Por Michael Hardt, em maio 2014 | Trad. UniNômade
Foto: Christiane Gruber, estêncil de autoria desconhecida
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O primeiro aniversário do acampamento de Parque Gezi será certamente festejado com manifestações alegres, que serão recebidas pela repressão brutal da polícia. Um ano depois que explodiram em cena, os movimentos em Istambul permanecem dinâmicos, combativos e criativos. Pude reconhecer, clara e imediatamente, o alto nível de reflexão teórica e política nas discussões com ativistas turcos, individualmente ou nos fóruns, durante uma residência de duas semanas na Universidade Bogazici, em maio de 2014. O gosto pela inovação política e organização, bem como um antagonismo profundo ante os poderes dominantes, é intenso. Novos hábitos políticos — tais como o caráter distintivo dos fóruns turcos, como uma prática de raciocínio político coletivo — foram reforçados e socialmente consolidados. De maneira misturada com a exaustão e frustração inevitáveis daqueles que continuam a lutar, é possível ver claramente o desejo e o potencial do movimento apontando para o futuro. Particularmente significativo, pra mim, foram as discussões no centro social ocupado de Don Kisot, no bairro de Kadikoy, num fórum com estudantes na universidade, e em trocas com o coletivo Otonom.
Nos encontros, pude compreender dois obstáculos primários, que se põem no caminho da retomada das energias prévias do movimento, e do salto ao próximo nível. (Peço desculpas adiantado aos camaradas turcos pelos erros, omissões e simplificações inevitáveis no que segue). Primeiramente, os movimentos não têm conseguido assumir o controle da pauta política e dos ritmos de seus próprios desdobramentos, se restringindo a responder às ações dos governos e eventos externos. Em segundo lugar, os movimentos ainda não foram capazes de expandir a sua composição social suficientemente, de maneira a conquistar uma posição social majoritária. Os dois obstáculos, claro, estão estreitamente relacionados, e avançar de maneira significativa no segundo pode ser a única forma de abordar o primeiro. Para bem da clareza, no entanto, eu vou tratar dos dois assuntos num giro.
Tropeçando de um fato revoltante a outro
Às vezes, parece que o dito “espírito Gezi” está condenado a tropeçar de fato revoltante em fato revoltante. Cheguei a Istambul, em meados de maio, apenas para conseguir pegar os protestos na sequência do desastre nas minas de Soma, onde cerca de 300 mineiros foram mortos. Pouco mais de uma semana depois, a polícia de Istambul atirou balas letais contra manifestantes no bairro de Okmeydam e matou um jovem, o que deflagrou novas manifestações. Os protestos pelo aniversário de Gezi certamente serão recebidos com violência policial, ateando a chama para ainda mais protestos.
As ações do governo e da polícia são, de fato, revoltantes. Cada manifestação em Istambul é recebida imediatamente com gás lacrimogênio, canhões de água (contendo produtos químicos desconhecidos), e violência policial. Eu não tinha entendido antes que quase todos os manifestantes mortos pela polícia neste período eram alevis (não confundir com os levitas), e que o recente assassinato em Okmeydam, um bairro alevi, não foi exceção. Os alevis, que compõem entre 20 e 30% da população, são uma minoria xiita geralmente opositora ao partido dominante AKP, que é apoiado pela maioria sunita.
As mortes dos mineiros em Soma é um evento muito mais significativo, com implicações complexas. Os manifestantes insistem em não chamá-las de acidente, mas de assassinato de trabalho. Realmente, as condições para o desastre foram criadas por um roteiro, igualmente conhecido noutras partes do mundo, que reúne neoliberalismo e extrativismo. A privatização, a subcontratação e a falta de regulação criam uma situação com perigosas condições de trabalho e pouca responsabilidade direta do governo.
