Texto coletivo*
Qual o atual papel da universidade pública na transformação das cidades brasileiras e na proposição de novas formas de vida urbana? Ao redor do mundo, a conexão das universidades com as comunidades locais cresce, enquanto o Brasil ainda replica sistematicamente o paradigma do campus universitário como enclave monofuncional e segregado. Esta é uma proposta de discussão elaborada a partir da consulta à comunidade acadêmica da Escola de Arquitetura, Urbanismo e Design da UFMG, em abril de 2013, para decidir entre a continuação desta na região centro-sul de Belo Horizonte ou a sua mudança para o Campus da Pampulha.
1. Amnésia histórica
Enquanto outras escolas de arquitetura do Brasil e do mundo têm orgulho de preservar, usar e transformar seus edifícios, potencializando as relações destes com a cultura local, aqui arriscamos replicar a amnésia histórica que é praticada na cidade. Não demonstramos capacidade para lidar com nossa própria memória de maneira atual e, ao contrário do que pensamos, acabamos sendo nós os anacrônicos, prontos a nos desfazer desse patrimônio na reprodução inconsciente da lógica do descartável. No edifício da Escola de Arquitetura e Urbanismo, e agora também de Design, projetado por seus próprios alunos egressos no final dos anos 1940, dezenas de gerações de arquitetos tiveram o privilégio de se formar dentro de importante exemplar do modernismo em Belo Horizonte, que agora planejamos condenar ao esquecimento.
A preservação de um bem está relacionada ao seu uso. Edifícios que outrora abrigaram escolas da UFMG hoje estão vazios, em plena degradação e deixando de cumprir sua função social no meio da cidade. Abandonar a atual Escola em busca do “novo” é incorrer no mesmo erro que aqui se comete desde Aarão Reis, que resultou em uma cidade de 115 anos que já está na sua quarta geração de edifícios em um mesmo lote. O limite dessa patologia histórica que acomete os belo horizontinos é o saudosismo, pois é preciso abraçar impensadamente o “novo” e a “modernidade” mas fingir, mineiramente, ter um pé na tradição. A solução parece ser coletar fotografias históricas e emocionantes de um passado saudoso no edifício da Rua Paraíba e montar, no novo prédio, um mural de boas vindas ao futuro.
2. Esvaziamento e gentrificação
A indução de novos vetores radiocêntricos de crescimento e o modelo de desenvolvimento urbano em curso em Belo Horizonte produzem equívocos clamorosos e impactos gritantes na vida de milhares de pessoas. A expansão rumo ao Sul devastou e privatizou a mata atlântica remanescente e o ímpeto de colonização do Norte expulsa populações tradicionais, legitima o modelo rodoviarista e ameaça o complexo de grutas e formações geológicas, patrimônio cultural e ambiental. O processo acelerado de gentrificação em atividade nos bairros Funcionários e Savassi expulsa antigos moradores, práticas comerciais e sociais para dar lugar aos novos consumidores do luxo. O esvaziamento da Escola e seu deslocamento do Funcionários, além de desarticular uma rede de comércios, serviços, redes de encontros e possibilidades que, certamente, não serão encontrados no Campus da Pampulha, reitera a aderência acrítica das escolas de arquitetura e dos arquitetos e urbanistas com a modernização conservadora, elitista e excludente conduzida pelas recentes administrações do Município e do Estado.
Estar no Centro é hoje, mais do que nunca, uma afirmação da cidade como espaço democrático e privilegiado da festa, da política, da tolerância e da vivacidade. E se é consenso que habitar as áreas centrais, coalhadas de imóveis vazios ou subutilizados, é a melhor solução para reverter o processo histórico de degradação urbana e exclusão social, como podemos deixar para trás milhares de metros quadrados públicos sem nenhum constrangimento?
“O avanço das conquistas do REUNI e a democratização plena da universidade pública só se darão quando esta for capaz de reinventar sua arquitetura e decidir participar concretamente da transformação urbana”
3. REUNI
O Programa de Apoio a Planos de Reestruturação e Expansão das Universidades Federais – REUNI, instituído pelo Decreto nº 6.096 de 24 de abril de 2007, foi um passo decisivo na democratização do acesso ao ensino público gratuito, inclusive com a implantação dos cursos noturnos que têm permitido que milhares de trabalhadores ingressem na universidade. Na Escola de Arquitetura, Urbanismo e Design, as principais críticas ao REUNI são a precariedade e insuficiência da atual infraestrutura para suportar o aumento do número de alunos e o terceiro turno, apesar das primeiras turmas noturnas já estarem se formando e a despeito da grande quantidade de espaços ociosos e subutilizados. De forma a minimizar tais deficiências, que não são privilégios somente da UFMG, vários novos campi foram ou estão sendo construídos no Brasil e os antigos estão passando por modificações físicas importantes, mas ainda dentro da lógica de uma modernidade insustentável, do gigantismo das estruturas e do desprezo pela urbanidade, paradigmas gestados nos anos de chumbo da ditadura mas que perduram ainda hoje.
