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Um Brasil que deve ser e um Brasil que se devora

Por Gabriela Serfaty, versão escrita da fala apresentada à Casa de Rui Barbosa, no seminário “Antropofagia e multidão – Tatu or not tatu”, em 6 de setembro de 2012.

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“Viver é pertencer a outrem.

Morrer é pertencer a outrem.

Viver e morrer são a mesma coisa.

Mas viver é pertencer a outrem de fora,

e morrer é pertencer a outrem de dentro”.

Fernando Pessoa

 

Oswald de Andrade no Manifesto antropofágico propõe uma forma de pensar alteridade na sua radicalidade. Ele inaugura uma desorganização na geografia ao mudar os trópicos de lugar. Para os Europeus, paternalistas, escravocratas e colonizadores, o canibalismo praticado pelos selvagens era visto como primitivo e negativo.Numa visão positiva e inovadora,Oswald resgata metaforicamente esta pratica para pensar a cultura brasileira.Ser devorado, regurgitado pelos ’’primitivos’’ ditos passivos porém selvagens, que com sede e fome colocam um tempero a mais no caldeirão;o que faz com  que o colonizador deixe de ser uma ameaça para ser incorporado no  colonizado que retira da morte, sua a vida.

É a partir desta relação canibal-colonizador que Oswald quebra com a lógica de dominação e de inferioridade que tomava conta da identidade brasileira e propõe uma visão afirmativa com  que vem de fora: receber da hegemonia dos países do norte à moral e seus bons costumes, mas não só absorvê-los passivamente e sim transformá-la em algo que seja nosso. Esta é uma tentativa de repensar rigorosamente a cultura e todo o processo civilizatório com sua dinâmica totalitária, quando o outro passa a ser desejado e devorado na sua diferença. Trata-se de uma alteridade que se torna viva e pronta para ser deliciosamente saboreada. Deixa de ser temida para se inscrever na cultura menor. Assim, o que vem de fora passa a ser servido no banquete junto com todos os outros ingredientes. O fora passa a fazer parte do dentro e nesse processo de canibalização, surge alguma coisa nova: um meio índio, um meio negro, meio branco com suas diferenças que se multiplicam. Um jogo de contagio, onde o fora e o dentro se relacionam de tal forma que surge algo chamado Brasil. Trata-se de recusar ao extremo o paralelismo cartesiano que percebe a diferença de forma comparativa com um ideal de pureza e representação, para a partir daí pensar a diferença pura, sem que o diferente signifique desigualdade de raça, de gênero, de classe e de comportamento, mas sim uma algo desejado.

Dentro deste contexto, o movimento antropofágico não nega as influências da cultura europeia em troca de uma cultura popular e regional, ao contrário, faz dessas influências, paternalistas e representacionais, matéria prima de novas singularidades brasileiras.

As relações passam a existir no contato de um sujeito em direção ao outro e é neste campo de forças, sem exterioridade e idealismo, que certa desobediência, antes controlada e reprimida, é ativada neste devir primitivo. Ao devorar as preciosidades europeias se produz subvidas potentes e alegres agenciadas por um campo de imanência que retira a economia libidinal e política do plano transcendental.

É nesta mudança de perspectiva que a ideia de subdesenvolvimento é repensada como uma forma de vida e não uma vida sem forma. Oswald percebeu que ao descolar-se da ideia de dependência e independência, da falta e da fantasia de um país atrasado para uma ideia de interdependência, quebra-se essa relação entre o colonizado e colonizador.

Mas como podemos pensar a antropofagia nos dias de hoje? Dentro de um mundo capitalista globalizado que funciona em rede e com uma enorme circulação de informações, mercadorias e pessoas,onde as fronteiras,se dissolveram para o capital poder circular livremente, onde está  o fora? Onde foi parar a Europa?