Ante as atrocidades e provocações, o governo — e o próprio primeiro-ministro Erdogan — soma sem parar palavras também revoltantes. Em vez de apresentar desculpas (ou mesmo pêsames) ao povo de Soma, por exemplo, Erdogan aparece num vídeo batendo boca com cidadãos enraivecidos. Isto se encaixa num padrão, pelo menos desde Gezi, em que Erdogan, ao contrário de tentar acomodar ou cooptar elementos dos protestos, demoniza todos os seus opositores, insulta-os frequentemente em termos tediosos, e autoriza a aplicação de uma força desproporcional contra eles. Maquiavel poderia aconselhá-lo que tal modo rígido de governança é frágil — que cedo ou tarde, eu penso que a posição combativa, inflexível e divisionista vai levar a sua própria ruína política. Enquanto isso, no entanto, nós deveríamos reconhecer como seu repertório lembra aquele de muitas figuras populistas de direita, cujo comportamento, embora visto como tão chocante e desprezível pela esquerda (e, de fato, por qualquer observador razoável), amiúde serve para solidificar sua base política. Explosões passionais, revoltantes, cruas e ofensivas contra opositores são elementos-padrão de seu repertório e servem, na lógica do populismo de direita, para manifestar solidariedade com “o povo” contra as elites culturais.
Erdogan certamente faz o seu melhor para personalizar e centralizar em sua própria figura toda a vida política turca. Uma estratégia que une a esquerda, porém o faz reativamente, ao focar os antagonismos no primeiro-ministro, o que me parece limitado e fraco. O ódio de Erdogan entre os ativistas é, evidentemente, generalizado e profundo. Mesmo se os protestos forem “bem sucedidos” e Erdogan deposto, contudo, não existe nenhuma garantia de melhora real sem que seja desenvolvida uma alternativa política real. O espetáculo da raiva contínua, além disso, traz o perigo que a esquerda emperre no funcionamento reativo e oposicionista, incapaz de impor agenda própria, ou ditar a temporalidade dos desdobramentos políticos.
Expandir a composição social
O meio primário que eu vejo para tomar a iniciativa e criar uma alternativa social real está em expandir a base social dos movimentos. Um dos aspectos mais importantes e inspiradores do acampamento Gezi, na realidade, estava no modo como abriu a possibilidade para novas subjetividades políticas e novas articulações, ao longo do espectro social. Divisões sociais rígidas que inicialmente pareciam intransponíveis, de súbito pareceram dissolver-se entre aqueles reunidos na praça. Um ano depois, entretanto, as aberturas (ainda) não foram consolidadas e aliás parecem ter se retraído.
Ativistas feministas e LGBT, por exemplo, ganharam visibilidade generalizada em Gezi e foram frequentemente citadas como centrais para o movimento. Alguns ativistas agora, no entanto, dizem que a igualdade de gênero e sexualidade continua sendo um grande problema no movimento e eles chegam a questionar se a real extensão do engajamento dos ativistas com as questões feministas e LGBT e a adoção de suas práticas não teriam sido exageradas.
Outra abertura foi provida pela presença no acampamento de Gezi dos “muçulmanos anticapitalistas”, que embaralharam a narrativa padrão (reforçada virulentamente pelo AKP) de que o conflito social primário deve ser colocado estritamente entre religiosos x seculares. Foi muito fácil, ademais, para esse grupo manejar a doutrina islâmica e citar textos sagrados, a fim de contestar as políticas neoliberais e a corrupção do governo. Apesar do exemplo dos “muçulmanos anticapitalistas”, a ideologia de uma divisão secular/religião, que corresponde à divisão política global, permanece hoje um pilar sólido do apoio ao governo.
Uma das potenciais conexões abertas em Gezi que é mais significante, dada a história da esquerda turca, ocorreu entre os esquerdistas kemalistas (que encorajaram e mesmo protagonizaram a repressão contra os curdos) e apoiadores do movimento curdo. Um ano atrás, no acampamento em Gezi, eu assisti a um fórum notável no Youtube, em que um grupo de ativistas kemalistas se desculpava aos curdos, por ter acreditado no que a mídia dizia sobre os curdos (e no que havia falhado em noticiar) durante décadas de repressão e atrocidades do governo turco. A distorção da mídia e a falha em noticiar sobre o movimento de Gezi lhes tinha agora ensinado a ler o passado diferentemente. O movimento curto estava, de fato, presente no acampamento de Gezi, em seu próprio canto, e ali parecia possível uma reconciliação para preencher a fissura — talvez a divisão primária — da esquerda turca. É preciso ter em mente, também, que alguns setores do movimento curdo estavam mornos em relação aos protestos, parcialmente por causa do processo de paz em curso entre curdos e o AKP. A minha impressão, contudo, é que o potencial de transformação da esquerda em relação ao movimento curdo é real, embora pareça ter avançado pouco no ano passado.
