso nos coloca diante de um horizonte em que os possíveis postos pelo sistema já são dados para reproduzir o seu funcionamento, tornando ilusórios atos e discursos que, no passado, eram resistências. Tudo parece ganhar um caráter tedioso e desacreditado. Parece que, como diz François Zourabichvilli, num texto sobre a lógica dos possíveis na política,
“A época moderna se caracteriza, indubitavelmente, por um déficit de vontade, por uma certa ‘má vontade’, embora o mal de que sofra seja de uma outra natureza. Não acreditando mais no possível, perdemos o gosto e a vontade de realizá-lo: eis nosso cansaço e nosso tédio. Mas se perdemos a fé, é porque nossos esquemas sensório-motores nos aparecem, agora, como são – como clichês. Tudo o que vemos, dizemos, vivemos, e até mesmo imaginamos e sentimos já está, definitivamente, reconhecido; carrega, por antecipação, a marca da recognição, a forma do já visto e do já ouvido. Uma distância irônica nos separa de nós mesmos, e não mais acreditamos no que nos acontece, porque nada parece poder acontecer: tudo tem, de saída, a forma do que já estava presente, do que já está totalmente feito, do preexistente” (Zourabichvilli, p. 349, 2000).
3. Axiomática
No livro Mil platôs (1980), mais precisamente em seu platô 13 – Aparelho de captura, Deleuze e Guattari dizem que “a economia forma com efeito uma axiomática mundial, uma ‘energia cosmopolita universal que reverte toda barreira e todo laço’, uma substância móvel e convertível ‘tal como o valor total do produto anual” (p. 152). E a questão não é que não existam modelos que não sejam capitalistas, mas sim que mesmo os países socialistas estariam envolvidos por essa axiomática que é o mercado capitalista mundial. A axiomática é o que impede que os fluxos descodificados [2] fujam por todos os lados, que a moeda escape das malhas de controle do sistema financeiro globalizado. O que o capitalismo descodifica com uma das mãos, axiomatiza [3] com a outra, num vaivém instável e perigoso para a sua própria sobrevivência, pois lhe ronda a ameaça permanente de uma fuga sem volta, de um avanço do processo para além de um limite absoluto (segundo os autores, a “esquizofrenia” enquanto processo social da subjetividade) que o processo do capital possa manejar. Land foi um autor que, na esteira deleuzo-guattariana, compreendeu bem essa plasticidade do capital e a assimilou em sua obra. Num texto intitulado Re-aceleracionismo [4] (2016), ao comentar o “fragmento aceleracionista” do Anti-Édipo [5], ele diz o seguinte:
“O capitalismo não nasceu de uma negação, tampouco iria ele perecer de uma. A morte do capitalismo não poderia ser entregue pelo machado do carrasco de um proletariado vingativo, porque as aproximações realizáveis mais próximas do ‘negativo’ eram inibitórias e estabilizantes. Longe de propelir ‘o sistema’ a seu fim, elas reduziam a dinâmica a um simulacro de sistematicidade, retardando sua aproximação de um limite absoluto. Ao progressivamente comatizar o capitalismo, o anti-capitalismo o arrastava de volta a uma estrutura de auto-conservação, suprimindo sua implicação escatológica. O único caminho para Fora era adiante.”
Land propõe então que o capitalismo não esteja estruturado segundo um modelo dialético – ou seja, que seja posto em marcha pelas contradições, em constante espiral hegeliana de sínteses e antíteses – mas cibernético, funcionando a partir de um sistema de feedbacks positivos, de recursividades que formam circuitos internos e externos, num acoplamento positivo de industrialização (“desterritorialização”) e comercialização (“descodificação”). Com isso, o capital vai se automatizando para prever e responder cada vez mais rápido às demandas dos seus múltiplos sistemas tecnocomerciais, em contínua retroalimentação de informações. Num outro texto de 1993, intitulado Desejo maquínico, Land diz que
“o que aparece para a humanidade como a história do capitalismo é uma invasão, vinda do futuro, de um espaço inteligente artificial que tem que se montar inteiramente a partir dos recursos de seu inimigo. A digitomercantilização é o índice de um tecnovírus escalando ciberpositivamente: um traumatismo insidioso auto-organizante, que guia virtualmente todo o complexo-desejante biológico em direção à usurpação replicadora pós-carbono.” (LAND, 2011, p. 338).
