Yann Moulier Boutang (uma versão mais curta foi publicada por Libération)
Tradução Murilo Duarte
Um dos mestres do operaísmo italiano
Antonio Negri morreu. Ele partiu cinco meses depois de Mario Tronti, que,dois anos mais velho que Negri, morreu no último 07 de agosto. Essas duas figuras importantes e antagônicas do que foi chamado de operaísmo italiano desempenharam um papel crucial na transformação do marxismo ocidental antes da queda dos partidos comunistas. Tronti, por ter tentado, sem sucesso, renovar de dentro do PCI, que na época era um componente essencial da vida política italiana. Negri, em sua constante busca pela revolução, por ter procurado uma alternativa nos movimentos sociais, pagando por isso com sua própria vida, prisão, carreira e exílio. Como apresentador e tradutor (graças a Robert Paris) de ambos, fui treinado pela escola de pensamento representada por Romani Alquati, Lapo Berti, Alberto Magnaghi, Sergio Bologna, Feruccio Gambino, Maria-Rosa Dalla Costa, Alisa del Ré e Luciano Ferrari Bravo (os cinco últimos estudaram na Universidade de Pádua). Tive a grande sorte de frequentar sua escola e depois me tornar amigo e companheiro político de Toni Negri por 34 anos, de 1973 a 2007. Vamos nos limitar aqui a dois pontos para começar uma avaliação inicial de sua contribuição ao pensamento político. Devemos a ele essa avaliação, como um tributo ao grande pensador que ele foi, ao homem maravilhoso erroneamente caricaturado como um espantalho e um “mau mestre” (cattivo maestro). Também devemos avaliar nossas próprias limitações quando, às vezes, adotamos as políticas que ele propôs com uma fé ingênua.
Um gigante do pensamento
Partamos do primeiro ponto, preliminar indispensável: Negri era um gigante do pensamento. Seus conceitos e batalhas teóricas são impressionantes. Seu encontro com a França começou com seu seminário de 1976 na Ecole Normale Supérieure (Marx au delà de Marx). Seu exílio em Paris o colocou em contato com Félix Guattari e Gilles Deleuze. Ele aprimorou seu trabalho em muitos campos. Os quatro livros que publicou com o americano Michael Hardt, 37 anos mais jovem, Empire (2000), Multitude (2004) e Commonwealth (2010), seguidos em 2017 por Assembly, representam uma síntese de seu trabalho e uma verdadeira disseminação global de seu pensamento, especialmente nos Estados Unidos. Quase não há conceitos do legado marxiano que Negri não haja renovado de cima abaixo. Crias conceitos é o que caracteriza a filosofia, dizia Gilles Deleuze. Ambos tinham grande estima um pelo outro.
Um resumo de seu pensamento está além do escopo deste artigo. Vamos discutir algumas noções-chave.
Um marxismo renovado pelas hipóteses comuns do operaísmo: a chave da evolução do capitalismo só pode ser lida corretamente na composição de seu núcleo, o trabalho produtivo dependente, estruturado na classe operária e em seu movimento, depois nas diversas formas de trabalho assalariado. O Marx mais interessante para nós é o dos Grundrisse (esse esboço do Capital). A propósito, não há ruptura epistemológica como no caso de L. Althusser.
É a rejeição do trabalho fabril que constantemente leva o capitalismo a se modificar, por meio da introdução do progresso técnico e, depois, por meio da globalização, para contornar a “fortaleza dos trabalhadores”. A composição, a decomposição e a recomposição das classes determinam a direção das lutas sociais e o resultado da luta de classes. Negri acrescenta duas inovações a esse pano de fundo comum: o método de realização da tendência, que pressupõe que a evolução pouco perceptível já está totalmente implantada, para melhor compreender antecipadamente os momentos e pontos em que ela pode ser sabotada ou bifurcada. Segunda inovação: depois do artesão proudhoniano, do trabalhador qualificado comunista e do trabalhador em massa (a OS taylorista), o capitalismo de 1975-1990 (a era da deslocalização global da cadeia de valor) produz e confronta o trabalhador social.
A ideia de organização revolucionária se renova ao fazer essa transição necessária. A investigação dos trabalhadores precisa se deslocar para esse terreno da produção social. A questão da organização, da dispersão e da fragmentação substituiu a figura da classe trabalhadora e de seus aliadxs. O operário social da década de 1975 se torna a multidão. Parece um diagrama abstrato. No entanto, as formas de luta, os objetivos adotados, as coordenações, os coletivos de assistentes sociais, os desempregados e os trabalhadores temporários, todos testemunham a atualidade dessa perspectiva. Mas também mostram os limites que enfrentam ao se encarnarem politicamente.
Assim como Marx, Negri encontrou seus principais limites na “política”?