Permitam-me pausar um momento para caracterizar, brevemente, o meu entendimento da natureza do movimento curdo — ou movimentos, uma vez que a política curda não é de forma alguma homogênea — e posicioná-los quanto à esquerda na Turquia. Entre o movimento curdo e suas orientações políticas, estão as correntes mais dinâmicas, criativas e radicais da esquerda turca. A chave para isso, como eu a entendo, é o fato que há aproximadamente uma década a corrente do movimento curdo que segue Abdullah Ocalan radicalmente deslocou sua estratégia da luta armada pela soberania nacional para o desenvolvimento de uma “autonomia democrática” em nível comunitário. Então, considero instrutiva a comparação, proposta por vários amigos, entre o movimento curdo e os zapatistas. Posso ver uma correspondência vaga entre os papéis de Marcos e Ocalan, que é um tipo de eminência parda. Da prisão, ele periodicamente entrega pronunciamentos meio poéticos que logo são interpretados pelos seguidores. Todavia, o ponto importante e substantivo de contato está na experimentação em comunidades e vilas, para praticar um novo tipo de democracia. O meu conhecimento limitado torna difícil avaliar exatamente quais meios autônomos democráticos existem na prática, bem como a profundidade e a novidade da experiência no Curdistão, mas estou convencido que é uma experiência rica e significativa.
Neste ponto, os limites da analogia com o Exército Zapatista de Libertação Nacional (EZLN) se torna instrutivos para mim. Antes de tudo, por que eu sei tão pouco sobre os experimentos curdos contemporâneos em autonomia democrática? Eu tenho um conhecimento relativamente profundo sobre o pensamento e a prática dos zapatistas — começando em 1º de janeiro de 1994. E não sou o único. Uma geração inteira de ativistas pelo mundo orientou sua bússola política em direção a Chiapas. Por que tão pouca atenção internacional foi dada aos curdos turcos? Certamente, a diferença não se deve somente por causa da facilidade notável dos zapatistas com a comunicação, o brilhantismo retórico de Marcos, ou uma facilidade mais difundida com a língua espanhola. Poderia ser útil, noutras palavras, ler a minha ignorância relativa sobre os desdobramentos políticos curdos não apenas como uma falha pessoal, mas também como sintoma de um fenômeno maior.
Uma questão mais significativa — mas aqui eu estou em terreno bem menos sólido, em termos do meu entendimento — se refere à orientação política dos apoiadores turcos não-curdos, ao movimento curdo. Claramente, existe uma solidariedade profunda, uma insistência pelo fim de décadas de massacres cometidos pelo estado e repressões contra os curdos, e um respeito pelo que o movimento curdo já conquistou. Os apoiadores zapatistas globais, no entanto, adicionalmente à solidariedade e respeito, há muito têm emulado as práticas zapatistas, traduzindo-as de acordo com suas próprias circunstâncias, na Cidade do México, Barcelona, Pádua, Austin e noutros lugares. É possível (ou talvez já esteja acontecendo de alguma forma), semelhantemente, emular a experiência curda, seja na Turquia ou noutros lugares? Como se pareceria, por exemplo, instituir a autonomia democrática na vizinhança de Istambul, Ancara ou Izmir? Tais experimentos dariam substância real à analogia.
Para fechar o longo parêntese, então, me parece claro que o movimento de Gezi (e a esquerda turca em geral) não pode avançar sem de alguma maneira construir uma ponte sobre a divisão entre a posição republicana nacionalista e os movimentos curdos. Tal ponte é uma das promessas de Gezi que permanece descumprida.