Srnicek e Williams, no Manifesto Aceleracionista [6], dizem que Land captou a capacidade do capitalismo de liberar as forças de destruição criativa e inovação tecnológica em contínua aceleração, mas pontuam a seguinte crítica:
“O filósofo Nick Land captou isso de forma mais certeira, com uma crença míope, porém hipnótica, de que a velocidade capitalista por si só poderia gerar uma transição global em direção a uma singularidade tecnológica sem paralelos. Nessa visão do capital, o humano pode eventualmente ser descartado como mero obstáculo a uma abstrata inteligência planetária, que se constrói rapidamente a partir da bricolagem de fragmentos das civilizações passadas. Contudo, o neoliberalismo de Land confunde velocidade com aceleração. Podemos estar nos movendo rapidamente somente dentro de um enquadramento estritamente definido de parâmetros capitalistas que jamais oscilam. Experimentamos apenas a crescente velocidade de um horizonte local, uma simples arremetida descerebrada; ao invés de uma aceleração que também seja navegável, um processo experimental de descoberta dentro de um espaço universal de possibilidades. É este último modo de aceleração que tomamos por essencial (Srnicek; Williams, 2013).”
Importante observar na leitura do terceiro capítulo do Anti-Édipo, que Deleuze e Guattari descrevem como a máquina capitalista civilizada funciona mediante a descodificação generalizada de fluxos de dinheiro, trabalho, tecnologias, informação; e como o capitalismo surge numa contingência do momento histórico em que esses vários fluxos descodificados, de diferentes naturezas e procedências, se conjugam e passam a escoar uns sobre os outros, provocando um imenso jato desterritorializado, que o capital a seguir organiza em sua axiomática. Em Mil platôs, publicado oito anos depois, Deleuze e Guattari parecem ter logo percebido que a libertação desenfreada de fluxos do capitalismo coexistiria com todo o familismo edipiano contra o que a esquizoanálise opera, e o fascismo emergiria justamente da ressonância entre os buracos negros da subjetividade e a dinâmica capilar e molecular do capitalismo, tese que podemos ler no Platô 9: Micropolítica e segmentaridade. Nesse capítulo de Mil platôs, os autores afirmam que“o fascismo é inseparável de focos moleculares, que pululam e saltam de um ponto a outro, em interação, antes de ressoarem todos juntos no Estado (p. 92)”. Ou seja, o próprio Estado se constitui a partir da vibração de focos heterogêneos, de microfascismos disseminados pelo tecido social (fascismo de escola, de família, de polícia, de casamento etc) e que não se comunicam através de um centro de emanação ou núcleo ideológico ou político, mas transversalmente, de ponto a ponto, como uma onda que se propaga por diferentes meios. O Estado é uma questão de ondulatória e o fascismo tem mais a ver com uma difusão viral e indireta – daí a preponderância de um regime de expansão molecular ou micropolítico (o fascismo é essencialmente molecular) – do que um organismo totalitário estruturado por instituições de vigilância e punição – onde predomina o regime disciplinar e macropolítico, tal como no estalinismo (essencialmente molar).