Os pares que definiam o conflito político na modernidade se embaralharam, o poder e o fora não se manifestam tão abertamente como no passado, mas os conflitos, tanto micro quanto macropolíticos continuam impregnados de valores morais que nos foram exportados. Apesar de algumas esferas da sociedade ‘’romperem’’ com alguns valores como um  sujeito assalariado e um casamento até a morte nos separe, foram criadas novas identidades mais flexíveis  que acompanham o engendramento do capital e continuam   sendo fabricadas em torno de um ideal de vida pré definido.

De tal modo para fugir deste turbilhão de navegações, de ventos, de tendências e de fluxo, a fabricação de um sujeito assujeitado é uma alternativa estável. Capaz de controlar as esferas selvagens da subjetividade onde se apoiam as grandes instituições que representam o mercado e o estado neoliberal globalizado e deixam certa Europa morar em terras tropicais. Isto quer dizer que o centro continua a apontar as tendências e os bons costumes, mas o centro agora está dentro, as fronteiras já não são físicas mas imaginárias. São fronteiras abstratas, que detém o poder de comandar concretamente o desejo e os processos de subjetivação e fazer com que os habitantes da terra mundializada tendam a produzir a si mesmos e sua relação com o outro em função destas imagens.

É na construção das singularidades que o imperativo do capital se manifesta impondo uma visão vertical, apodera a mente de todos os saberes e os deveres e faz dela uma reguladora dos abalos,nada deve fugir ao  autocontrole, para isto procura-se  um calmante, uma terra firme, um corpo  a seu serviço, um corpo que não pode sentir, só deprimir,um corpo morto-vivo.É com este corpo que criam classificações:  O ser Artista,o ser Político, o ser Informal, o ser Servidor,o ser Pobre, o ser Classe A, o Ser Classe B,o Ser Classe C   Cito um trecho do manifesto Poesia Pau Brasil diz :

”O lado doutor. Fatalidade do primeiro branco aportado e dominando politicamente as selvas selvagens. O bacharel. Não podemos deixar de ser doutos. Doutores. País de dores anônimas, de doutores anônimos.O Império foi assim. Eruditamos tudo’’. (Oswald de Andrade)

Assim se foge da selvageria dos mundos possíveis,das terras ainda inabitadas e se criam autistas de um identidade só, imersa em identidade portátil, um certo deve ser assim, que impede o corpo de ir mais além. É dentro dessa estrutura onde o capital parece ter capturado todas as esferas da vida e produzido identidade brasileiras prontas para serem vendidas e passivamente devoradas, onde a antropofagia pode ser novamente reativada? O projeto modernista Oswald de Andrade tentou descolonizar o pensamento e mudar a consciência de lugar, mas esta consciência europeia continua disfarçada por ai, produzindo corpos vestidos de vergonha, corpos endividados,, comportados, vegetarianos,alongados e  na medida. Mas e os desvios e os excessos? E aquilo que foge a esta nova forma de colonização?

Onde o estado deixa de operar sobre os órgãos e imprimir registros sobre o corpo, é que ele pulsa, racha, desorganiza, se solta, se suja, o corpo que se marginaliza. Um corpo vivo é sem órgãos  isto é sem códigos e sem um funcionamento fechado e crônico. É um corpo que transforma a Macabéias em Macunaímas e redescobre uma tentativa de ‘’reeducação da sensibilidade’’ como diz Suely Rolnik.Logo, para reativar a antropofagia é preciso se desfazer desta obediência cega a este Outro colonizador já interiorizado, que desde sempre esteve penetrado na política brasileira. É preciso fazer com que o desejo e os processos de subjetivação tenham uma relação com outro dentro no campo da experimentação.