Finalmente, a composição do acampamento de Gezi e do movimento pós-Gezi deveria ser lida em termos de trabalho. É impressionante como militantes de Gezi descrevem uniformemente a classe política dos mais ativos no movimento como “colarinho branco” (bevaz yaka): urbanos, jovens e altamente instruídos, mas frequentemente mal pagos e precariamente empregados. Interpreto “colarinho branco”, aqui, como referindo-se à cruz entre os trabalhadores alienados da burocracia que C. Wright Mills chamava com esse termo nos anos 1950, e o novo cognitariado emergente. É habitual os ativistas insistem, por exemplo, “nós não somos classe média, somos trabalhadores — trabalhadores de colarinho branco”. Uma referência reveladora da vida do colarinho branco durante os protestos, repetida pra mim mais de uma vez, é o filme Clube da luta: uma vida dual, de dia vestidos para o escritório, de noite enfrentando a polícia. Um dos resultados positivos de Gezi foi certamente avançar o entendimento sobre a composição de classe contemporânea, reavaliando a natureza da classe trabalhadora, em vista da expansão de novas categorias do trabalho.
Um obstáculo claro para o avanço e a expansão do movimento de Gezi, contudo, é a sua estreita base de classe. Os trabalhadores de colarinho branco têm de achar um modo de articular suas lutas com as de segmentos tradicionais da classe trabalhadora, assim como dos pobres da cidade e do campo. Tais articulações, claro, requereriam transformações de ambos os lados: sindicatos tradicionais, noutras palavras, têm de abrir sua concepção de classe trabalhadora e alterar suas práticas tradicionais; como também os militantes, trabalhadores urbanos de colarinho branco, têm de mudar algumas de suas premissas culturais e orientações políticas, para que uma articulação produtiva seja possível.
Nesta luz, o desastre da mina em Soma me atingiu como uma oportunidade. O espírito de Gezi tinha imediatamente deslocado o foco para a provação dos mineiros, as suas escandalosas condições de trabalho, e as políticas neoliberais que promoveram e tornaram mais perigosas as indústrias extrativistas. Estudantes ocuparam a Universidade Técnica de Istambul para exigir o rompimento de laços com a empresa que opera a mina. Ônibus de estudantes tentaram viajar até Soma, apesar dos bloqueios policiais, voltados a excluir “agitadores de fora”. É certamente uma oportunidade, mas uma em que é preciso enfrentar várias barreiras, incluindo não apenas uma poderosa repressão governamental e a máquina de propaganda, como também a falta relativa de laços culturais e políticos entre diferentes setores da classe trabalhadora contemporânea.
Meu ponto primário, aqui, é que um desafio essencial para o movimento de Gezi, um ano depois de sua emergência, consiste em estender sua base social para além dos limites existentes. Ao focar nesses obstáculos, eu não quero sugerir que ativistas turcos estejam atrás de outros movimentos ativos no atual ciclo de lutas. Pelo contrário, é revelando e enfrentando esses desafios que se pode indicar o que foi conquistado na Turquia. Desde a concepção, como eu disse, o movimento de Gezi garantiu uma articulação social radicalmente expansiva, ainda que em muitos pontos isto parece ter patinado ou acumulado obstáculos. Gezi levantou o prospecto de superar divisões ao longo de todos os eixos que eu reconheci: gênero e sexualidade, a divisão religião/secular, a questão curda, e a composição do trabalho — e há sem dúvida outras.
Tal articulação que expande a base social do movimento é o único meio, me parece, para tomar a iniciativa das mãos do governo, controlar a pauta e construir uma alternativa política real na Turquia. Isto iria preencher as esperanças e desejos que foram lançadas em Gezi.
Nota do autor: Sou grato à Universidade Bogazici pelo generoso apoio. Uma versão revisada e mais longa deste ensaio será publicada como parte do projeto Crônicas de Bogazici.
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Michael Hardt é professor da Duke University, nos EUA, autor de vários livros sobre as lutas contemporâneas, têm no Brasil traduzidos Gilles Deleuze; um aprendizado em filosofia (ed. 34) e, em coautoria com Antônio Negri, Império e Multidão (ambos pela ed. Record).
Ver também, neste site:
As lutas na transição irresolvida, (por Michael Hardt), 13/9/13.
Resenha da passagem de Hardt pelo Brasil, em fevereiro deste ano: Michael Hardt no Brasil (por Bruno Cava), 6/3/14.
Entrevista com Eren Buglalilar, pelo InfoAut, 12/3/14.
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