No capitalismo – segundo a reescrita que o capítulo 3 do Anti-Édipo faz da história das formas pré-capitalistas primeiro apresentada por Marx nos Grundrisse – a forma de controle dos fluxos não se dá mais através da codificação segundo rituais, tradições e procedimentos disciplinares, isto é, do que os autores chamam de “sobrecodificação” por um Estado despótico, como ocorre nas máquinas bárbaras/estatistas que são regidas pelo princípio da soberania, e que remetem os fluxos a uma unidade transcendente. Com o surgimento do capitalismo, daí por diante, o processo opera por descodificação generalizada, pela sucessão de “liberações” em relação às formas codificadas: a moeda se liberta do soberano, as terras são libertadas dos senhores feudais e entram no mundo do comércio, os servos e escravos tornados trabalhadores “livres”, e os próprios produtos do trabalho são mercantilizados dentro de um circuito cada vez mais integrado e globalizado de comensurabilidade. Todo o globo é investido em extensão e profundidade no interior do processo do capital. A descodificação geral dos fluxos não levará por si só à destruição das formas de controle pregressas, pelo contrário, o fluxo “livre” (free) de trabalho e moeda é uma de suas condições de existência do capital ao mesmo tempo que o limite com o qual o processo geral deve a todo momento lidar, sob risco do colapso. O controle dos fluxos se dará, por conseguinte, não pela codificação como nas sociedades pré-capitalistas, mas pela axiomática do mercado mundial capitalista, um modelo imanente que submete os próprios soberanos e Estados a sua lógica pervasiva, para colocar diferentes regimes produtivos em conjunção generalizada, além de fronteiras, muros e identidades [7].
“A verdadeira polícia do capitalismo é a moeda e o mercado” (2010, p. 317). Neste movimento, o capitalismo vai tendendo sempre ao seu limite, porém, nesse mesmo movimento, termina por deslocar o limite, alargando-o e proliferando-o numa escala cada vez mais ampliada, diversificada e englobante, gerando o que os autores identificam como uma tendência esquizofrenizante (tudo flui sobre tudo, uma metonímia louca). Porém, o Estado não perde a sua função aqui. Em Mil Platôs, Deleuze e Guattari dizem que “com o capitalismo, portanto, os Estados não se anulam, mas mudam de forma e assumem um novo tipo sentido: modelos de realização de uma axiomática mundial que os ultrapassa. Mas ultrapassar não é de modo algum passar sem…” (p. 153).
O Estado manteria assim, para Deleuze e Guattari em 1980, a função de operar as reterritorializações compensatórias às tendências desterritorializantes do capitalismo, introduzindo sempre novos axiomas de maneira a assegurar que o limite absoluto do capital não seja ultrapassado e que todo o sistema não venha abaixo. O New Deal norte-americano, por exemplo, é interpretado por Deleuze e Guattari como a introdução de um conjunto de novos axiomas necessários para lidar com as ameaças colocadas pelos devires revolucionários da Revolução de 1917. A multiplicação de fugas – e não o trabalho das contradições – é que levou o sistema capitalista internacional do começo do século 20 à crise do crack da Bolsa de Nova Iorque de 1929, que por sua vez foi respondida pelo processo do capital com a axiomatização da própria subjetividade antagonista da classe trabalhadora na forma do welfare state e da sindicalização geral da força de trabalho.
Land encontra nos contos de H. P. Lovecraft um personagem que parece demonstrar muito bem essa monstruosidade flexível, plástica e dúctil do capitalismo. Os shoggoths [8] são monstros criados pelos “grandes ancestrais”, capazes de moldar seus próprios tecidos protoplasmáticos em diferentes órgãos temporários, se atualizando constantemente, eliminando órgãos e assumindo outros. “O que eles são é o que eles fazem, ou – por um tempo – o que é feito através deles”. Para Land, no vocabulário da ciência humana não teríamos nenhum problema em descrevê-los como aparato produtivo, isto é, como capital. Land cita Lovecraft:
“Eles sempre haviam sido controlados através das sugestões hipnóticas dos Antigos e haviam modelado sua dura plasticidade em vários membros e órgãos temporários úteis, mas agora seus poderes de auto-modelagem às vezes eram exercidos de maneira independente e de várias formas imitativas, implantadas por sugestão passada. Eles tinham, parece, desenvolvido um cérebro semi-estável, cuja volição separada e ocasionalmente teimosa ecoava a vontade dos Antigos, sem sempre obedecê-la.” (Lovecraft apud Land, 2017).