Vamos agora nos perguntar – e isso não diminui de forma alguma a dimensão extraordinária de seu pensamento – se, como Marx, aquele outro gigante, a quem ele é uma das raras pessoas que podem dizer “olá”, Negri foi um “mau político”. Em outras palavras, como Marx, ele não conseguiu derivar uma “política” de suas ideias abundantes, novas e sedutoras, de seu poder de invenção na teoria. Extrair uma política, não mais das santas escrituras do movimento operário e de um capitalismo já revolucionado, mas de uma nova Razão do novo Iluminsimo sobre a sociedade, o capitalismo – depois do socialismo real (não do comunismo ficcional) – nada tem de de óbvio. Ao contrário de Gramsci e sua famosa fórmula: “pessimismo da razão, otimismo da vontade”, o autor de Marx au delà de Marx (1978, 1996) disse, com um toque de provocação: “otimismo da razão, pessimismo da vontade”. Bem, na política ele terá provado que sua própria máxima de que dificilmente se pode confiar na vontade está correta. Pois o que é especificamente a política senão a formação de um desejo de vontade, uma vontade de transformar, preservar, aumentar e implementar continuamente. Mas a vontade geralmente está faltando. Como o desejo de vontade. Pior ainda, pode haver uma vontade irresistível, mas em uma base irracional, porque ela se apoia em fundamentos estúpidos (ou seja, fracos) ou insignificantes: fora do tempo, fora da oportunidade ou fora das circunstâncias. E esse é de fato o caso da atual onda populista reacionária.
A ideia de salário garantido e, em seguida, de renda universal em face das demandas socialistas clássicas de emprego assalariado para todos, substitui as lutas salariais dos trabalhadores que foram contidas. É uma tentativa de responder ao crescente colapso das lutas que podem se transformar em novos corporativismos. Já em Empire (2000), a introdução de um salário-mínimo global foi proposta como a base material para a cidadania global. Essa demanda está ganhando terreno e representa uma séria ameaça às tentativas de reabilitar um novo estado de bem-estar social.
Mesmo que os problemas de convergência, de soma e coordenação de lutas, abordados no último livro escrito com Michal Hardt, Assembly(ainda não publicado em francês), estejam surgindo de forma aguda. Quando escolhemos um nome para a revista Multitudes em 2000, não foi por acaso que usamos a forma plural da palavra. Ao usar o singular no livro de Hardt e Negri, estava ignorando a questão da unidade a ser construída e, portanto, da política como tal. A questão da formação de um novo bloco político em face da contrarrevolução neoliberal e da reformulação do neokeynesianismo foi colocada sem uma resposta política até agora.
É verdade que, nos anos 2000, Negri cunhou o conceito de biopoder, cuja exaltação lhe parece “uma forma de vida e luta” como resposta política à construção de uma subjetividade alternativa ao capitalismo global integrado, para usar as palavras de Deleuze e Guattari. Essa noção aumenta o poder que ele vê como o fundamento da subjetividade revolucionária. Mas, devido à sua falta de conexão com a ecologia e seus representantes verdes de vários tons, ela perde muito de seu caráter diretamente operacional na política. Já foi dito e escrito muitas vezes que Negri encontrou seu verdadeiro público em um alter-globalismo do Sul. Não é certo que uma política baseada em suas teorias realmente encontraria seu lugar lá. Suspeitando que os Verdes europeus estejam mudando para a direita, tem-se a impressão de que ele perdeu o momento, embora revolucionário, de uma bifurcação ecológica em face da emergência climática.
A crescente desmaterialização do trabalho dependente sob o impacto da revolução tecnológica digital é outro desafio que Negri vem abordando desde a década de 1990, principalmente em dois estudos de campo realizados na França. Com a globalização seguida da desglobalização colocando a “fábrica do mundo” na defensiva, o capitalismo integrado opera em escala planetária, o que corresponde à intuição de Negri de uma subsunção real do trabalho no capital, uma perspectiva evocada por Marx como um horizonte que somente o socialismo poderia alcançar, agora considerado como imediatamente presente e ativo. Trata-se de uma decomposição da política tal como foi cuidadosamente construída ao longo de três séculos, com seus atributos “nacionais” e democráticos.
Antonio Negri fez uma contribuição formidável para a história da filosofia com seus escritos sobre Spinoza e o que ele extraiu da distinção entre poder desestabilizador e criativo e poder instituído repressivo e reativo. Ele cunhou a noção de poder constituinte, que legitima todas as genealogias de um direito de defender o que foi conquistado. Essa noção de poder constituinte pretende ir além da alternativa de um poder infinito dos explorados, cujos frutos são sempre colhidos pela iniciativa capitalista reformista e pelo poder impotente da inércia.
Talvez precisemos revisitar a noção de poder constituinte. É isso que um seminário da Multitudes dedicado em 2024 à noção de “poder constituinte”, liderado por Giuseppe Cocco (Multitudes) e Stephen Sawyers (Tocqueville Review), buscará explorar.
No final, Mario Tronti fracassou com seu conceito de “autonomia do político” para reformar o Partido Comunista; mas Antonio Negri tropeçou em sua tentativa de revolucionar a revolução sobre a autonomia do político, uma realidade que é muito mais dura e até insuportável para intelectuais e militantes impacientes, a da política como profissão, uma esfera institucional que, em última análise, tem o monopólio da transformação, exceto nos raríssimos momentos de excitação romântica seguidos de um doloroso retorno à “realidade”.
É como se a política fosse um processo muito lento, como a tectônica de placas intercalada com catástrofes, diante da impaciência daqueles que buscam uma política que corresponda à ambição do pensamento filosófico. Há trabalho a ser feito, mesmo que ele seja feito pelos anões que somos.