A desconsideração de uma reestruturação criativa do espaço existente da Escola revela o abismo entre as enormes possibilidades que o REUNI aponta e a incapacidade crônica de articularmos o espaço físico e as relações territoriais dessa nova universidade que emerge. Pois o avanço das conquistas do REUNI e a democratização plena da universidade pública só se darão de forma efetiva quando esta for capaz de reinventar sua arquitetura e decidir participar concretamente da transformação urbana, fomentando a criação de uma cidade policêntrica articulada por uma rede não-hierárquica de diversos saberes e práticas que produz.
4. Mobilidade
O modelo de ocupação urbana monofuncional e diluído potencializa o que há de pior nas cidades brasileiras: a ênfase rodoviarista. Grande parte dos professores, e também parte de alunos e funcionários, vão ao Campus de carro e convivem diariamente com a tragédia urbanística e seus entornos destruídos pelo progresso motorizado. O Campus Pampulha virou um grande estacionamento, que continua a juntar mais gente sem pensar adequadamente como se locomover e se encontrar, como se isso fosse uma questão somente “técnica” e não uma escolha do modo de vida urbana que se quer construir. Se o Campus fosse entendido pela própria Universidade e pela cidade como um bairro, poderia ser um protótipo de cidade adensada e acessível com modais integrados (carro, bicicleta, onibus, metrô, a pé) e ocupação diversificada, tornando-se uma referência de mobilidade sustentável e acesso pleno.
Sabemos que o modelo de mobilidade de Belo Horizonte, inclusive com os BRTs, continuará a induzir a deslocamentos e rotas passando pelo Centro, fazendo com que moradores de diversos bairros tenham que fazer mais de uma viagem para chegar às outras regiões. Sabemos que as principais soluções para uma sociedade mais justa e para cidades mais humanas, no Brasil hoje, passam inevitavelmente pela democratização do acesso aos lugares e pela reivindicação de uma política pública efetiva e contundente para o transporte público de massa. Com a ida da Escola para o Campus e a retração da universidade pública a uma única ilha onde prevalece a lógica do transporte individual, reafirmamos nossa indiferença com a diversidade urbana e o acesso aos equipamentos públicos e damos nossa contribuição para a manutenção da imobilidade social e urbana.
“Principais soluções para sociedade mais justa e cidades mais humanas passam hoje por democratizar acesso aos lugares e por política pública efetiva e contundente para transporte público de massa”
5. Vizinhança
A Escola de Arquitetura, Urbanismo e Design está a poucos minutos de caminhada da maior instituição de artes da cidade e do parque centenário num centro vivo, com edifícios históricos, áreas comerciais variadas e diversidade de ocupação e uso. Ali emerge uma nova cena cultural: Edifício Maletta, Viaduto Santa Tereza, Duelo de MC’s, Teatro Espanca!, CentoeQuatro, Funarte, Praça-Praia da Estação, etc. Diversas linhas de ônibus passam nas redondezas da Escola e é comum encontrarmos diferentes meios de transporte utilizados por alunos, funcionários e professores: ônibus, metrô, táxi lotação, motos, vans, carro, bicicleta, a pé.
Talvez seja também por essas razões que faculdades privadas situadas em áreas centrais de Belo Horizonte estejam cheias de alunos e pretendentes, e que diversas universidades no mundo estejam justamente abandonando seus campi isolados, heranças do pensamento moderno do século que passou, e retornando aos centros das cidades. No início de 2001 a Escola da Cidade escolheu o centro de São Paulo para sediar um experimento de ensino autogestionado inovador e a Universidade de Barcelona instalou diversos cursos em pleno Bairro Gótico, no centro histórico da cidade, declaradamente como estratégia de repovoamento e reenvolvimento local. Em 2012 a Universidade de Nova Iorque anunciou que realizará uma ampliação de 40% do seu campus urbano.
Imersa nos problemas concretos da Grande Belo Horizonte, a Escola tem muito a pensar e fazer como irradiadora de cultura e imaginação, propositora de soluções inovadoras e projetos para novas formas de vida urbana. E se fosse para cogitarmos mudar para algum lugar, por que não o Aglomerado da Serra, a pedreira Prado Lopes ou outra das centenas de periferias carentes de arquitetura e urbanismo?