4. Inventar o futuro
A partir da teorização do realismo capitalista, Nick Srnicek e Alex Williams nos propõem a navegar nesse vórtex capitalista que arrasta tudo ao seu redor na vaga da abstração desterritorializante, a fim de inverter as suas tendências hegemônicas, sem, no entanto, abandonar os seus fluxos ou sonhar com um “fora” mistificado, pois é aí, no turbilhão do movimento onde precisamente se situam as potências e os movimentos que poderiam ser reorientados. Eles não defendem uma antimodernidade, mas uma outra, uma alter-modernidade. O caso então deve ser apropriar-se das tecnologias sociais que o capitalismo produziu e criar novas, reusá-las para produzir condições de maior simetria nas relações de poder. O livro Inventing the future parte de uma crítica ao último ciclo de lutas globais, marcado pelas revoluções árabes, as acampadas do 15-M e o Occupy. Os autores criticam a tendência interna a esse ciclo marcada pelos princípios de horizontalismo, localismo, ação direta, apontando a limitação dessas exigências formais diante de um sistema cada vez mais onipresente e tecnológico. Srnicek e Williams adotam o termo folk politics (uma possível tradução seria: política provinciana) para designar essa tendência, uma expressão carregada e até pejorativa. A seguir, o livro descreve como o pensamento neoliberal foi se engendrando aos poucos, desde as formulações de von Hayek e da Escola Austríaca, até Friedman e os Chicago Boys, décadas antes da sua definitiva instauração na década de 1970 como resposta político-econômica diante das revoluções do ciclo sessentoitista. Quando ideias que não pareciam possíveis se tornaram inevitáveis, criando o seu próprio possível, construindo a memória e as referências para o que viria a orientar de maneira avassaladora, num grande vagalhão que varreu as velhas esquerdas e o estado fordista-keynesiano de bem estar social (o welfare state), os discursos e práticas políticas posteriores. Os autores querem nos mostrar a força que pequenos grupos podem ter em disseminar novas ideias. Srnicek e Williams nos propõem então que construamos imagens mais interessantes de futuro, que não hesitemos em disputar programaticamente os ideários e mitologias. Para isso, eles usam um termo cunhado nos ambientes aceleracionistas: hyperstition. Um neologismo entre hyper e superstition. Um tipo de ficção que objetiva a sua própria realização, uma espécie de mitologia deliberada que é precondição para o concreto. “Hyperstitions operam por catalisar sentimentos dispersos em uma força histórica que traz o futuro à existência” (Srnicek; Williams, 2016, p. 75, tradução minha). Podemos também entender isso como um agenciamento coletivo de enunciação que transforma a nossa percepção sobre o futuro, desloca os nossos horizontes de expectativas, os nossos recortes de interesses, de modo que essa transformação de sentido muda totalmente a nossa relação com o presente, mas também confere outros sentidos ao passado, isto é, nos lança em pontos ainda não explorados da memória viva.
Em suma, em Inventig the future propõem-nos que recuperemos as potências da modernidade, que não a deixemos mais para os adversários políticos, argumentando que a modernidade não tem um sentido único e determinado. Junto com autores do pensamento pós-colonial e diaspórico, como Dipesh Chakrabarty ou Paul Gilroy, Srnicek e Williams nos mostram que não há só uma única razão ocidental, como se fosse uma totalidade universal, e que há diferentes processos de modernização alternativa, diferentes racionalidades inclusive dentro do que se convencionou chamar de modernidade ocidental. Eles nos propõem também que resgatemos um discurso pautado pela universalidade, pensando o universalismo como espaço sempre incompleto e em disputa, nunca absoluto, ou seja, como universalidade concreta em processo, um work in progress. “Nunca pode haver um universalismo completamente alcançado, e universais são, portanto, sempre abertos para contestação de outros universais” (Ibidem, p. 77).