Desta forma, é no reconhecimento de certa vulnerabilidade que o outro pode deixar de ser apenas um objeto da representação e se torne um corpo vivo, devorável em um território que não é seu, deixando o outro invadir pelo corpo, pelo pé e pela mão. Para se abrir ao vulnerável é necessário certa ativação da percepção. Não se trata de ser dominado pelo outro, mas virar outro do outro. ‘’Outrar-se’’, disse Fernando Pessoa. Nem que seja por um instante, perder-se de si, do compromisso serio consigo e deixar esse Eu sair da zona central e escorrer pelas extremidades, caminhando pela orelha, punhos, mãos, dedos até chegar aos pés. Deixar o corpo perder o umbigo, ou melhor, fazer esse umbigo ir para cabeça Criar para si um corpo sem órgão, com uma dose de prudência e um mínimo de território para deixar passar as intensidades e fazer o organismo perder o eixo. Desorganizar-se no encontro com outro. Pensar com pé e sambar com o pensamento. Se permitir experimentar esta vulnerabilidade, onde o corpo é vital, volátil, liquido gás e solido, ou seja, múltiplo. Permitir ser devorado e deixar a periferia operar descentralizando a subjetividade em todas as suas esferas, não deixando o corpo ser coordenado por uma dinâmica narcísica que constrói um corpo enrijecido a serviço do imperativo de um pensamento representacional.

Ainda neste processo, aparecem os sintomas como do trabalhador com sua insatisfação estável, que ‘’assegura’’ o sujeito destes terremotos. Cito Suely Rolnik, num trecho do texto Geopolítica da Cafetinagem: “na política de subjetivação em curso tem sido a anestesia da vulnerabilidade ao outro – anestesia tanto mais nefasta quando este outro é representado como hierarquicamente inferior na cartografia estabelecida, por sua condição econômica, social, racial ou outra qualquer. É que a vulnerabilidade é condição para que o outro deixe de ser simples objeto de projeção de imagens pré-estabelecidas e possa se tornar uma presença viva, com a qual construímos nossos territórios de existência e os contornos cambiantes de nossa subjetividade”

Como fazer desta política de subjetividade uma forma de criar um Brasil onde a Europa se desloque do umbigo do mundo? Onde a periferia e o centro não mantenham relações de hierarquia e as subjetividades brasileiras não se definam apenas pelo neo-arcaísmo da Igreja Pentecostal ou pelo estilo de musica Tecno-Brega, mas que estas esferas possam se devorar e se contaminar a ponto de produzir uma hibridização da cultura, da sexualidade, da política, da estética e por fim da ética.

Novas subjetividades brasileiras estão a todo vapor criando suas formas de vida fora de grandes instituições; nas esquinas, nos morros, nos bares, na rua, no camelo, no baile Funk, nas praças. Um Brasil que se múltipla em brasis, uma potência para certa resistência, criar um Brasil sem O Brasil Maior. Uma produção de subjetividade que não para de ser produzida em uma velocidade tamanha que não cabe mais um nome ou um sobrenome e muito menos: deve ser assim o Brasileiro. Em troca desta identidade, uma subjetividade de brasileira que experimenta um exercício intensivo das ruas, o mergulho do corpo vivo e precário, dos sujeitos vulneráveis, mas livres na via esquizo dos devires,nos atritos entre intensidades heterogêneas e seus efeitos violentos que desmancham, criam  formas de existências munidos de potência, que devora o capital e faz dele instrumento de resistência, de sobrevivência e portanto ameaçam o capital por não entrarem na cadeia produtiva.

Assim, Ao invés dos corpos determinados biologicamente, corpos selvagens atravessados pelas experiências, ao invés do inconsciente freudiano, o inconsciente antropofágico do intestino e do pé é a ética da alteridade. Abrir canais, criar rachaduras, criar gagueira na própria língua disse Deleuze. Inventar uma língua de cabeça para baixo.

São os Franciscos, os Joãos, os Silvas que na insistência da sub-existência, revelam que é preciso resistir a tradição, sem resignação, mas que insista na transformação e na produção de um outro modo de vida sub. Como diz Negri é : “Ao lado do poder, há sempre a potência. Ao lado da dominação, há sempre a insubordinação. E trata-se de cavar, de continuar a cavar, a partir do ponto mais baixo: este ponto … é simplesmente lá onde as pessoas sofrem, ali onde elas são as mais pobres e as mais exploradas; ali onde as linguagens e os sentidos estão mais separados de qualquer poder de ação e onde, no entanto, ele existe ; pois tudo isso é a vida e não a morte.”

Afinal toda essa antropofagia vira Youtube e novela.

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