6. Condomínio fechado
Na Inglaterra, onde nasceram os campi universitários, não se tratava de isolar a academia, mas de articular uma pequena cidade em torno da Universidade. Comércio, serviço, moradia e lazer conviviam com as escolas. Atualizando, seria como se houvesse no Campus da Pampulha padaria, boteco, chaveiro, armarinho, açougue, cinema, borracharia, loja de informática, sacolão, etc., tudo articulado em torno dos edifícios universitários e de moradias, inclusive estudantis. Mas no Brasil, onde ainda impera o paradigma da dispersão autoritária nas políticas e áreas públicas, os campi se tornaram espelhos da segregação espacial que tantas teses produz. São verdadeiros condomínios fechados do saber, cidadelas do saber-poder, com regras, preocupações e posturas típicas de um Alphaville.
A concentração do conhecimento em territórios autossegregados, separados da malha urbana, é uma forma de aplicação do modelo zoológico à organização social das atividades do espírito e uma forma de engessamento espacial das atividades da inteligência. Isolados da cidade e de suas possibilidades de trocas e encontros (e também de suas agruras), a comunidade acadêmica torna-se um gueto refém de si mesmo, esvaziada em toda sua potência transformadora. Escondidos atrás de cercas, guaritas, cancelas, catracas e muros cada vez mais altos, pretendemos estudar, classificar, entender e interferir nos fenômenos e destinos do mundo. Mas como levar adiante esse projeto sem um mergulho radical no cotidiano, sendo que os destinos do mundo passam inevitavelmente pelas cidades?
“Complexidade é composta por toda a sociedade, todos os dias: do dono da padaria ao motorista do ônibus, do vendedor ambulante ao empresário engravatado. Não vai ser isolando-se do contato urbano plural que a Universidade se tornará transdisciplinar”
7. Transdisciplinaridade
Converse com um amigo – aluno, professor ou funcionário – cujo curso esteja no Campus da Pampulha e pergunte qual foi a última vez que ele “interagiu” com colegas de outro curso. Perceberá que grande parte das pessoas chega a passar semestres inteiros sem por os pés em outra unidade, que fazer eletivas nunca é fácil porque os currículos, as “ofertas” e o “sistema” não são pensados para isso, que muitos professores não estão interessados em alunos de outras áreas, etc., e que o cenário geral é de pouca interação e diversidade. Assim como, apesar de ocuparem o mesmo prédio, pouco interagem entre si os cursos de Arquitetura e Design. O problema não é arquitetônico, nem a solução. Não vai ser possível transformar professores, alunos e funcionários em pessoas melhores através de um edifício novinho em folha. Afinal, foi-se o tempo do determinismo moderno: mudar a arquitetura para mudar o homem.
Diferente das modalidades multidisciplinar e interdisciplinar, que tentam provocar a proximidade entre disciplinas, a recente discussão sobre transdisciplinaridade propõe uma forma de conhecimento nova: plástica, criativa, crítica e ética, sem fronteiras, territórios ou proprietários privilegiados de discursos. Trata-se de um projeto de abertura da ciência que ultrapassa as disciplinas confinadas nos departamentos e busca uma experiência expandida do mundo através de todos os canais, inclusive os autodidatas. Para os defensores do isolamento do saber, a complexidade parece se restringir à lista dos cursos oferecidos no Vestibular. Mas a complexidade é composta por toda a sociedade, no tecido urbano, todos os dias: do dono da padaria ao motorista do ônibus, do vendedor ambulante ao empresário engravatado. Não vai ser isolando-se do contato urbano plural que a Universidade se tornará transdisciplinar.
8. Oportunidade
Diz-se que esse momento é uma oportunidade política e econômica única. E que, quando a Escola, cedo ou tarde, acabasse sendo “obrigada” a ir para o Campus, talvez as condições não fossem tão favoráveis como as atuais. Mas sabemos que ninguém pode prever as condições políticas futuras.
Estamos de fato diante da oportunidade única de engajar uma comunidade de mais de 1.000 pessoas em torno da questão: que escola e que cidade queremos? Independente se é aqui ou acolá, esse debate nunca foi colocado com a devida importância, mais preocupados que estamos com as distribuições proporcionais dos gabinetes e laboratórios do que com a construção de um modelo de escola mais interessante, experimental e coerente com o nosso tempo. É de fato uma oportunidade única para que possamos responder à altura e produzir intelectualmente e projetualmente uma resposta consistente, crítica e inovadora a uma questão tão fundamental quanto desafiadora: qual a contribuição efetiva de arquitetos, urbanistas e designers para os problemas e as oportunidades colocadas pelo mundo e pelos lugares, hoje e no futuro? Não é essa a função de uma escola de arquitetura, urbanismo e design e o que aqui se pretende ensinar aos alunos?