Em Inventing the future, após abordar os problemas de excedente populacional, desemprego crescente, precarização, favelização de grandes centros urbanos, marginalização estrutural, encarceramento em massa, fenômenos sociais produzidos pelos novos modos de exploração – problemas em que negros e mulheres são os mais atingidos (os autores atentam aos problemas de exclusão por identidade) – são apontadas as seguintes tendências do capitalismo atual onde o prognóstico nada tem de otimista:
a) A precariedade da classe trabalhadora das economias desenvolvidas irá se intensificar devido à oferta do excedente de mão-de-obra global (resultando tanto da globalização quanto da automação);
b) Recuperações sem emprego [9] continuarão a aprofundar e aumentar, afetando predominantemente aqueles cujas funções podem ser automatizadas de imediato;
c) Populações de favelas continuarão a crescer devido à automação de trabalhos que exigem baixa qualificação, e serão exacerbadas pela desindustrialização prematura;
d) Marginalidade urbana em economias desenvolvidas crescerá em tamanho enquanto empregos de baixa qualificação e baixos salários serão automatizados;
e) A transformação da educação superior em treinamento profissional será antecipada em uma tentativa desesperada para aumentar a oferta de trabalhadores qualificados;
f) Crescimento permanecerá baixo e tornará improvável empregos de substituição;
g) As mudanças para o “workfare”, controles de imigração e encarceramento em massa irão aprofundar enquanto aqueles sem emprego são cada vez mais subjugados ao controle coercivo e à economias de subsistência (Ibidem, p. 104, tradução minha).
Diante desse contexto, os autores apresentam quatro demandas mínimas para enfrentar os problemas: automação total, a redução da semana de trabalho, a provisão de uma renda básica universal e a redução da ética do trabalho. Essas seriam políticas que, segundo os autores, criariam mais condições de enfrentamento ao capitalismo, catalisando um contexto potencialmente pós-capitalista, diminuindo as assimetrias de poder e deflagrando melhores condições para o exercício da liberdade, como a possibilidade de não ser constrangido a empregos indignos ou trabalhos subordinados apenas para ter que sobreviver. Já que o capitalismo é cada vez mais acelerado e nosso tempo integrado intensivamente no ciclo 24/7 de seus giros maquínicos, uma das condições para a organização coletiva e a luta política seria liberar mais tempo desde dentro desse ciclo, digo, libertar a subjetividade da permanente modulação pelos dispositivos disseminados de controle. Sendo que para ter mais tempo também precisamos de dinheiro, valendo, aliás, a sinonímia que, nas atuais condições, reconquistar o tempo é reconquistar a renda, para alcançar um maior potencial interno de fabricar subjetividade para além do Controle. A luta pela renda universal é assim a luta pela retomada do tempo subsumido na axiomática capitalista: são dois polos – renda e tempo – da mesma luta que se dá no regime intensivo da produção de subjetivo. Disso, a importância de conjugar as outras demandas com a renda básica universal, pois ela é um intensificador para as demais lutas, a condição mesma de uma redobra do tempo do capital.
Por fim, em chave tecnofílica, reeditando a promessa marxista de substituir o trabalho humano pelas máquinas (os androides benignos), os autores argumentam que uma sociedade sem trabalho, que não tenha mais o trabalho como vetor de organização social e ética, é não só possível num mundo de automação universal, mas também desejável.
5. Máquinas de guerra
Porém, o livro de Srnicek e Williams acaba reproduzindo velhas ideias de organização política da esquerda que já estamos cansados de ver falhar. Ideias tais como de populismo, ainda que 2.0, de contra-hegemonia como esfera política de colocação do antagonismo global, de movimentos de massa e de pontos estratégicos (os elos mais fracos da cadeia) para ser atacados nos meios de produção.
Precisamos perceber que as sociedades contemporâneas, que são sociedades de controle, não se organizam mais em torno de conflitos centrais que possam continuar produzindo dualismos como Público e Privado, Estado e Mercado. As sociedades de controle se organizam por microconflitualidades e pela porosidade e flexibilidade cada vez maiores entre diferentes segmentos sociais, numa trama de relações de poder – a partir do que, num segundo e derivado momento, algo como um Estado ou um Mercado pode existir. Havendo cada vez mais trocas de fluxos de informações entre diferentes sistemas, um funcionamento permanente por meio de relés, vaivéns, sobreposições, recursividades, ressonâncias, dissonâncias, enfim, um campo perpétuo de interação que esburaca qualquer tentativa de disciplinar muros entre saberes e poderes. As polarizações são mais situacionais e contextuais e operam na forma de polaridades, em meio a campos magnéticos, com seus gradientes e trânsitos de potencial. Não só o Estado é o lugar por excelência da articulação dos interesses privados, como o Mercado é o que anima o funcionamento da esfera pública, assim como o Indivíduo autoempresarializado (o indivíduo-empresa) é condição das totalizações sociais e a Totalidade Social um indivíduo coletivo cuja vontade se explica pela psicologia (as “depressões” da economia, as “euforias” dos mercados).
Em A sociedade mundial de controle (2000), Michael Hardt descreveu como a corrupção é característica das atuais sociedades de controle. Para Hardt, diferente das sociedades modernas, as sociedades de controle não se organizam em torno de um conflito central, mas de uma rede flexível de microconflitualidades em que as contradições são múltiplas e proliferam por todos os lados, os espaços são impuros e híbridos, e a corrupção é uma “oni-crise”. As formas de controle no capitalismo não só continuam funcionando com a corrupção, como só funcionam se esfacelando e se reconfigurando continuamente, segundo um modelo de feedback positivo. O capitalismo aprendeu com as máquinas sociais e, assim como elas, está constantemente aprendendo com as suas próprias falhas, “se alimentando das contradições que provoca, das crises que suscita, das angústias que engendra e das operações infernais que o revigoram.” (O Anti-Édipo, p. 202). Não há propriamente crise da economia ou crise da política, a crise é o próprio modo normal, a normalidade normativa que regula o funcionamento da economia e da política, ou seja, uma economia de crise, uma corrupção enquanto política.
Quando se fala em capitalismo, se está falando imediatamente do Estado moderno. Ambos foram gestados juntos entre os séculos XVI e XVIII. Um não existe sem o outro. O Estado sempre teve um papel central como regulador no capitalismo, ainda que se apresentasse em diferentes regimes de funcionamento: poder disciplinar ou controlato, modo fordista de regulação ou pós-fordista, Estado-Plano do keynesianismo de tipo New Deal ou Estado-Crise do neoliberalismo. E estamos falando aqui do Estado-nação moderno, fundado sobre abstrações como soberania, povo, território, contrato social. O mesmo que está presente na expressão de direito constitucional: “estado democrático de direito”. Portanto, a vulgata que coloca de um lado Esquerda/Estado/igualdade/coletivo e de outro lado Direita/mercado/liberdade/indivíduo nunca existiu de fato, essa esquematização não passa de um resíduo de linguagem em meio a uma maquinaria material muito mais interpenetrada e esquizofrênica. O Estado não foi capaz de gerar igualdade e o Mercado não gerou mais liberdade, simplesmente porque se engendraram e funcionam para fabricar outros artefatos.
Para concluir com uma consideração lateral e intempestiva, uma concepção que tenho pensado sobre direita e esquerda é a da esquerda como aquela que introduz contingência, que suscita turbulência, na contínua pesquisa e reforço das múltiplas linhas de fuga em relação aos dispositivos de controle. A palavra “turbulência” tem em seu radical turbo, que não se confunde com turba como déficit de desorganização, caos como ausência ou desordem como negatividade, e que remonta à filosofia de Lucrécio [10] em buscar uma lógica política e uma ética dentro da própria turbulência, do tumulto, da multidão. Através da vida da turbulência, prolongar desterritorializações, êxodos, fazer fugir a política e a economia, fazer fugir a crise. Digo, a abertura de um tempo para uma nova forma de reorganizar o caos.
Basicamente, me apoio no conceito de máquina de guerra que Deleuze e Guattari elaboram no platô 12 – Tratado de nomadologia: a máquina de guerra. O dispositivo ao mesmo tempo afirmativo e de contrapoder capaz de traçar fugas absolutas e mudar os nossos problemas. Sem dúvida, um nicho de perigos. O risco é a moeda de negociação com o futuro.
Renan Porto é ensaísta e poeta.