“No Brasil, onde ainda impera o paradigma da dispersão autoritária nas políticas e áreas públicas, os ‘campi” tornaram-se espelhos da segregação espacial. São verdadeiros condomínios fechados do saber”
9. Democracia
Se autonomia, empoderamento e participação fossem práticas realmente levadas a sério na Escola, seria acintosa a sugestão de um processo decisório em que se defenda uma democracia de pesos diferenciados de acordo com cargo, titulação e função de cada indivíduo. Se lamentamos diariamente os privilégios, desmandos e autoritarismos de vereadores, deputados e senadores, criticando os limites da democracia representativa, como podemos nesse momento decisório fundamental e impactante na vida de todos os professores, alunos e funcionários, reproduzir os discursos dos nossos algozes parlamentares e, em um lance, defender uma democracia em que a voz de alguns vale muitas vezes a de outros? Porque não nos desfazemos de nossas pré-concepções, antipatias herdadas e certezas acumuladas para, nesse momento de possibilidades em aberto, ensejarmos um experimento de coexistência e ensaiarmos a constituição de um microparlamento de democracia radical?
10. Concurso
É perfeitamente possível que a nova Escola de Arquitetura, Urbanismo e Design continue a funcionar no edifício da Rua Paraíba, que poderá abrigar as novas demandas com adequação. Será necessário realizar ampliação e reforma, mas recursos financeiros e bases legais existem para que isso ocorra. Exigência de garagem? Desafios estruturais? Inconvenientes das obras? Implantação do canteiro? Realmente precisaremos de arquitetos, urbanistas e designers imaginativos, engenhosos, negociadores, empreendedores, pragmáticos e, principalmente, motivados pelos desafios que a cidade atual nos apresenta.
A defesa de concurso público de projetos para um novo edifício da Escola no Campus da Pampulha, diante do absurdo do “notório saber” e das ciladas da licitação por menor preço, pode parecer a panaceia para todos os males arquitetônicos. Entretanto, mesmo nas sociedades que inventaram e perpetuaram o concurso de projetos como prática, tal modelo se encontra em crise. Não exatamente por ilegalidades ou impossibilidades objetivas, mas porque ele privilegia um conceito e uma forma baseados na competição e na autoria – e não na colaboração e no compartilhamento. Porque fomenta um distanciamento crônico com o lugar, os sujeitos e as particularidades locais, permitindo que do alto do escritório climatizado decisões que dizem respeito à vida de milhares sejam tomadas de forma abstrata, arbitrária e simplificada. E também porque sintetizar toda a complexidade e as idiossincrasias de uma comunidade qualquer a um “programa de necessidades” e este a um “partido” aleatório não pode ser a única resposta de projetistas e planejadores para uma sociedade mais pública, mais transparente, mais crítica, mais engajada e mais autônoma.
Precisamos reinventar nossas práticas e paradigmas a partir de outros parâmetros que não a competição, o distanciamento projetual e a propriedade intelectual. Reinventar a Escola a partir do desafio de considerar a articulação da comunidade acadêmica com o seu entorno. Considerar, além do aumento dos espaços acadêmicos e administrativos, a possibilidade de uma Escola de Arquitetura, Urbanismo e Design de uma Universidade Pública contemplar espaços e atividades públicas, como galeria de exposições, cineclube, restaurante, café, livraria, moradia estudantil, ateliês de aluguel para jovens arquitetos, urbanistas, artistas e designers, incubadora de projetos, cantina experimental, creche, espaços para cultivo, terraços-jardim, etc. Uma escola que seja ela própria um laboratório de arquitetura, urbanismo, design e transdisciplinaridade, uma referência local e nacional.
Afinal, não seria muito mais desafiador e coerente com os desígnios da arquitetura, do urbanismo e do design atuais termos que dialogar e negociar com a vizinhança, com as restrições do patrimônio histórico, com as possibilidades e contradições da indústria imobiliária, com os meandros da burocracia municipal, com o potencial construtivo e de imaginação armazenados nesse edifício de inserção arquitetônica e urbanística privilegiada, ao invés de patrocinarmos mais uma arquitetura de exceção às custas da tabula rasa de nossa própria história?
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Participaram da redação Adriano Mattos Corrêa, Beatriz Couto, Cristiano Cezarino, José Augusto Pessoa, Hamilton Moreira Ferreira, Myrian Bahia Lopes, Natacha Rena, Renata Marquez, Rita Velloso, Roberto Andrés, Stéphane Huchet e Wellington Cançad.
Imagem: Gui Tracisio Mazoni e Marcos de Carvalo Mazzoni.
Publicado originalmente no portal Outras Palavras, em 14/4/13.