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NOTAS
[1] Todas as traduções de Land aqui referenciadas foram feitas por Uriel Alexis Farizeli Fiori, que tem feito um trabalho de tradução do Fanged noumena (reunião de artigos do Land de 1987 a 2007) e dos blogues de Nick Land, Urban future e Xenosystems. Cabe lembrar que boa parte da produção intelectual do Land se dá nesses espaços online. O aceleracionismo é uma discussão que tem se desenvolvido por blogues, hangouts, grupos em redes sociais, assumindo uma posição marginal à academia, quando não hostil a ela.
[2] “Lembremos que ‘descodificação’ não significa o estado de um fluxo cujo código seria compreendido (decifrado, traduzível, assimilável) mas, ao contrário, num sentido mais radical, o estado de um fluxo que não é mais compreendido dentro de seu próprio código, que escapa a seu próprio código” (p. 145).
[3] No Anti-Édipo, Deleuze e Guattari escrevem que “a verdadeira axiomática é a da própria máquina social, que substitui as antigas codificações, e que organiza todos os fluxos descodificados, inclusive os fluxos de código científico e técnico, em proveito do sistema capitalista e a serviço dos seus fins” (p. 310).
[4] https://xenosistemas.wordpress.com/2016/09/23/re-aceleracionismo/
[5] “Mas haverá alguma via revolucionária? – Retirar-se do mercado mundial, como Samir Amin aconselha aos países do Terceiro Mundo, numa curiosa renovação da “solução econômica” fascista? Ou ir no sentido contrário, isto é, ir ainda mais longe no movimento do mercado, da descodificação e da desterritorialização? Pois talvez os fluxos ainda não estejam suficientemente desterritorializados e suficientemente descodificados, do ponto de vista de uma teoria e de uma prática dos fluxos com alto teor esquizofrênico. Não retirar-se do processo, mas ir mais longe, ‘acelerar o processo’, como dizia Nietzsche: na verdade, a esse respeito, nós ainda não vimos nada.” (p. 318).
[6] https://dev.integrame.com.br/tenda/manifesto-aceleracionista/
[7] Em Mil platôs, D&G diferenciam a axiomática de código: “[…] a axiomática considera diretamente os elementos e as relações puramente funcionais cuja natureza não é especificada, e que se realizam imediatamente e ao mesmo tempo em campos muito diversos, enquanto os códigos são relativos a esses campos, enunciam relações específicas entre elementos qualificados, que não podem ser reconduzidos a uma unidade formal superior (sobrecodificação) a não ser por transcendência e indiretamente […]” (p. 153).
[8] https://xenosistemas.wordpress.com/2017/01/20/horror-abstrato-parte-2/
[9] “Joblessrecoveries”, que seria a recuperação da economia, mas que não cria novos empregos.
[10] Conforme o estudo de Michel Serres em O nascimento da física no texto de Lucrécio, correntes e turbulências (1977).
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Referências
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DELEUZE, Gilles; GUATTARI, Félix. O Anti-Édipo: capitalismo e esquizofrenia. São Paulo: Editora 34, 2010.
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FISHER, Mark. Capitalist Realism: Is there no alternative? Washington: Zero Books, 2009.
HARAWAY, Donna. Manifesto ciborgue: ciência, tecnologia e feminismo-socialista no final do século XX. In: TADEU, Tomaz (Org.). Antropologia do ciborgue: as vertigens do pós-humano.Belo Horizonte: Autêntica Editora, 2009, 2. Ed.
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LAND, Nick. Fanged Noumena. Falmouth/New York: Urbanomic/Sequence Press, 2012.
__________. Re-Aceleracionismo. Xenosistemas: 2016. Disponível em: https://xenosistemas.wordpress.com/2016/09/23/re-aceleracionismo/
__________. Horror Abstrato (parte 2). Xenosistemas: 2017. Disponível em: https://xenosistemas.wordpress.com/2017/01/20/horror-abstrato-parte-2/
SRNICEK, Nick; WILLIAMS, Alex. Inventing the Future: postcapitalism and a world without work. New York: Verso Books, 2016.
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ZOURABICHVILI, François. Deleuze e o possível (sobre o involuntarismo na política). In:ALLIEZ, Éric(org.). Gilles Deleuze: uma vida filosófica. São Paulo: Editora 34, 2000, p. 333-335.
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